09 janeiro 2018


O Porta-Voz do Deus Menino


Era Natal 
Chovia
E à medida que caminhavas 
Na lama
Eu ficava a pensar 
Se acaso serias
O porta-voz do Deus Menino 
Que nessa noite
Nos chama.
Os teus pés descalcinhos 
Doridos pelo frio
Faziam-me a cada passo que davas 
Uma onda de arrepio.
Mas mesmo descalcinho, 
Dorido,
Tu prosseguiste sempre 
Ao longo do caminho
Que se avista da minha janela…
– Fiquei a observar-te enlevada 
E de repente notei
Que havias caído
Naquela rua tão enlameada. -
Saí de casa a correr
E fui ter contigo…-
Eras uma linda criança
de feições suaves
E olhar sereno.
– Disseste-me logo o teu nome Que nem perguntei:
– Sou João. -
E acrescentaste:
Tenho frio e tenho fome, 
Não posso andar mais. 
Sou cigano, sou pobre, 
Minha avó morreu ontem
Vou à procura de meus pais.
Quase fiquei atónita
Ante a desenvoltura e a graciosidade 
De tua tão tenra idade…
Levei-te para minha casa
E tu, contente,
Passaste comigo a noite de Natal.
– É esta a tua história João…-
Depois ficaste,
Cresceste, fizeste-te homem 
Calcei-te, vesti-te, matei-te a fome 
E ensinei-te
A que me chamasses mãe.
Hoje, és bem o filho
da minha alma,
A doçura que acalma
O meu passado ingrato e vazio!
– Ainda agora ao recordar Essa noite de Natal
Em que te conheci descalcinho 
E transido de frio
Eu fico a pensar
Se na verdade não serias
O porta-voz do Deus-Menino 
Que nessa noite nos chama!…

Maria das Dores Bianchi Thedim
(Poema publicado no livro POLEN, 1969)

1 comentário:

Odete Ferreira disse...

Belíssimo na forma e, sobretudo, no conteúdo!
Parabéns por nos ter trazido este poema, O Porta-Voz do Deus Menino.
Vivência ou metáfora... Que importa?
Bjinho, Maria das Dores