Literatura, sociedade e
ironia em Passos perdidos de Ernesto
Rodrigues
Por
Norberto Francisco Machado da Veiga[1]
Este
confirmado romancista teve a coragem e a sageza de satirizar com grande
mestria, acutilância e sentido de opalinidade histórica os tempos hodiernos, no
geral, e os conluios que sempre se estabeleceram entre política e economia, em
particular. Enresto Rodrigues revela ousadia ao abordar este tema premente na
nossa sociedade e ao pôr a descoberto as teias que são urdidas no santuário da
democracia e que têm enredado o país, desde as sementes de Abril até ao
presente.
O
título Passos Perdidos só é
identificável pela fotografia do espaço homónimo do edifício da Assembleia da
República que serve de capa ao romance. No entanto, este título é polissémico,
uma vez que perdidos, ou melhor, gorados foram, também, os intentos dos
corruptores.
A
obra abre com uma epígrafe retirada da Arte
de Trovar, capítulo LX, “Dos que furtam com unhas políticas” que dá, ab initio, o mote para a trama do
romance e permite, segundo cremos, ao leitor inferir o tema a escalpelizar na
obra.
Passos Perdidos
erguer-se como uma obra fortemente estruturada, visto que é composto por
dezasseis capítulos, agrupados em duas partes (cada uma com oito capítulos),
note-se a simetria, seguidos de um sucinto, mas elucidativo epílogo. Quanto à
estrutura, o romance apresenta duas partes: a primeira subordinada ao título “A
queda de um Anjo” que, sem dúvida, faz ressoar na memória literária do leitor a
obra homónima de Camilo. Outra ilação que o leitor facilmente estabelecerá
prende-se com a associação de ambos os protagonistas. João Félix Filostrato é,
de imediato, associado à imagem de Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda.
Contudo, esta associação perde nitidez com o título da segunda parte do romance
“Redenção”, indicando, desde logo, uma inflexão de conduta em relação ao modelo
literário adotado por Ernesto Rodrigues. Temos, então, uma queda mais
metafórica do que real, uma vez que a mesma não passa de um subterfúgio para
desvendar o ardil, por um lado, e assumir as responsabilidades pretéritas, por
outro.
Que
Camilo e Eça, nomeado na obra pelo título do romance O Primo Basílio (p. 101), são vultos a quem Ernesto Rodrigues
presta contínua e apurada vassalagem corrobora-o, para além do que já foi dito,
o facto de a intriga do romance ser narrada, nos onze primeiros capítulos, em
analepse pela personagem João Felix Exposto. Este narrador/personagem é fruto
de uma relação da juventude do deputado João Félix Filostrato, que, também,
ignorava este facto. O ritmo cadenciado e preciso da narrativa, mais uma vez a
fazer lembrar os dois romancistas do século dezanove, e o desenrolar programado
da história prendem o leitor ao texto.
O
tempo da ação, à semelhança do que acontece na tragédia, é bastante concentrado
em, apenas, nove dias. O narrador desfila diante dos nossos olhos, como se de
uma representação teatral se tratasse, os acontecimentos que, efetivamente, vão
sendo apreendidos pelo leitor.
Porquê
literatura? Porque o romance está pejado de referências literárias tanto
explícitas como implícitas. Permito-me, apenas, recordar, não querendo ser
exaustivo: Camões, Bocage e Garrett. Termino com a alusão à “Lacailândia”, isto
é, Portugal, onde ressoam ecos da obra “A Montanha da Água Lilás” de Pepetela.
Todo
o romance é um retrato irónico da sociedade atual, lembrando a arma mais eficaz
de Eça. É patente a intenção do autor em desvelar a realidade portuguesa atual,
recorrendo a truísmos e a provérbios, por vezes alterados, na senda de
Saramago, para provocar no leitor a reflexão, durante o ato de ler, e levá-lo,
como é apanágio do teatro épico, à ação, no final da leitura.
Concluímos,
asseverando que Ernesto Rodrigues não ficou aquém dos dois modelos literários,
que se propôs preitear neste seu livro, uma vez que as personagens de Passos Perdidos não destoam das que
Camilo perpetuou, nos seus romances. Por outro lado, qualquer leitor mais
atento desta obra não hesitará em apelidá-la de queirosiana, devido à forma como
a realidade portuguesa atual, filtrada pela ironia, se encontra plasmada nele.
Bragança, 31 de dezembro de 2014
[1] Doutorado em Literatura Portuguesa,
poesia contemporânea, pela Universidade de Salamanca homologado pela
Universidade do Minho.
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