31 dezembro 2017



Cântico Infantil de Natal

Este Menino Jesus
que nasce na minha aldeia
é muito mais pobre ainda
do que Jesus da Judeia.

Veste camisa de linho
há mil anos por lavar,
sem botões nem colarinho,
tiras soltas pelo ar.

Calças rotas nos joelhos.
lá vai pedindo esmola
que pelas benditas almas
logo mete na sacola.

Longos cabelos pingando,
pés descalços pelo chão…
Lá vai o nosso Jesus
todo inteiro-coração!

Vai depressa não sei onde
com vontade de chegar…
Talvez onde o pão abonde:
vai ao forno do lugar.

Bate à porta dos casais
que julga terem mais bens;
espera desconfiado
porque tem medo dos cães.

Este Menino Jesus
mal vestido, quase nu
e nevão dentro do peito,
és tu, meu amigo, és tu!



                                                                                           Vila da Ponte, 2008 (1972)
José Dias Baptista
In Foz do Tédio – (1957-2017) 60 anos de Poesia, 2017.

30 dezembro 2017


Um Sorriso


As ruas estavam enfeitadas, a música entoava nas lojas. As pessoas agitavam-se rapidamente, comprando os últimos presentes. Naquele centro comercial, no fundo do corredor de lojas, um espaço amplo e luminoso chamava a atenção para um tapete vermelho, um cadeirão vermelho, com um figurante de Pai Natal, também vestido de vermelho. As crianças, em fila, pretendiam abraçar aquela personagem, de cara alegre e de barbas brancas, tirar uma fotografia no colo do Pai Natal e segredar os presentes que desejavam na noite de consoada. Uma a uma, lá iam passando, fotografando e saindo devagar ao encontro dos pais. Foto tirada, sonho realizado.
No meio desta azáfama, um jornalista de um canal de televisão fazia a cobertura para uma reportagem a apresentar numa das próximas noites. Após observar, durante uma boa hora o cenário divertido do Pai Natal e das crianças que o iam abraçando, Pedro, o jornalista, resolveu dirigir-se ao local e questioná-lo, dadas as dúvidas que lhe suscitava. Pensava: “Será que este homem só tem histórias felizes? Será que alguma vez foi marcado por alguma criança? Será que guarda consigo algum momento especial?”.
Sem perder mais tempo, aguardou que, num momento de descanso, o Pai Natal se sentasse no seu trono vermelho para encostar a cabeça pesada e cansada. Há quatro horas que estava naquele lugar a animar e a divertir as crianças.
Pedro aproximou-se dele, parecendo, ao mesmo tempo, uma criança em ponto grande. Cumprimentou-o e o Pai Natal perguntou pela próxima criança que iria tirar fotografias. Pedro explicou que vinha sozinho. Identificou-se e pediu-lhe que se deixasse entrevistar para uma reportagem do jornal da noite, talvez até da noite de consoada. O Pai Natal convidou-o a sentar-se ao seu lado. Pedro perguntou:
— Gosta do que faz?
— Sim, muito. Talvez nem saiba fazer nada melhor do que ser “Pai Natal”.
— Qual é a sua verdadeira profissão?
— Sou programador, escrevo aplicações informáticas. Estou muitas horas em frente ao computador. Chego a estar oito a dez horas seguidas em frente ao ecrã. Como preciso de estar em contacto com pessoas, um dia, vi um anúncio para selecionar figurantes para este papel. Por incrível que pareça, fui selecionado. Faço esta tarefa há cinco anos, neste centro comercial. E também vou ao hospital pediátrico desta cidade, nos dias próximos do Natal, para dar um pouco de alegria àquelas crianças. Mas estar aqui vestido de Pai Natal é encantador. Sinto-me outra pessoa!
— É estranho que uma pessoa ligada ao mundo dos computadores se reveja neste papel… – disse o jornalista.
— É muito simples. Como me sinto muito isolado, preciso de ver movimento, luz, sentir o mundo a girar. Olhar para estas crianças que querem um colo, abraçar-me e tirar uma fotografia… É fantástico! Vê-las sorrir é o melhor do mundo.
— Durante estes cinco anos, de certeza que teve algum momento que o marcou de uma forma especial… — comenta o jornalista.
— Sim, é verdade. Tenho alguns momentos que vou guardar comigo e serão sempre únicos. Mas há verdadeiramente um que me marcou para a vida e me faz estar aqui todos os anos com mais alegria!…
— Quer contar-me esse episódio?
— Num dia de consoada, estando as últimas crianças a tirar fotografias, houve uma situação que me tocou profundamente. Aproximaram-se de mim, um casal e uma criança com cerca de dez anos. O menino não tinha cabelo. Percebi que teria um problema de saúde grave. Os pais pediram-me que o Miguel, assim se chamava o menino, queria muito conhecer o Pai Natal e que desejava vir ao centro comercial nessa tarde.
À medida que contava este episódio, a voz ficou mais trémula e os olhos começaram a ficar mais brilhantes pela emoção. Após uns momentos de silêncio, o Pai Natal, que se chamava Rodrigo, continuou a sua história.
— Com muito cuidado, o menino Miguel foi colocado no meu colo. Enquanto os pais tiravam algumas fotografias e se afastavam ligeiramente para nos deixarem a sós, comecei a sentir um carinho muito grande por aquela criança. Não sei explicar porquê, mas a verdade é que sentia algo diferente… O menino, então, começou a dialogar comigo e disse-me que me queria conhecer. Perguntei-lhe porquê. Respondeu-me que era esse o seu melhor presente. Queria saber o que é a alegria de ver e sentir o Pai Natal, o velhinho das barbas brancas. Eu não entendia muito bem aquele fascínio. Mas o certo é que me deixou sem palavras. Disse-me aquela criança: “Sabes, Pai Natal, gostava de te pedir que fosses sempre carinhoso com as crianças que vêm ter contigo. Elas precisam do teu sorriso e do teu abraço. Não lhes prometas muitas coisas, pois algumas não têm possibilidades. Oferece apenas o que podes dar.” Eu estava realmente encantado. Como era possível aquela criança transmitir-me uma mensagem tão profunda?! E continuou: “Eu sei que vou partir em breve, muito em breve. Dizem-me que eu tenho nome de um anjo e que vou encontrá-lo no céu, que vamos brincar muito nesse lugar de paz e tranquilidade. Não sei como é esse meu amiguinho, que tem o meu nome, mas vai ser divertido de certeza. Os meus pais andam muito tristes e eu sei porquê. Os médicos disseram-lhes que eu tenho uma doença rara e que não tem cura. Nada podem fazer para me salvar. Mas podem-me ajudar a sorrir e a cumprir os meus desejos.” Eu estava de boca aberta. Como era possível uma criança tão pequena ter um discurso tão adulto!?
O jornalista estava cada vez mais atento à história que ouvia. E, quase sem pestanejar, pediu a Rodrigo que continuasse. Então, o Pai Natal disse:
— Quais são os teus desejos, Miguel? E ele respondeu: “Já tenho todos os meus desejos realizados. Este era o último. Queria conhecer-te e pedir-te que fizesses todas as crianças felizes. Os meus pais estão muito contentes. Vê como sorriem. Sabes porquê? Porque eu pedi que me trouxessem até aqui. O meu desejo está realizado e agora já posso partir para encontrar o meu amiguinho Miguel. Obrigado por me trazeres um grande sorriso a mim e aos meus pais.” Entretanto, o menino, que estava no meu colo, abraçou-me verdadeiramente por largos minutos. De repente, os seus braços penderam e percebi que tinha ido ao encontro do seu amiguinho. O meu coração, cheio de emoção, de alegria e de tanto amor, estava, agora, também, em sofrimento e choro.
Perante esta história, Rodrigo, o Pai Natal desse centro comercial, estava desfeito em lágrimas e, sufocado de emoção, disse ao jornalista:
— Foi a melhor prenda de Natal que podia ter recebido e a melhor mensagem recebida no meu colo. Tudo através de uma criança. Esta é a história mais marcante da minha vida. E quando preciso de forças para o meu dia-a-dia, penso no Miguel e recordo a sua atitude de coragem e de esperança que me transmitiu. Que força magnífica a de esta criança! Nunca esquecerei esta mensagem.
O jornalista agradeceu a amabilidade do tempo e da narrativa partilhada. Pedro foi-se afastando lentamente do centro comercial e, a caminho de casa, recordou toda a história que lhe tinha sido contada. Nessa noite, compreendeu que as grandes lições estão nas pequenas coisas, nas crianças pequenas, e sentiu que o seu Natal seria mais aconchegante, porque tinha o coração cheio de emoção e de ternura. Os afetos são os melhores presentes que se podem oferecer.

Maria da Assunção Anes Morais
(Texto adaptado)
Publicado in “Boletim Cultural – N.º 23”, Vila Real, 2017.

29 dezembro 2017



Natal

Renasce em nós a alma de criança
Família reunida em comunhão
Os olhos ternurentos mão na mão 
As brasas crepitando na lembrança

Os olhos duma mãe de esperança
Amor a transbordar do coração 
As luzes dum pinheiro em clarão
Um canto empolgado em plena dança

Havemos de ter hoje um melhor dia
Que nos encha de amor  e de alegria
Que nos torne mais amigos por igual

Se fosse todo o ano era tão bom 
Que seja ao menos hoje ao suave som
Duma ária festiva de Natal



Custódio Montes 
(Poema inédito)

28 dezembro 2017


O Natal

O Natal brasileiro de que a minha mãe me falava, com as indispensáveis idas à praia, nunca me entusiasmou. Ao falar desse natal, a minha mãe não falava das idas ao musgo, da fogueira da praça nem do cantar dos Reis. E disso eu gostava muito. Começava a pensar nele muito tempo antes, não sei bem quanto, mas só quando chegavam a TIA e o tio Justino é que o Natal começava realmente para mim. No dia seguinte à sua chegada,   o meu pai, o tio Justino e eu íamos ao musgo. Às vezes tinha pena de arrancá-lo, tão verde e tão fofo ele estava, agarrado às paredes. Parecia veludo. Arrancado o musgo começava a construção do presépio, essencialmente a cargo do tio Justino e da minha mãe. Eu colaborava ativamente. Também os meus colegas de escola vinham muitas vezes ajudar. Fazia-se no pátio de baixo. O tio Justino começava por empilhar várias cortiças de modo a criar uma estrutura em relevo. Depois cobríamo-las com o musgo. Em seguida, com areia fazíamos uns carreirinhos, ao longo dos quais iríamos colocar várias figuras. Estas eram de barro pintado e tinham sido trazidas de Viana pelo tio Justino. Também foi ele quem fez a cabana do Menino Jesus, com uma cortiça virgem. Para além das figuras, da cabana e dos carreirinhos, havia no presépio um lago, feito com um espelho envolvido de musgo, ao qual dava acesso um regato que serpenteava ao longo da cascata e era feito com papel prateado. Havia ainda uma fogueira feita com papel celofane vermelho, coberto com galhinhos de lenha, e por baixo do qual se colocava uma lanterna acesa. Era à volta desta fogueira que se colocavam os pastores. Presa do teto havia uma estrela que iluminava os reis magos. Era de cartão coberta com papel dourado.
Para além do presépio, havia lá em casa uma árvore de Natal, e creio que seria a casa de cima a única casa da TERRA onde tal acontecia. A ideia da árvore de Natal tinha vindo com a minha mãe. Era feita com um zimbrinho que era colhido no mesmo dia em que íamos ao musgo. Os enfeites eram pompons de lã, coloridos, que eu fazia com a ajuda da Mininha, e pequenos biscoitos que a minha mãe fazia com vários formatos de estrela, de meia lua, de sino, de árvore. Na parte superior da árvore havia um grande laço de seda arranjado pela minha mãe.
Mas o Natal era muito mais que o presépio e a árvore. Era a ceia, sempre na CASA, até à morte da TIA. Comíamos todos à mesa- os meus pais, a TIA e o tio Justino, a Germana, a Balbina, o António Joaquim e a família. A ceia constava de bacalhau, polvo e pescada cozidos com batatas e couves da TERRA, que têm um sabor diferente de todas as outras que eu conheço. E tudo isto era regado com o azeite dourado das oliveiras, também da TERRA. Eu, na altura, não apreciava muito essa comida mas sabia que depois vinham as sobremesas. E dessas eu gostava. Eram as rabanadas, as filhós, os milhos doces, o arroz doce, a aletria, os fritos de jerimum, os rochedos de amêndoa. No dia de Natal, o almoço era na casa de cima. Invariavelmente era peru recheado com farofa, acompanhado de arroz com amêndoas, passas e nozes. À sobremesa eram doçarias brasileiras- quindins, bom bocado, docinhos de amêndoa, pudim de laranja. Eu gostava de ajudar a fazer estas doçarias, particularmente os docinhos de amêndoa. Eram feitos de véspera com uma pasta de açúcar, gemas e amêndoa, que era introduzida dentro de cascas de nozes para ali secar. No dia de Natal saíam das cascas docinhos de amêndoa com o formato de noz.
Depois do almoço eu ia sempre, com o meu pai e o tio Justino, ver a fogueira na praça. Ainda hoje se faz a fogueira. Antes do Natal os rapazes da TERRA vão pelas casas mais abastadas pedir lenha. As pessoas indicam-lhe onde a podem ir buscar. Na véspera de Natal lá vão eles. Após a ceia de Natal, lá pelas 10 h da noite, a lenha, grandes toros e raízes, começa ser empilhada na praça, em frente à igreja. Em seguida acende-se a fogueira. Levam-se umas chouriças para assar e assim, entre conversas, comendo chouriça assada, os homens vão passando a noite. Se há Missa do Galo, vai-se à Missa. Caso contrário por ali se fica até passar da meia-noite. A fogueira manter-se-á acesa por vários dias, enquanto a lenha durar. As mulheres não participam deste evento. Podem ir ver, passar algum tempo, mas é uma prática essencialmente masculina.
Outra boa recordação que tenho da época natalícia é o cantar dos Reis. Aí participam crianças e jovens que vão de porta em porta cantando. Lembro-me particularmente de alguns excertos de duas canções de Reis. Uma delas era:

Dai-nos leitão e cabrito, 
arroz doce e marmelada,
dai-nos vinho de há cem anos
já não vos queremos mais nada. 
Trigo e nozes e marmelada, 
lombo de porco, vitela assada, 
pão com manteiga, chá ou café
e o Deus Menino nascido é.

A outra, era a última a ser cantada:

Ao carrasco de Lisboa já lhe caiu a bolota
Se nos querem dar os Reis venham-nos abrir a porta.

E as portas abriam-se e lá vinham as nozes, a marmelada, os figos, as chouriças. Eu gostava muito de cantar os Reis em todas as casas mas, muito em especial, na casa de cima. A minha mãe preparava uma cesta com uns embrulhos feitos em papel de seda com uns grandes laços. Cada um retirava da cesta um embrulho. Era bonito, pela surpresa. Lá dentro podia haver caramelos de leite (que ela fazia tão bem), biscoitos iguais aos da árvores, docinhos recheados com amêndoa, pé de moleque. Eu ficava muito feliz até porque me parecia que a minha mãe também estava feliz.



Regina Gouveia
(Excerto de Estórias com sabor a Nordeste)

27 dezembro 2017



POEMA DE NATAL



Pediram-me um poema de Natal

e eu quase tremi com a encomenda…

Quem terá umas palhas e uma tenda

um burro e uma vaca no curral?



Se acaso encontrardes o sinal

que tire dos meus olhos esta venda,

dizei-me! Talvez eu com ele aprenda

o caminho da Paz Universal.




António Fortuna

(Poema publicado no “Notícias de Vila Real”)

26 dezembro 2017


É Tempo de Natal
Hoje, quando estava em casa a ver televisão, vi a publicidade a um brinquedo para o Natal. Estamos a quase um mês do Natal... Isto fez-me reflectir sobre o significado que tem hoje o Natal e os valores que representa (e que representava no tempo da minha mocidade)… Hoje com o individualismo do mercado, a obsessão do consumo, a globalização da cultura (o mesmo é dizer a “americanização” ou como eu mais gosto de dizer a “macdonalização” da cultura), os valores alteraram-se para bem pior e para utilizar uma frase feita “a tradição já não é o que era”. Hoje nesta cultura do stress (a vida transformou-se num verdadeiro fast-food), não interessa o que se é, mas antes aquilo que se tem. Hoje diz-se: “Diz-me o que tens, dir-te-ei o que vales”. Não interessa saber como se conseguiu o dinheiro, interessa, isso sim, é saber se se tem ou não tem, como o conseguiu, não interessa... É nesta sociedade sem valores, ou melhor, com falsos valores que se educa a nossa juventude. Apetece dizer que, algo “vai podre no Reino da Dinamarca”. E depois dizemos que esta juventude é uma “geração rasca”, “rasca” é a sociedade que transmite estes “valores”... Até mesmo o significado da dádiva de presentes pelo Natal se alterou. Hoje dão-se presentes caros para qual “novo-rico” ostentar o seu poder económico e não pelo seu verdadeiro significado que é o prazer da partilha, no sentido mais nobre desta palavra e da dádiva.
Os verdadeiros valores do Natal são a Tolerância e a Fraternidade. É por isso que o Natal é lindo, é por isso que nos toca tão fundo. Não é por um “homem vestido de vermelho e de barbas brancas” distribuir presentes à entrada de um Centro Comercial (que tem origem, nos anos trinta, quando a Coca-Cola Company decidiu usar São Nicolau nas suas campanhas de publicidade de Inverno), é pelo sentido de fraternidade, pelo calor humano de, pelo menos uma vez no ano, nos sentirmos irmãos, de fazermos parte dessa grande família que é a HUMANIDADE.
São estes os verdadeiros valores do Natal, são estes os valores que devemos ensinar aos nossos filhos e aos nossos alunos. Só assim seremos verdadeiramente educadores.
Basta ver a televisão ou ler os jornais para nos apercebermos da violência e da desumanidade que reina no mundo. A violência e a desmoralização que vemos não são obra do acaso. Elas crescem “como cogumelos” no mundo podre que todos nós ajudamos a criar, com o nosso egoísmo, com a nossa cegueira, com a nossa passividade e com a nossa sofreguidão pelo dinheiro. 
Esqueceram-se os valores, hoje só se pensa no “conforto”, no carro novo que se quer comprar, no novo telemóvel, nas férias... Não se pensa na guerra, na fome que vai no mundo, na miséria que se vive, às vezes ao nosso lado, não se pensa nos que sofrem, nos velhos sem carinho e sem o conforto de uma família. No nosso egoísmo não se “atura” o pai e a mãe que nos criou, com tanto carinho, com tanto amor e, às vezes com tanto sacrifício... Não temos “tempo” para eles...
E os nossos filhos? Quando falamos com eles? Sabemos os problemas que têm? Quem são os seus “amigos”? Como vão os seus estudos? Damos-lhes dinheiro! Sim, mas o dinheiro às vezes é o que menos interessa... Quantos problemas se evitariam, se os pais dessem mais atenção aos seus filhos!...
São estes os verdadeiros valores do Natal: a Tolerância, a Partilha, o Diálogo, o Amor e a Fraternidade. Não nos iludamos, o Natal está dentro de nós. Devemos reflectir sobre isto e fazer uma saudável autocrítica. Os pensamentos devem fazer-nos voltar a casa... à nossa casa em que ainda meninos sonhávamos com um mundo novo em que não havia fome, nem miséria. Regressemos aos valores do Natal da nossa infância, à boa e saudável ruralidade, à festa da família, do amor ao próximo. Só assim poderemos fazer de cada dia um verdadeiro NATAL.

                                                                                António Pimenta de Castro
(Texto publicado nos jornais “O Vianense” de Viana do Castelo
e “O Guerra-Zoelae” de Macedo de Cavaleiros)

25 dezembro 2017


Natais distantes

Pergunto-me o que ficou 
desses Natais distantes 
que eram vagarosos e tingiam 
da cor e do sabor de frutos estivais
os frios dias de então.

De cada um desses Natais 
que aboliam a noite,
instituíam a luz – o que ficou? 

Pouca coisa: incertos 
farrapos de memórias
que nada resgatam
e nada ressuscitam –
apenas doem.

Talvez uma abelha na janela,
perdida do seu tempo,
sofrendo a chuva,
violentando a vidraça –
e o meu irmão a rir-se disso.

Talvez a descoberta 
de um frasco esquecido com doce de ginja 
no armário do canto,
e a boca e os dedos sujos do doce
e um caroço engolido sem querer
e a vigilância das fezes.

Talvez o eco das vozes 
dos que ceavam lá em baixo
desatentos do braço que parti na neve –
e eu sem encontrar posição para dormir.

Talvez uma gota de champanhe
no fundo da taça – a mais doce
porque era a do fundo e na garrafa
não havia mais
e foi a minha Mãe que ma trouxe à cama.

Talvez o borralho, as faúlhas,
depois apenas cinza. Talvez sal.



A. M. Pires Cabral, 
In As têmporas da cinza (Cotovia, 2008)

24 dezembro 2017



A CONSOADA

Enquanto a neve caía sobre os lajedos ou nas ruas lamacentas, começando a estender, suavemente, o seu manto branco sobre as pequenas casas de granito tosco, e as ovelhas regressavam apressadamente aos redis, balindo graciosamente pelas quelhas, anunciando aos cordeirinhos, seus filhos, que chegara a hora do reencontro, após um dia inteiro pastando nos prados, a tia Prazeres ia acendendo o lume com a caruma e cavacos de pinheiro, para fazer a consoada. 
O sol que nessa altura do ano nada aquece, e que naquele dia nem se viu, ia baixando lentamente, para desaparecer, finalmente, por detrás dos pinheiros do horizonte, mergulhando a pequena aldeia numa escuridão fantástica, sobre a qual pairava uma densa neblina formada pelo fumo que saía pelos telhados das casas, já cobertos de neve. A negritude era tal que só aquela gente sabia caminhar pelas vielas estreitas, onde tudo era escuro, triste, alegrando-se apenas um pouco mais, quando, também nas ruas, a neve começava a coalhar, aveludando então tudo em redor. 
O senhor José saiu de casa, levando numa das mãos a lanterna de petróleo e na outra a ferrada. Ia à loja ordenhar o gado. 
Os filhos, o António Francisco, a Isabel e o Zé Manuel que, embora traquinas, ia embalando o último rebento, com pouco mais de um mês, seguiam todos com atenção as voltas afadigadas da mãe e colaboravam, ajeitando as cavacas da fogueira crepitante ou varrendo as lajes da cozinha, onde iam caindo as fonas e pedaços de carrasca de pinheiro. 
O avô, já com os seus setenta anos, tinha ido ao cabanal à procura de um cepo do Natal: um tronco de carvalho rijo e seco, guardado propositadamente para esta altura, que, posto na fogueira, ardia até às tantas. 
Em panelas separadas, eram cozinhados os diferentes pratos da consoada. Numa estava a cozer a couve do Natal, à qual seria misturado o trigo e pedaços de bacalhau. Na outra estavam as batatas com cebola e bacalhau. 
Na noite anterior, quando os filhos já dormiam, tinham ficado os dois - pai e mãe - na cozinha, a fazer as filhós e as fritas.
Por fim, estava tudo preparado.
O pai acabara de chegar, com a ferrada cheia de leite, tamancos fortes nos pés, salpicos de neve no chapéu e no casaco, as mãos enregeladas. 
A mesa, suspensa na parede por uma das pontas e fixa com um cravelho, era baixada, firmando-se numa perna. Estendia-se a toalha de linho branco. As batatas com a cebola e o bacalhau fumegavam no alguidar de alumínio. Noutro, de barro vermelho vidrado, estava a couve, mesmo apetitosa. A um canto da mesa estava um jarro com vinho. No centro, o pão. Todos se sentavam à mesa, no banco comprido de pinho ou nos mochos toscos, com pernas de carvalho. E comia-se com vontade, com apetite, regando-se a couve e as batatas com azeite, enquanto os mais velhos bebiam o vinho tinto gelado. 
No final da ceia, apareciam os irmãos e sobrinhos, que vinham festejar o Natal, saudar o avô e conversar à roda da fogueira, enquanto se comiam figos secos e se bebia aguardente. 
Os mais novos britavam nozes na pedra enegrecida da lareira. 
O cepo de carvalho ia ardendo e aquecendo, como símbolo da União e do Amor, da grande Festa da Família.



A. F. Caseiro Marques
In ASSIM SE MOLDAVA O BARRO,2003

23 dezembro 2017



AS CORES DO NATAL

Na aldeia de Trás-os-Montes, onde nasci, o colorido das lembranças natalinas ilumina o olhar e a memória dessa tradição. As cores tradicionalmente usadas para marcar a época eram o vermelho, o verde, o branco, o amarelo, o azul,  o prateado e o dourado; mas, muitas vezes, a cor que mais predominava nesta época era o branco da neve e das fortes geadas que cobriam toda a região de gélido frio, e nem o verde dos pinheiros sobressaía na paisagem montanhosa, ou escondia cheiros e aromas da festividade. O frio vinha embrulhado em denso nevoeiro, obrigando a um recolher quase clausura e à adoração paciente diante da fogueira do lar.
Os enfeites de oiro davam luz à tradicional festa, fazendo cintilar os embrulhos dos presentes, o amarelo dourado das palhinhas do presépio, a luz das velas e do fogo que ardia para aconchegar a alma. E, ainda, o colorido das bolas de vidro na árvore de Natal, as fitas em azul, branco, amarelo, vermelho, verde, as luzinhas a piscar e as guirlandas a enfeitar as portas.
À espera dos presentes, havia a bota ou a meia, junto à lareira, o Presépio montado numa pequena paisagem feita de musgo, trazido do monte pela pequenada, que passara a tarde a recolher o aveludado musgo junto das pedras mais altas, nos lugares mais húmidos, onde ele nasce macio e muito verde. Era tradição, e uma romaria, subir ao Monte de S. Brás. Juntos corríamos as fráguas montanhosas à procura do musgo macio que decorava o cenário do grande presépio no adro da igreja e dentro das nossas casas.
E o meu Natal sempre teve uma cor muito especial e perfumada. As violetas apareciam junto à nora,  terra húmida e bravia conservando-as cheirosas, inebriando o ambiente, sobrepondo-se ao cheiro dos pinheiros, da lareira e dos cozinhados natalícios. Como ansiava encontrá-las nas férias de Natal e fazer raminhos que depois trazia para a escola primária e oferecia à senhora professora!
Era o meu Natal violeta e não trocava essa cor por nenhuma das outras; eram as primeiras violetas que apareciam no campo, quase como por milagre; por entre a geada ou a neve. Por isso o meu Natal tem cheiro de rabanadas perfumadas, filhós violáceas, arranjos com pinhas e ramos de pinheiro e minúsculas violetas arroxeadas, florindo por entre as bagas vermelhas do azevinho.
Os olhos do meu Pai Natal eram de cor lilás e perfumavam os presentes que ficavam, à noite, debaixo do pinheirinho para serem abertos logo pela manhã, bem cedo, pela criançada.
Um dos raminhos de violetas era levado ao Menino Jesus na Missa do Galo à meia-noite e, muitas vezes, era a única saída de casa durante as férias de Natal, em casa das avós, pois o frio obrigava as pessoas a ficarem recolhidas nos seus lares; eram rigorosos os invernos transmontanos. As casas aquecidas pela lareira dançavam sombras nas paredes da cozinha, as cores do fogo crepitando, projectavam na penumbra o único filme da longa noite.
Uma grande fogueira ardia com a lenha do pinhal, o canhoto estalava, cheirava a madeira de pinho, giestas secas, estevas e rosmaninho. Os risos das crianças tinham o sabor a fumo das histórias que a avó contava, enquanto se esperava para sair para a missa ou enquanto ela fritava ao lume da lareira as filhós, as rabanadas e os bolinhos de bacalhau. O arroz doce no pote de ferro cheirava a canela e a laranja, aromatizado de sabores tradicionais, com os arabescos desenhados pela avó. A aletria amarelinha era servida nas grandes travessas de barro ou de esmalte. E pouco mais havia de doces natalícios.
O espírito do Natal, nos confins da terra enregelada, iluminava de calor humano a escuridão e o sossego do isolamento, tempos em que só havia o correio trazido uma vez por semana pelo carteiro de bicicleta. As distâncias eram maiores, e as notícias, às vezes, perdiam-se pela demora, esticando as saudades e encurtando o tempo de tristezas.
Era muitas vezes o carteiro vestido de Pai Natal que aparecia lá na aldeia e dizia às crianças que estava a substituir o carteiro, que tinha ido de férias. E lá ia a garotada toda atrás da bicicleta, a rir e a gritar com o pobre do homem, chamando-lhe mentiroso, porque sabiam muito bem que ele era o carteiro, disfarçado de Pai Natal. E o Pai Natal só vinha durante a noite e só sabia um caminho para as casas da aldeia, o das chaminés.
A ingenuidade infantil e o sonho da fantasia, com simples brinquedos de madeira ou de latão, ou bonecas de trapos ou de barba de milho, muitas vezes feitas com aproveitamento de meias velhas e cabelos de farripas de lã de ovelha, ou sobras de fio, de grossas camisolas ou gorros, teimavam em prevalecer na imaginação das crianças.
Quero acreditar que esse Pai Natal ainda hoje existe, perfumado de violetas, distribuindo palavras que ainda resistem a serem escritas.



Ana Bárbara de Santo António
Édito em Coletânea "Lugares e Palavras de Natal”, 
Lugar da Palavra Editora, vol IV


22 dezembro 2017



Lembranças de Natal…

Quando me lembro de ti
Ó Natal da minha vida
Penso até que já morri
Sem ter a vida vivida

Natal, palavra bela
Nos meus tempos de criança
Quem me dera ainda vê-la
Em olhares de esperança

É que vejo outra realidade
Que não gostava de ver
Daquele tempo ai que saudade
Agora não o quero viver

Fico demasiado aturdido
Com as falsas esperanças
Mas contudo, boto sentido
Ao que fazem pelas crianças

E hoje faz-se tão pouco
E até fazem pouco delas
Do que vejo fico louco
E as crianças são tão belas

Quero ter outros Natais
Como aqueles que já vivi
Onde os homens eram demais
Na procura do que senti

Davam tudo pelos seus
Mesmo que um pouco enganados
Não abominavam o seu Deus
Por Ele tinham momentos amados

Que hoje seja Natal
Um pouco como antigamente
Um momento de tão real
Que em nós seja presente


Armindo Loureiro
(Texto inédito, 03/12/2017)

21 dezembro 2017


LITERATURA DE NATAL


Faz sentido falar de natal?

Todo o tempo é diferente. Todo o espaço é diferente. Todos os lugares se veem diferentes. Como as pessoas. Nada de novo, portanto. Assim como o tempo, o espaço e os lugares que falam natal, encorpado da semântica, do significado, das circunstâncias, dos territórios em que é moldado. Como se fora uma veste talhada para um corpo. De preferência, seguindo as tendências da moda. O lado visual, atrativo, estilizado: um catálogo a ser vendido, após aturados estudos prospetivos. E quase tudo vai na mesma direção, num segmento previsível, terrivelmente sensabor. Após o enchimento dos olhos, quase piscos pelo excesso das luzes, sente-se o esvaziamento do balão, tocado por um presépio de musgo, timidamente colocado num cantinho da montra – global – entre a profusão de laços e laçarotes.
Se assim é, faz sentido falar de natal? Invocar o natal? Escrever as cores de natal?
Sim, faz! Natal é mensagem e metáfora de humanidade: a sua alma, o seu imaginário (como um conto das mil e uma noites), a sua magia, o seu sonho, a sua fortaleza, o seu abrigo. Raiz e matriz. Sentido. Dádiva. Em si, para si e entre si. Um mandato do espírito, um mandato do amor. Um aviso aos homens de má vontade, num tempo em que se cultua o umbiguismo (e outros ismos), as reações timóticas, a frieza (e crueza) comunicacional das redes sociais, postergando os princípios, ancestralmente herdados, na conduta social, para uma segunda ou terceira vias – ou mesmo residual: o olho no olho, a mão na mão, a fala, como processos basilares de entendimento. E é disto que se trata nas falas de natal, na troca das Boas Festas. De respeito, de boa vontade. De humanidade. 
Consequentemente, não podemos deixar de alocar a frase feita: natal é quando o homem quiser. Então, que (re)nasçam homens e mulheres que sejam mensageiros de palavras e atos de verdade. E que seja esta a época inteira em que se renovam os votos, numa celebração milenar, nascedouro de homens de boa vontade. E que, neste ano de terra queimada, nos penitenciemos dos natais adiados e irremediavelmente perdidos, em todos os lugares, prometendo intermediarmo-nos com a única língua entendida por todos: o amor.
Foi verde o nascimento do Menino. Só poderá ser verde o natal de todos os meninos. 
Honremo-lo! Agora e sempre!

Odete Costa Ferreira
(Texto de opinião inédito, 29-11-2017)
A autora escreve segundo as regras do novo acordo ortográfico
Obra de Domingos Sequeira, acervo do Museu Nacional de Arte Antiga


20 dezembro 2017

VILA REAL



Há fantasmas pelo natal

De noite
enquanto dormimos

há fantasmas que nos visitam e revisitam 
São essas as noites em que sabemos
que o mundo lá fora não dorme tranquilamente
São as mesmas noites estas em que agora escrevemos sentidos
de coisas só para nós sentidas
noites estranhas de anódinos silêncios
em que dormem apenas aqueles que podem dormir
Noites em que uma certa luz teima em chamar
não sei se para ver melhor os vultos as sombras os espectros 
não sei se para não ver melhor os três fantasmas que se aproximam 
e que não somos capazes de acarear devidamente 
que vêm não sei se de levante seguindo uma luz promissora para estenderem 
a Mão
e terem uma sopa por companhia onde escrever os sonhos perdidos
longe das luzes das árvores centrais o seu lugar o ocidente  
onde virem a jusante ou outro lugar  
De noite uma cortina 
sempre aberta e sombras nubentes desenhadas nela com que dormimos
nunca se sabe se por detrás do pano algum fantasma 
desses que estendem a mão para mover uma dama uma torre um nimbo 
o natal passado jogado como se não tivesse existido jamais
uma fogueira à volta da casa onde as sombras são o que fomos
ou somos hoje o que as sombras puderam ter sido naquela fogueira falecida 
Às duas ou às três da manhã o menino deseja continuar a ser o mesmo menino 
(ou a todas as horas) quando os três natais se aproximam dele
procurando o presépio que já não está estando em louçanas aporias  
às vinte e quatro horas da existência do dia vinte e quatro de consoada
estenderei a mão para ti desfiando cada hora cada dia e dir-te-ei 
Amigo 
para que também os fantasmas sejam parte de nós 

e assim possamos dormir
enquanto é dia




Norberto do Vale Cardoso
(Poema publicado em 2006, reescrito em dezembro de 2017)

19 dezembro 2017


Natal em mim

In memoriam de Maria Odete de Castro Tavares Gomes

O Natal evoca em mim dois sentimentos, qual deles o mais fundo e emotivo. São sentimentos antitéticos: um de alegria e completude, de crença num mundo cheio de futuro, onde tudo era novidade e deslumbramento e um outro feito de ausências, em que a falta dos que sempre estavam, se adensa e toca mais fundo, nesta quadra… 
A casa da avó Arminda iluminava-se por dentro e por fora. O lume recrudescia a cada toro que o padrinho atirava para a lareira e a cozinha aquecia e iluminava-se, fazendo brilhar o fumeiro, pendurado em varas sabiamente equilibradas em estrutura de arame, que asseguram que nenhum de nós levasse com uma peça de fumeiro em cima, durante o convívio familiar.
Minhas tias, doceiras afamadas, entravam numa roda viva: era o amassar das filhós e o tender e o fritar e polvilhar com açúcar e canela: “olha que as filhós querem-se doces!”…
Era a aletria que não podia faltar na mesa da consoada e o arroz doce e os milhos doces, por que o meu pai se “pelava”…Mas o mais trabalhoso eram as rabanadas, cujo pão demorava dias a estar no ponto e depois tinham de obedecer aos tempos certos, caso contrário transformavam-se numa papa enchumbada em leite e óleo  …E quando se entrava no grande pátio granítico da casa, cuja escadaria levava ao andar superior, vinda do frio polar do Inverno trasmontano, eu era logo imersa numa nuvem de calor e cheiros deliciosos, a canela e açúcar e limão que me faziam galgar os degraus de dois a dois para ver o que estava a acontecer na cozinha, o grande laboratório mágico, onde as poções deliciosas se fabricavam!
Depois tudo era colocado na sala grande. Esta era, aos meus olhos de menina, um lugar quase mágico, onde o tempo podia voltar para trás, cheio de retratos antigos de gente de outros tempos que me antecedera na história familiar e dezenas de fotos de pessoas que eu nem conhecia, espalhados pelos móveis e aparadores.
Os meus padrinhos, como não tinham filhos “perfilharam” mais afilhados do que é possível dizer ou saber e muitos deles faziam questão de enviar fotos que eles, gente de afetos profundos, faziam questão de ter sempre presentes… Era nessa sala, numa mesa redonda do canto que as “iguarias natalícias eram colocadas pelas "mestras cozinheiras” e eu, secretamente ia espreitar , debaixo da toalha branca de linho com que estavam protegidas de “olhares” indiscretos…Como se também o pudessem estar de possíveis subtrações…
E chegava o momento da ceia : o barulho, a confusão, a animação, que na altura me punha com um nervoso miudinho, na minha timidez de criança muito metida em si…De resto, eu e a minha prima, pouco mais nova que eu, estávamos sempre numa ansiedade a querer saber das prendas de natal, mas as regras estavam definidas e conhecíamo-las há muito: só se abriam os presentes quando se regressasse da missa do Galo, depois da meia-noite…E debaixo do pinheiro só havia o musgo que apanháramos na cortinha , com as figurinhas do presépio, mais nada..
É curioso como agora, passados tantos anos, me vêm tantas vezes à memória ditos e frases e risos e expressões daqueles que já partiram para a grande Viagem e fizeram parte de tantos natais da minha vida. A cada ano que passa sinto a sua falta com uma dor renovada e um vazio mais fundo.
Agora o Natal é o dos gadgets e das novas tecnologias, da netflix e da apple, do I-phone e dos meus filhos e da lareira com recuperador que instalámos na sala grande cá de casa para mitigar a saudade das grandes lareiras abertas dos natais antigos. Nessa altura em que eu lia até às duas da manhã, aproveitando cada dia de férias para desbravar o fantástico mundo dos livros e viajar nas histórias, que as aulas e o estudo não tinham permitido fazer durante o 1.º período…Ficava com a mão que tinha fora da cama, gelada, no quarto da minha avó materna e tinha de a ir alternando para segurar no livro, pois na aldeia o aquecimento era na cozinha e braseira a brasas na sala grande e ponto! Mas nunca ler me soube tão bem…Pois era ao mesmo tempo um desafio e um gozo enormes. E foram tantos natais a descobrir Mauro de Vasconcelos e a meninice dorida do Meu pé de laranja lima, as aventuras de Constantino, guardador de vacas e de sonhos, Quinze histórias da Mitologia e de Ficção e de Mistério…
“Ó filha munto lês tu!” -dizia a minha avó materna, a quem metia muita confusão que eu amanhecesse, entardecesse e anoitecesse, agarrada a um livro…
Às vezes dormia com ela, quando o meu avô já não estava connosco. Lembro-me que dormia sempre de camisa de dormir de flanela e era pequenina e quentinha, como só as avós sabem ser e eu encolhia-me para conseguir chegar aos seus pés e ela aquecia-me e contava-me estórias e ditos antigos e orações…-que pena tenho agora não os ter assente… Pensamos sempre que os que amamos são eternos e a sua memória não se apaga esquece, mas chega um dia em que deixam de saber quem são…
Olhando retrospetivamente, a saudade é imensa: das pessoas, dos afetos, das conversas e só é mitigada pelo amor imenso dos pais, ainda presentes e elo a esse tempo antigo e dos filhos, elo com o futuro e todos os projetos que sinto que ainda me faltam cumprir.
Muita coisa mudou em mim: os sonhos, a crença ilimitada nos outros e nas potencialidades da vida. Não o sentindo, já percorri quase meio século, mas creio que o Natal evocará sempre em mim, enquanto tiver consciência de que vivo, uma mescla de sentimentos agridoces que mais nenhuma época do ano não tem o condão de fazer!



Carla Alexandra do Espírito Santo Guerreiro
Texto inédito.

18 dezembro 2017



CÂNTICO BRANCO

Pela calada da noite, veio Quione de mansinho
Estender alvo manto pelas veredas da serra 
E o perfume da giesta, do carvalho e do azevinho.
Crepita em laudatória, cânticos que a lareira encerra.

Lá fora, o torpor dos andrajosos, gélidos desvalidos
À procura de recanto que o vento não fustigue,
Da intempérie que se abate sobre os passos doridos
Incitada por Despina, que cada pegada extingue.

Para outros, oh sublime pintura impressionista
Exuberante arraial de brilho e felicidade
Onde se veste de púrpura branca a vaidade,

Nas Selfies repetidas ao instante e ao achado
Para juntar ao álbum da fama e da posteridade
Onde não consta o gélido andarilho mal tratado.


José Maldonado
(Publicado na página de facebook do autor)
                                                                                  https://www.youtube.com/watch?v=2vjzyWE8N7w