24 dezembro 2017


A CONSOADA

Enquanto a neve caía sobre os lajedos ou nas ruas lamacentas, começando a estender, suavemente, o seu manto branco sobre as pequenas casas de granito tosco, e as ovelhas regressavam apressadamente aos redis, balindo graciosamente pelas quelhas, anunciando aos cordeirinhos, seus filhos, que chegara a hora do reencontro, após um dia inteiro pastando nos prados, a tia Prazeres ia acendendo o lume com a caruma e cavacos de pinheiro, para fazer a consoada. 
O sol que nessa altura do ano nada aquece, e que naquele dia nem se viu, ia baixando lentamente, para desaparecer, finalmente, por detrás dos pinheiros do horizonte, mergulhando a pequena aldeia numa escuridão fantástica, sobre a qual pairava uma densa neblina formada pelo fumo que saía pelos telhados das casas, já cobertos de neve. A negritude era tal que só aquela gente sabia caminhar pelas vielas estreitas, onde tudo era escuro, triste, alegrando-se apenas um pouco mais, quando, também nas ruas, a neve começava a coalhar, aveludando então tudo em redor. 
O senhor José saiu de casa, levando numa das mãos a lanterna de petróleo e na outra a ferrada. Ia à loja ordenhar o gado. 
Os filhos, o António Francisco, a Isabel e o Zé Manuel que, embora traquinas, ia embalando o último rebento, com pouco mais de um mês, seguiam todos com atenção as voltas afadigadas da mãe e colaboravam, ajeitando as cavacas da fogueira crepitante ou varrendo as lajes da cozinha, onde iam caindo as fonas e pedaços de carrasca de pinheiro. 
O avô, já com os seus setenta anos, tinha ido ao cabanal à procura de um cepo do Natal: um tronco de carvalho rijo e seco, guardado propositadamente para esta altura, que, posto na fogueira, ardia até às tantas. 
Em panelas separadas, eram cozinhados os diferentes pratos da consoada. Numa estava a cozer a couve do Natal, à qual seria misturado o trigo e pedaços de bacalhau. Na outra estavam as batatas com cebola e bacalhau. 
Na noite anterior, quando os filhos já dormiam, tinham ficado os dois - pai e mãe - na cozinha, a fazer as filhós e as fritas.
Por fim, estava tudo preparado.
O pai acabara de chegar, com a ferrada cheia de leite, tamancos fortes nos pés, salpicos de neve no chapéu e no casaco, as mãos enregeladas. 
A mesa, suspensa na parede por uma das pontas e fixa com um cravelho, era baixada, firmando-se numa perna. Estendia-se a toalha de linho branco. As batatas com a cebola e o bacalhau fumegavam no alguidar de alumínio. Noutro, de barro vermelho vidrado, estava a couve, mesmo apetitosa. A um canto da mesa estava um jarro com vinho. No centro, o pão. Todos se sentavam à mesa, no banco comprido de pinho ou nos mochos toscos, com pernas de carvalho. E comia-se com vontade, com apetite, regando-se a couve e as batatas com azeite, enquanto os mais velhos bebiam o vinho tinto gelado. 
No final da ceia, apareciam os irmãos e sobrinhos, que vinham festejar o Natal, saudar o avô e conversar à roda da fogueira, enquanto se comiam figos secos e se bebia aguardente. 
Os mais novos britavam nozes na pedra enegrecida da lareira. 
O cepo de carvalho ia ardendo e aquecendo, como símbolo da União e do Amor, da grande Festa da Família.



A. F. Caseiro Marques
In ASSIM SE MOLDAVA O BARRO,2003

1 comentário:

Odete Ferreira disse...

Um texto assaz delicioso!
Parabéns, Caseiro Marques!