E morreu, no passado domingo,
após uma luta cheia de esperança contra o cancro do cérebro, ele que era um dos
melhores cérebros e alma que conheci. O cérebro perdeu-se, a alma é que não.
As cinzas vão renascer nas
terras de Sendim (Miranda do Douro) e nas águas do Douro como se antecipassem a
Primavera.
Os deuses deram-lhe génio
demais para tão curta vida.
No Verão, já o pão recolhido
nas eiras (memórias da sua infância) e pintado já o bago da videira, ia fazer 65
anos.
Amadeu Ferreira –e é de um santo
que estamos a falar—nasceu em Sendim, de pais analfabetos, mas sábios; foi seminarista até ao fim do
curso (Humanidades, Filosofia e Teologia); preferiu a expulsão a ser uma
esperança do clero com viagem prometida para estudos superiores em Roma.
Mergulhado no mundo profano,
sobreviveu a dar explicações em
Bragança, em quarto partilhado com Armando Vara, foi dirigente do movimento de
extrema esquerda ( PPC(R)/UDP), deputado durante alguns dias, desiludido com a
política, irradiado do partido; foi professor de música numa escola da Outra
Banda, ainda trabalhou na construção civil, aluno à noite da Faculdade de
Direito de que foi o melhor aluno do curso, quer do diurno quer do nocturno.
Conhecemo-nos há 40 anos.
Durante tempos, seguindo caminhos não cruzados, não nos encontrámos. Um dia,
por casualidade, parámos na mesma estação de serviço. E começámos a conversar
como se o último encontro tivesse sido ontem. Eu acabara de receber de França,
os três volumes da Histoire intérieure du
parti communiste de Philippe Robrieux,
um antigo trotkista. Emprestei-lhe os volumes e durante tempos discutimos,
ou melhor, debatemos este clássico, onde já aparece a vertente do PCP
português. Nada do que é humano era alheio a Amadeu Ferreira.
Terminado o curso, com uma
dissertação sobre os Valores Mobiliários cuja bibliografia era escassa ( o
último trabalho com alguma profundidade já teria mais de 50 anos ) acabou por
ser convidado para a CMVM (Comissão de
Mercados de Valores Mobiliários), onde chegou a vice-presidente e docente da
Faculdade de Direito.
Nunca abdicou a boina espanhola
nem do bigode. Todos os meses andava 500 quilómetros
para visitar os pais e pelas manhãs podíamos vê-lo na horta( como eu vi, num
fim de semana que passamos em sua casa) a regar o cebolo ou orgulhar-se das
couves tronchudas onde as gotas de orvalho mais pareciam lágrimas de alegria.
Lutador até ao fim, com
outros mirandeses, homens de planalto, celtas e judeus, o Amadeu, cuja família
tem por alcunha os Bandarras, conseguiu que o mirandês se transformasse, por
aprovação na Assembleia da República, a
segunda língua oficial do País. E começou a traduzir com o pseudónimo, ou heterónimo, como queiram,
de Fracisco Niebro ( Niebro em mirandês significa zimbro) a Mensagem de Pessoa, Os Lusíadas, o Asterix, os Quatro
Evangelhos da vulgata de S. Jerónimo que os traduzira do hebraico para o
latim, e não da versão Septuaginta em grego.
Traduziu os clássicos, que
ele tanto amava: Virgílio, Horácio e Catulo. Hesíodo, o poeta do Trabalhos dos Dias será a sua fonte para
o livro de poemas Ars Vivendi,Ars
Moriendi que eu, a seu pedido, traduzi para mirandês, utilizando um
dicionário da sua autoria e do filho Pedro Ferreira, que ainda não está publicado,
com a ajuda preciosa de António Cangueiro que, até ao fim dos dias do Amadeu, foi mais do que o seu secretário. Amadeu
lúcido, mas já sem ver, pedia a António que lhe lesse e ditava-lhe os últimos
textos que pensou antes de morrer.
Toda ou quase toda a a sua
obra e o seu curriculum podem ser consultados nas 295 páginas que Hirondino
Fernandes lhe dedica na Bibliografia do Distrito
de Bragança (II volume).
Na ficção, baseada em longas
investigações na Torre do Tombo, deixou
o Tempo de Fogo, um libelo acusatório
das perseguições da Inquisição em terras de Miranda.
Amadeu até na morte foi
grande e discreto. Deixou-nos como último acto da sabedoria a Velhice , a lembrar o De Senectute de Cícero.
O jovem que conheci há 40
anos era o mesmo que conheci até ao passado domingo.
Se teve pecados, não lhos
conheço. A tê-los, foram já santificados.
Fazes-me falta, Amadeu.
Rogério Rodrigues
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