19 janeiro 2015

A Biblioteca de Babel, Jorge Luís Borges, por José Mário Leite

Do editor de texto à wikipédia
(de Gutenberg a Borges)
  
“ O universo (a que outros chamam a Biblioteca) compõe-se de um número indefinido e, talvez infinito, de galerias hexagonais...”

“...por uma linha razoável ou uma notícia correcta há léguas de insensatas cacofonias, de embrulhadas verbais e incoerências.”

A Biblioteca de Babel, Jorge Luís Borges

Borges e a embaixada Moncorvense
Este meu texto não faz parte da wikipédia. Pertencerá ao ciberespaço quando o Leonel de Brito o publicar no seu blog ou noutro local que entenda. Mas está, de há muito, contemplado na Divina Biblioteca pormenorizadamente concebida e descrita pelo escritor argentino de ascendência moncorvense, Jorge Luis Borges. Não só este texto mas todos os outros que o antecederam (usei algumas crónicas antigas e outros registos meus para o elaborar), bem como todas as versões, correções e revisões que com a ajuda e contributo da Lurdes concorreram para a versão final que enviei ao Lelo de Moncorvo. E todas as variações que venha mais tarde a conceber, escreva-as ou não, publique-as ou guarde-as na gaveta do meu computador. Usando já não caneta de tinta permanente ou esferográfica, mas o editor de texto que me permite escolher sucessivamente cada um dos caracteres do alfabeto justapondo-os para compor palavras e agrupando-as para formar frases, parágrafos, textos tal como Johannes Gutenberg concebeu e implementou. Na prática nasceu no século XV, pelas mãos deste inventor germânico o primeiro editor de texto. Tal como a wikipédia tem a sua génese em Buenos Aires na descrição borgiana. Os computadores e os programas informáticos que hoje usamos com os mesmos fins apenas vieram mecanizar e facilitar a sua utilização. Sendo certo que com a possibilidade de introdução de imagens os editores de texto realizam a totalidade da proposição gutenbergiana, já a wikipédia tem ainda um longuíssimo caminho (provavelmente de extensão infinita) para realizar a conceção borgiana apesar da sua (aparente) limitação.
 É por causa desta suposta limitação que a seguir descrevo que me é apontada a falta de rigor quando (re)afirmo a existência deste texto no universo hexagonóide – apesar das dúvidas que me assaltam sobre o acerto do uso desta palavra ela existe em número quase infinito no referido repositório – tal como recentemente garanti que o célebre e celebrado Aleph está ali contido, descrito e explicado. Porque, o sistema descrito e largamente difundido tem regras precisas e limitativas. Os volumes que compõem o universo de Babel têm um formato rígido: quatrocentas e dez páginas cada um, quarenta linhas por página e oitenta caracteres por linha. Um milhão, trezentos e doze mil simbolos gráficos iguais ou diferentes, os que Gutenberg idealizou e usou e todos os demais sucedânios. Como posso eu garantir que cabem neste “espartilho” os textos que escrevo e as descrições do própio autor das Ficções? Porque, como atrás fui “desvendando” essa limitação é aparente. Existe, suponho eu, apenas para satisfazer o génio exigente do autor e para que a descrição obedecesse ao seu critério de descrição exaustiva. Que aliás, independentemente, dessa mesma “métrica” a própria descrição traz consigo a forma de dela se libertar.
Como a biblioteca tem uma extensão tendencialmente infinita, garantindo a exaustão de todas as combinações permite que qualquer obra com dimensão superior ao modelo base seja perfeitamente possível que a descrição perfeita no tamanho modular terá a correspondente continuação num outro local, num outro volume. Que pode, como a seguir se demonstrará, ter um tamanho igual ou inferior ao padrão. Porque um dos caracteres aceites é o espaço, que é o separador de palavras. Por isso mesmo haverá inúmeros documentos com tantas repetições do caracter espaço, quantas as necessárias para que os restantes se combinem em todos os textos que garantam o tamanho efetivo (conjunto de caracteres legíveis) que se pretender, inferior ao standard e com a formatação desejada. Resolvido o tamanho superior e inferior tudo o resto fica, por definição, contemplado na belíssima prosa de Borges.

Tal como o processador de texto potencia e realiza o conceito de Gutenberg, igualmente os computadores podem ser programados para materealizarem a fabulosa biblioteca que apenas pôde existir concetualmente. Basta escrever um programa simples que produza, sucessivamente e em ciclos iterativos, todos os caracteres dos diferentes alfabetos, para cada uma das posições de cada uma das obras. O repositório deverá ser digital. Não só porque será de difícil armazenamento se passado a papel, como isso permitirá por um lado usar as ferramentas de pesquisa e fazer uma depuração de tudo o que objetivamente não faça qualquer sentido de forma simples e automática que, como o próprio autor admitiu, em nada diminui a grandeza do empreendimento. “A Biblioteca é tão enorme que toda a redução de origem humana se torna infinitésima”. Humana ou mecânica, acrescentaria eu, desde que limitada ao acessório e consensualmente aceite como desnecessário e absurdo, tal como a repeitção exaustiva de um único caracter.
Mesmo tendo em devida conta uma outra limitação de apenas serem admissíveis vinte e cinco símbolos gráficos –  às vinte e duas letras do alfabeto juntou dois sinais de pontuação,  a vírgula e o ponto, acrescidos do espaço. Mas como todos os caracteres serão conjugados em todas as suas combinações possíveis, facilmente se deduz que em algumas dessas variações parecerá a descrição dos caracteres “em falta”. Com esses mesmos símbolos, que não haja dúvida alguma, para além de inúmeras obras inúteis, disparatadas, sem qualquer sentido, absolutamente estúpidas e horríveis, tudo o resto que interessa existe neste local fabuloso, ali hão-de existir todas as biografias de todos os homens que nasceram, que hão-de nascer e que nunca nascerão. As reais, as romanceadas e as totalmente inventadas.
Existirão todos os tratados científicos, a sua prova e a sua refutação. Verdadeiras e falsas.
Todos os romances, todas as edições, todas as revisões, análises criticas, ensaios elogios e detracções.
Todos os livros escritos, pensados, corrigidos, destruídos, editados, “engavetados”, deitados no lixo, rasurados ou simplesmente esboçados...desde que tenham o formato de 410 páginas com 40 linhas de 80 caracteres. E, ainda assim para qualquer livro ali existente haverá igualmente, na mesma, milhões de livros quase iguais e outros tantos absolutamente opostos. Quer nos textos, quer nos conceitos. Para um dado livro há trinta e dois milhões, e oitocentos mil livros que diferem deste apenas num caracter (nmero que resulta da multiplicação de 25 – número de caracteres diferentes admitidos por Borges – pelos 1.312.000 caracteres que cada livro tem). Assim se pode imaginar o valor astronómico que um único tema pode suscitar nesta fabulosa estrutura.
E, como atrás demonstrei, todos os que possam ter um tamanho inferior. Ou superior. Desde que possa ser obtido pela junção de um ou vários dos outros de tamanho padrão ou outro.

Haverá quem garanta que este desiderato concorre com a intenção da Unesco de reconstruir a fabulosa Biblioteca de Alexandria onde se reúnam cópias de todas as obras existentes. De todas as obras relevantes, entenda-se.
Apesar de ambas as Bibliotecas terem uma vocação universal, as semelhanças terminam aí. Uma delas existe desde sempre e será eterna. A sua criação “só pode ser obra de um deus”. A outra é obra humana e a sua existência limitada no tempo (foi criada na antiguidade, destruída, foi reconstruída e há-de destruir-se um dia, por causas naturais ou outras).
Na Biblioteca de Babel há, garantidamente a história detalhada da Biblioteca de Alexandria. O pormenorizado relato do seu nascimento e destruição. Do seu renascimento e do fim definitivo, com a marca exata do tempo e circunstâncias em que acontecerá. E todas as histórias e lendas, verdadeiras e falsas e as negações das mesmas, associadas ou associáveis ao arquivo egípcio.
Na Biblioteca da Alexandria não há nenhum livro que descreva exaustivamente e com exactidão a Biblioteca Universal. Nenhum relatará a sua génese. Nenhum terá notícia da sua extinção.
A primeira “perdurará: iluminada, solitária, infinita, perfeitamente imóvel, armada de volumes preciosos, inútil, incorruptível, secreta”.
A segunda, limitada no tempo e no espaço, interactiva, útil e adulterável será pública e dedicada exclusivamente a “disseminar o conhecimento entre os diferentes povos e nações do mundo”. Apesar de monumental será limitada também no espaço e destinar-se-á a conter os tratados científicos devidamente certificados e so seus eventuais contraditórios se, e APENAS SE estes forem relevante para o conhecimento.

Este meu escrito (ou qualquer um que eu venha a escrever, por muito que viva e escreva) não tem lugar na mais pequena e insignificante estante da Biblioteca egípcia. Nem tão pouco num dos seus inúmeros caixotes do lixo...
Contrariamente, existe, desde sempre, na Biblioteca Universal. Escrevi-o mas poderia simplesmente tê-lo encontrado. Não o fiz porque seria tarefa bem mais complexa e incomensuravelmente mais demorada. Artigos com esta dimensão, assinados por mim e com este título, existem milhões na Biblioteca Universal. Desde os que diferem deste apenas numa letra, numa vírgula ou na simples disposição gráfica, até aos que, igual a este têm apenas e precisamente o título e a assinatura. Um deles era exactamente igual ao descrito por Jorge Luís Borges, excepto nestas duas características: tinha o título igual a este e era assinado com o meu nome. O seu conteúdo, contudo, era precisamente a repetição exaustiva e enfática dos caracteres M C V tal como o livro de quatrocentas e dez páginas encontrado pelo pai do escritor argentino, num hexágono do circuito quinze noventa e quatro da Biblioteca original.
Provavelmente consumiria toda a minha vida para o identificar. Encontrar uma determinada obra na Biblioteca é milhões de vezes mais difícil do que ganhar o totoloto. É por isso mais fácil escrever o que quer que seja, desde uma simples nota de rodapé a uma obra-prima, do que encontrá-lo na sua verdadeira e genuína forma na Biblioteca de Babel. Pelo contrário, no repositório magrebino não há obras que não tenham sido devidamente escritas e,quase exclusivamente, na sua versão final. Encontrar qualquer uma delas poderá ser difícil, mas incomparavelmente mais simples porque não se confundirá com nenhuma das que a mimetizam e que aqui não têm lugar.
  
Nota Final:

Pode parecer que em tese se afirma foi Borges o inventor da Biblioteca de Babel a que também chamou de Biblioteca Divina ou Biblioteca Universal. Não. Jorge Luís Borges apenas a teorizou. Regulou-a. Estabeleceu os fundamentos teóricos e a sustentação programática da sua existência. Postulou as leis, os princípios, a regulamentação e a estrutura a que obedece. Numa lógica borgiana com requisitos particulares “factuais” e até restritivos, como era seu apanágio. Mas esta biblioteca existe desde sempre. Como ele próprio, aliás, claramente afirma.
Nem sequer é dele a primeira descoberta. A enunciação e implementação do princípio fundador. Este pertence a Johannes Gutenberg no ido século XV.
Borges teorizou-a. Nada fez para a implementar. Mas a sua concretização física já está em marcha. Em computadores, claro. De forma desordenada, ainda. Pouco sistemática. Sem obediência rigorosa às regras. Não há a conjugação exaustiva de todos os caracteres (há alguns que são muitíssimo mais usados que os outros). Por um lado, são raríssimos os textos com um único carácter, por outro existem muitos textos absolutamente iguais o que, sendo um desperdício representam também uma desobediência clara aos postulados primários.
Mas nem são essas as maiores lacunas da implementação, dita virtual, da BIBLIOTECA. O pior é a falta dos escritos em línguas desconhecidas e os tratados e enunciados sobre coisas e acontecimentos ainda não inventados nem ocorridos.
Começou com Alan Turing na primeira metade do século XX em que foi possível guardar e organizar informação em máquinas eletrónicas. Teve um incremento substancial na segunda metade com Timothy Berners-Lee com a introdução da world wide web e de forma mais organizada com a wikipédia de Jimmy Wales e Larry Sanger já neste século. Não é A BIBLIOTECA DE BABEL, mas é um começo com a virtualidade de mostrar a forma que o Divino Repositório poderá/deverá ter quando forem cumpridas todos os postulados borgianos.
Abusivamente (ou não) acrescentarei a estes, um princípio básico que carece de demosntração pela evidência intrínsica da sua formulação, tal como Wolf Singer o enunciou: “ Com 26 letras é possível escrever a literatura de todo o mundo pela simples recombinação dessas letras de modo flexível”

José Mário Leite

12 janeiro 2015

O MEDO DO SEXO, UMA OBSESSÃO PERMANENTE! O FIO DAS LEMBRANÇAS, por Teresa Martins Marques

 Teresa Martins Marques e Amadeu Ferreira
(Excerto da Biografia que escrevo sobre Amadeu Ferreira)

O seminário de São José de Bragança dispunha de um regulamento datado de Março de 1934, qe era também preceituado em Vinhais. Trata-se de um opúsculo de 88 páginas e 175 artigos. O seu autor, D. Luís de Almeida, colige vários regulamentos “já abonados pelos bons resultados da sua adopção”. Consultei a edição em vigor ao tempo em que Amadeu Ferreira frequentou estes seminários, ou seja, a 2ª edição, revista e retocada, publicada na Escola Tipográfica, em Junho de 1957, com prefácio de D. Abílio Vaz das Neves, que nos diz: “ O Regulamento de um seminário é a estrutura moral da vida de formação de um neo-sacerdote. Tomado como tal, e observado com consciência, ajuda maravilhosamente a formar os caracteres dos obreiros da vinha do Senhor […] lapidando pedras preciosas, ajudando a edificação da Jerusalém Celeste.”

Este regulamento era instilado na alma dos seminaristas, que deviam “estimá-lo em grande apreço, manuseá-lo frequentemente deixando-se impregnar e saturar o seu espírito”, através da leitura semanal, comentada no refeitório e noutros lugares, que o Reitor entendesse oportunos (pp. 31 e 69).

09 janeiro 2015

Tempo e memória em El Color de las Hayas de Epigmenio Rodrígues, por Norberto da Veiga

Tempo e memória em El Color de las Hayas de Epigmenio Rodrígues

Por Norberto Francisco Machado da Veiga[1]

Este primeiro andamento da trilogia “DE INFERNIS” deixa, desde já, uma nostalgia no leitor e aguça o apetite para as restantes obras, esperando-se que vejam a luz do dia, quantos antes.
Começo por felicitar o autor pelo belo trabalho que escreveu, pois foi um prazer ler e reler algumas passagens que convocaram, de forma nostálgica, as minhas recordações de infância, passada numa pequena povoação análoga àquela que é descrita na novela.
Foi particularmente feliz a eleição da epígrafe de Italo Calvino, porque permite, desde logo, estabelecer inferências que podem auxiliar a compreensão global do texto, assumindo-se, ab initio, como uma possível porta de entrada para este “Inferno” que é, afinal, a vida terrena, que o autor escalpeliza, de forma inequívoca, ao longo da novela.
Segundo creio, é nesse sentido que deve ser descodificada a citação de Virgílio, Écloga, III, 93, onde se sugere ao leitor a associação da serpente com o pecado/o inferno/a dor, ou seja, com o sofrimento humano, que é a pedra de toque de toda a obra.
Outra opção, do autor, que, em meu juízo, valoriza o texto é o uso do latim nos títulos dos capítulos, uma vez que não soa a anacrónico, mas, pelo contrário, dá ao livro um caráter académico e erudito.
Quanto ao tempo, recuperado pela memória prodigiosa do autor/narrador, é trabalhado magnificamente, apesar das diversas analepses. Realço, também, a circularidade da novela que constitui mais um motivo de empatia com a narrativa, prendendo o leitor ao texto, de forma quase viciante. O ritmo do relato, que é rápido, e as referências cronológicas mais explícitas e concretas, nos últimos capítulos da obra, amplificam, ainda mais, o prazer da leitura.
Dos temas aflorados na obra, destaco: a sangria das aldeias, que se viram privadas da sua população mais jovem e útil, que partiu em busca de melhores condições de vida; as relações entre as pessoas do campo, em especial nos negócios de feira; o movimento de retrocesso daqueles que, após uma vida de trabalho em terras longínquas, regressam para desfrutar do merecido remanso, na quietude da terra natal.
Ao lermos “El Color de las Hayas, Hacia la Mitad del Ontoño” de Epigmenio Rodrígues, por momentos, vem-nos à memória os contos mágicos de Torga, sobretudo, nos conflitos interpessoais e nas paisagens bucólicas e esplendorosas, que ambos nos oferecem. Parece-me que, apesar de o leitor ser transportado para o passado (o tempo mítico e onírico da infância e adolescência do autor/narrador, recuperado em flashback pela memória límpida do mesmo), o objetivo do autor/narrador é levá-lo, inequivocamente, a refletir sobre as questões atuais e prementes do homem hodierno que, afinal, não são tão díspares, como à primeira vista possam parecer, daquelas que são dissecadas na obra.
Reafirmo, mais uma vez, que toda a narrativa tem o condão de transportar o leitor para o mundo mágico e inesquecível da infância, esse paraíso perdido e irrecuperável, como bem asseverou Pessoa. À mesma conclusão chegará o leitor de “El Color de las Hayas” no término da narração. Importa, também, salientar, convocando, de novo, Torga para corroborar as suas palavras, que “Em qualquer aventura, (eu digo leitura) o que importa é partir, não é chegar”.
Concluo reiterando que, segundo creio, os leitores "devorarão" as mais de trezentas páginas do livro, escrito com mão firme e astuta, onde é percetível a deslumbrante música da linguagem e o cadenciado ritmo narrativo, mestria que atesta o labor literário do autor.

Bragança 01 de janeiro de 2015



[1] Doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de Salamanca.



Tiempo y memoria en El color de las hayas, de Epigmenio Rodríguez

Por Norberto Francisco Machado da Veiga[1]

            Esta primera entrega de la trilogía “DE INFERNIS” deja, desde el primer momento, una nostalgia en el lector, y estimula el apetito para las restantes obras, esperando que vean la luz del día cuanto antes.
            Comienzo por felicitar al autor por la hermosa obra que ha escrito, pues fue un placer leer y releer algunos pasajes que me trasladaron, con nostalgia, a mis recuerdos de la infancia, que transcurrió en una pequeña población similar a la que se  describe en la novela.
            Me ha parecido muy acertada la elección, en las citas, del pasaje de Italo Calvino, porque ayuda a inferir algunos elementos que contribuyen a la compresión global de la obra, constituyéndose, abinitio, en una posible puerta de entrada a este “Infierno” que es, a la postre, la vida terrenal, y que el autor desarrolla, de forma inequívoca, a lo largo de la novela.
            Pienso que es en ese sentido en el que debe ser interpretada la cita de Virgilio (Écloga, III, 93),  donde se sugiere al lector una asociación de la serpiente con el pecado/el infierno/el dolor, o sea, con el sufrimiento humano, que es la piedra de toque de toda la obra.
            Otra decisión del autor, que, en mi opinión, realza el valor de la obra es el uso del latín en los títulos de los capítulos, pues no resulta anacrónico, antes al contrario, da al libro un carácter académico y erudito.
            En cuanto al tiempo, recuperado por la memoria prodigiosa del autor/narrador, está magníficamente trabajado, a pesar de las diversas analepsis. Es reseñable, también, el carácter circular de la novela, lo que constituye un motivo más de empatía con la narración, enganchando al lector a la historia de una manera poco menos que adictiva. El ritmo del relato, vivo, y las referencias cronológicas más explícitas y concretas, en los últimos capítulos de la obra, incrementan, aún más, el placer de la lectura.
            De entre los temas abordados en la obra, considero destacables: la sangría de los pueblos pequeños, que se han visto privados de la población más joven y útil, que se fue en busca de mejores condiciones de vida; las relaciones entre las personas del medio rural, en especial en el negocio de las ferias de ganado; el retorno de aquéllos que, después de una vida de trabajo en tierras lejanas, regresan para disfrutar de un merecido descanso en la quietud de su tierra natal.
Al leer “El color de las hayas, hacia la mitad del otoño”, de Epigmenio Rodríguez, nos vienen a la memoria, por momentos, los cuentos mágicos de Torga, sobre todo en los conflictos interpersonales y en los paisajes bucólicos y esplendorosos que ambos nos ofrecen. Me parece que, pese a que el lector es transportado hacia el pasado (el tiempo mítico y onírico de la infancia y la adolescencia del autor/narrador, recuperado en flashback por la memoria límpida del mismo), el objetivo del autor/narrador es llevarlo, inequívocamente, a reflexionar sobre las cuestiones actuales y apremiantes del hombre de hoy, que, al fin y al cabo, no son tan dispares como podría parecer a primera vista de aquéllas que se abordan en la obra.
Reafirmo, una vez más, que toda la narración tiene el poder de transportar al lector al mundo mágico e inolvidable de la infacia, ese paraíso perdido e irrecuperable, como bien afirmó Pessoa. A esa misma conclusión llegará el lector de “El color de las hayas” al final de la narración. Es importante, también, señalar, citando de nuevo a Torga para corroborar sus palabras, que “En cualquier aventura (yo digo lectura) lo que importa es partir, no llegar”.
Concluyo reiterando que, estoy seguro de ello, los lectores “devorarán” las más de trescientas páginas del libro, escrito con mano firme y astuta, en el que se percibe la música deslumbrante del lenguaje y el cadenciado ritmo narrativo, lo que da fe del trabajo literario del autor.

Bragança, 01 de enero de 2015


[1]Doctor en Literatura Portuguesa por la Universidad de Salamanca.

08 janeiro 2015

Ernesto Rodrigues - 40 anos de vida literária


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Fonte: Jornal de Letras / 10 a 23 de Dezembro de 2014

06 janeiro 2015

O OURO E A VELHA, por José Mário Leite

Nos 40 anos de Vida Literária de Ernesto Rodrigues - 
Biblioteca Municipal de Bragança
Em Junho de 1974 eu tinha dezassete anos e pouco sabia de mim. Descia a rua Almirante Reis até à Praça da Sé e entrava no Chave d’Ouro para tomar café. O Ernesto acolhia-me com um estranho sorriso “Então meu velho?” e o Alcides atirava-me um aceno. No centro da mesa, aberto, o Mensageiro de Bragança a que familiarmente
nos referíamos apenas como O Mensageiro. Fazia nesse ano 34 anos de existência (o dobro da minha vida) mas para mim existia desde sempre. Desde que me conhecia.
 A Praça da Sé era, nessa altura e desde sempre também, jurava eu, o centro do mundo. O Chave d’Ouro era o Sanctum Sanctorum, ladeado pelo juvenil Cruzeiro e pelo maduro Flórida. Era no Chave d’Ouro que se reunia a trupe do Mensageiro. Com a minha entrada para o Liceu, vindo do Colégio de S. João de Brito, em 1972, adquiri a faculdade de frequentar este salão térreo em forma de U imperfeito, em que muitas vezes se entrava sorrateiramente pela porta da rua Direita, vindo da Livraria Mário Péricles com um livro escondido, diretamente da secção de Culinária. Lembro-me do Alcides trazendo debaixo do braço A Funda do Artur Portela Filho, com capa vermelha onde figurava um busto branco com um buraco no meio da testa. Garantia aquele meu amigo que a edição seguinte sim ia ser “coisa boa de se ver” pois o busto da capa aparecia com a cabeça feita em cacos. O Ernesto chegava com os seus ilegíveis manuscritos, cheio de ideias e projetos. Haveria de me garantir, numa daquelas mesas, que o futuro lusitano era, seguramente, vermelho. Mas isso seria mais tarde, cabeludos, ambos, barbudo e revolucionário ele, eu alaranjando e com uma penugem bigodesca no lábio superior. Havia outros que eu conhecia menos bem, mas cuja fama, talento e importância invejava. Eram do Mensageiro. Estudantes liceais que escreviam, publicavam, faziam teatro, tertuleavam, ensaiavam e dirigiam secções literárias e de cultura. Eu também escrevinhava umas coisas, algumas delas tinham sido publicadas num jornal de Mirandela, fazia e escrevia teatro. Mas não era do Mensageiro. O Ernesto José Rodrigues, que já na altura indiciava claramente a superioridade que o seu brilhante percurso haveria de confirmar, era um dos meus amigos mais antigos. O Alcides informava-me sobre os livros a pedir, em voz baixa, na Mário Péricles. Com o Carlos Pires falava muitas vezes e cheguei a beber uns finos com tremoços. Trocámos ditos sobre o Carlinhos da Sé e o Laribau. Tomei café com o Marcolino e lembro-me de me ter cruzado várias vezes com o Teófilo. Mas eles eram do Mensageiro e eu não. E isso fazia, no auge dos meus dezassete longos anos, toda a diferença.
 Generosamente o Ernesto convenceu-me que eu podia enviar um dos meus poemas para análise na secção de poesia do Mensageiro. E eu enviei. “É velha, muito velha, a minha aldeia / Mais velha que a mais velha das velhas da minha aldeia...” dizia. Foi publicado.
 Corria, estridente, o ano de 1974. Vermelho como o Ernesto dissera. Estourando com todas as convenções como o Alcides previra. Eu alaranjava, cabeludo, arremedo de bigode a enfeitar-me o lábio e tinha dezassete anos. Pouco sabia de mim. Dentro desse pouco rebentava o muito: eu também já era do Mensageiro. A minha velha aldeia fora a Chave d’ Ouro, na mão do amigo de sempre, que abrira a porta para a tertúlia mais importante do Mundo e da Praça da Sé. Que me acolheu de novo, quarenta anos depois, na Biblioteca Adriano Moreira, em homenagem ao mais brilhante de todos: Ernesto José Rodrigues!.
Obrigado velho amigo.

Um abraço!

05 janeiro 2015

Literatura, sociedade e ironia em Passos perdidos de Ernesto Rodrigues, por Norberto da Veiga

Literatura, sociedade e ironia em Passos perdidos de Ernesto Rodrigues

Por Norberto Francisco Machado da Veiga[1]

Este confirmado romancista teve a coragem e a sageza de satirizar com grande mestria, acutilância e sentido de opalinidade histórica os tempos hodiernos, no geral, e os conluios que sempre se estabeleceram entre política e economia, em particular. Enresto Rodrigues revela ousadia ao abordar este tema premente na nossa sociedade e ao pôr a descoberto as teias que são urdidas no santuário da democracia e que têm enredado o país, desde as sementes de Abril até ao presente.
O título Passos Perdidos só é identificável pela fotografia do espaço homónimo do edifício da Assembleia da República que serve de capa ao romance. No entanto, este título é polissémico, uma vez que perdidos, ou melhor, gorados foram, também, os intentos dos corruptores.   
A obra abre com uma epígrafe retirada da Arte de Trovar, capítulo LX, “Dos que furtam com unhas políticas” que dá, ab initio, o mote para a trama do romance e permite, segundo cremos, ao leitor inferir o tema a escalpelizar na obra.
Passos Perdidos erguer-se como uma obra fortemente estruturada, visto que é composto por dezasseis capítulos, agrupados em duas partes (cada uma com oito capítulos), note-se a simetria, seguidos de um sucinto, mas elucidativo epílogo. Quanto à estrutura, o romance apresenta duas partes: a primeira subordinada ao título “A queda de um Anjo” que, sem dúvida, faz ressoar na memória literária do leitor a obra homónima de Camilo. Outra ilação que o leitor facilmente estabelecerá prende-se com a associação de ambos os protagonistas. João Félix Filostrato é, de imediato, associado à imagem de Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda. Contudo, esta associação perde nitidez com o título da segunda parte do romance “Redenção”, indicando, desde logo, uma inflexão de conduta em relação ao modelo literário adotado por Ernesto Rodrigues. Temos, então, uma queda mais metafórica do que real, uma vez que a mesma não passa de um subterfúgio para desvendar o ardil, por um lado, e assumir as responsabilidades pretéritas, por outro.
Que Camilo e Eça, nomeado na obra pelo título do romance O Primo Basílio (p. 101), são vultos a quem Ernesto Rodrigues presta contínua e apurada vassalagem corrobora-o, para além do que já foi dito, o facto de a intriga do romance ser narrada, nos onze primeiros capítulos, em analepse pela personagem João Felix Exposto. Este narrador/personagem é fruto de uma relação da juventude do deputado João Félix Filostrato, que, também, ignorava este facto. O ritmo cadenciado e preciso da narrativa, mais uma vez a fazer lembrar os dois romancistas do século dezanove, e o desenrolar programado da história prendem o leitor ao texto.
O tempo da ação, à semelhança do que acontece na tragédia, é bastante concentrado em, apenas, nove dias. O narrador desfila diante dos nossos olhos, como se de uma representação teatral se tratasse, os acontecimentos que, efetivamente, vão sendo apreendidos pelo leitor.
Porquê literatura? Porque o romance está pejado de referências literárias tanto explícitas como implícitas. Permito-me, apenas, recordar, não querendo ser exaustivo: Camões, Bocage e Garrett. Termino com a alusão à “Lacailândia”, isto é, Portugal, onde ressoam ecos da obra “A Montanha da Água Lilás” de Pepetela. 
Todo o romance é um retrato irónico da sociedade atual, lembrando a arma mais eficaz de Eça. É patente a intenção do autor em desvelar a realidade portuguesa atual, recorrendo a truísmos e a provérbios, por vezes alterados, na senda de Saramago, para provocar no leitor a reflexão, durante o ato de ler, e levá-lo, como é apanágio do teatro épico, à ação, no final da leitura.
Concluímos, asseverando que Ernesto Rodrigues não ficou aquém dos dois modelos literários, que se propôs preitear neste seu livro, uma vez que as personagens de Passos Perdidos não destoam das que Camilo perpetuou, nos seus romances. Por outro lado, qualquer leitor mais atento desta obra não hesitará em apelidá-la de queirosiana, devido à forma como a realidade portuguesa atual, filtrada pela ironia, se encontra plasmada nele.
Bragança, 31 de dezembro de 2014




[1] Doutorado em Literatura Portuguesa, poesia contemporânea, pela Universidade de Salamanca homologado pela Universidade do Minho.

MULHERES INSTRUIDAS/ ESCRITORAS, por Hercília Agarez

MULHERES INSTRUIDAS/ ESCRITORAS

( A propósito de A Senhora Rattazzi de Camilo Castelo Branco)

“Guarda-te de homem que não fala, de mulher que faz versos e de cão que não ladra”.

    Em Carta de Guia de Casados, da autoria de D. Francisco Manuel de Melo, obra importante para o conhecimento da história social do nosso século XVII, deparamos com o conceito do escritor sobre a educação das mulheres e sobre o papel que lhe deve incumbir na sociedade. Resume-se este ao serviço doméstico como dona de casa, esposa e mãe: “Criou-as Deos fracas, sejam fracas; oxalá façam o que são obrigadas, não lhes quero pedir mais que a sua obrigação”.
    No que à sua educação diz respeito, tudo se resume à absoluta concordância do autor com a expressão popular “ Deus nos livre de mula que faz him e de mulher que sabe latim” que concretiza com o seguinte episódio: “ Confessava-se uma mulher honrada a um frade velho e rabugento; e como começasse a dizer em latim a confissão, perguntou-lhe o confessor: - ‘Sabeis Latim? ‘ Disse-lhe: - ‘Padre, criei-me em mosteiro’. Tornou-lhe a perguntar: - ‘Que estado tendes? ‘ Respondeu-lhe: -‘Casada’. A que tornou: - ‘Donde está vosso marido? ‘ – ‘Na Índia, meu padre’ (disse ela). Então com agudeza repetiu o velho: - ‘Tende mão, filha: sabeis latim, criastes-vos em mosteiro, tendes marido na Índia? Ora ide-vos embora, e vinde cá outro dia, que vos é força que tragais muito que dizer, e eu hoje estou com muita pressa”.
    Organizado em cartas como a obra anterior, surge, no século XVIII, época da vigência do Iluminismo, o livro do árcade Luís António Verney intitulado Verdadeiro Método de Estudar, considerado por António Sérgio “ a maior obra de pensamento que se escreveu em português”. Abrange ele matérias como a Linguística, a Oratória, a Poesia, a Filosofia, a Estilística e a Pedagogia. Com ele pretende Verney criticar a orientação escolástica dos estudos e orientá-los no sentido da utilidade que poderiam assumir, tanto no que dizia respeito à República como à Igreja.
    Na décima sexta carta, dedicada à educação das mulheres, defende-a convictamente, na certeza de que estas “discorrem tão bem como os homens”. Além disso, sendo elas as primeiras educadoras dos seus filhos, é de toda a conveniência que saibam o que dizem. Também como esposas a instrução lhes é útil, como explicita na seguinte passagem: “ Persuado-me que a maior parte dos homens casados que não fazem gosto de conversar com suas mulheres, e vão a outras partes procurar divertimentos pouco inocentes, é porque as acham tolas no trato; e é este o motivo que aumenta aquele desgosto que naturalmente se acha no contínuo trato de marido com mulher. Certo é que uma mulher de juízo exercitado saberá adoçar o ânimo agreste de um marido áspero e ignorante, ou saberá entreter melhor a disposição de ânimo de um marido erudito, do que outra que não tem estas qualidades”.
    Se, anteriormente ao século XX, a mulher instruída era vista como invasora de território reservado ao homem, o caso agravava-se quando ousava com ele competir no manejo da pena. A tal se atreveu, no século XVIII, a Marquesa de Alorna, considerada a Madame de Staël portuguesa e que nos legou as suas Obras Poéticas, em seis volumes, onde deixa transparecer características estéticas de uma sensibilidade romântica. Alexandre Herculano haverá de lhe ficar reconhecido pelo magistério que exerceu no seu famoso salão e cujo principal discípulo foi o poeta pré-romântico Filinto Elísio.
    Não fossem as circunstâncias conhecidas da vida de Ana Plácido, companheira de vida e de infortúnios de Camilo Castelo Branco, teria ela provavelmente ocupado um lugar de destaque nas letras oitocentistas. Colaboradora de jornais e revistas, cultivou a poesia e foi autora de dois romances, sendo o mais conhecido Luz Coada por Ferros que, como o título indicia, foi escrito nos dias que passou encarcerada com o escritor na Cadeia da Relação do Porto. Esta sua actividade literária terá sido estimulada pelo próprio novelista e tê-la-á feito abortar a falta de disponibilidade mental causada por múltiplos desgostos.
    Terá sido esta mulher, por razões sentimentais, uma excepção ao modo como o homem de Ceide encarava as mulheres escritoras. A ilustrá-lo, apoiemo-nos na polémica pessoal que o envolveu com uma princesa francesa, descendente dos Bonapartes pelo lado materno, mulher de complexa, aventurosa e faustosa existência, com um “currículo” donde sobressai o facto de ter sido amante de Victor Hugo. Dedicou-se ao jornalismo e à literatura e visitou vários países, entre os quais Portugal, onde fez “estragos” e gerou controvérsias. Aqui pretendeu impor-se como escritora, cultivando amizades nos meios sociais, políticos e artísticos, tendo sido famosas as recepções em que tudo fazia para insinuar-se e ganhar notoriedade a qualquer preço.
    Não terá conseguido os seus intentos. Despeitada, publicou o livro Portugal à vol d’oiseau, resultante das duas viagens que fez ao nosso país em 1876 e 1879, traduzido em 1881 com o título Portugal de relance. Nele faz a autora considerações críticas que atingem vários alvos: o clero (para ela representado pela figura do Padre Amaro de Eça), a história de Portugal, a política e seus destacados membros, o jornalismo, a vida íntima dos portugueses, a aristocracia, o sector hoteleiro (refere que os hotéis de Lisboa têm ratos e percevejos), a literatura em que são zurzidos, entre outros, Herculano, Castilho, Bulhão Pato, Júlio Dinis, Mendes Leal e…obviamente, Camilo.
    Quem conhece o carácter quezilento e irascível do escritor, a sua tendência a entrar, por tudo e por nada, numa boa polémica, compreenderá que lhe seria impossível não sair a terreno para defender a sua dama, neste caso a sua obra, encabeçando a legião dos esperados contestatários. Assim, publica em 1880 o folheto A Senhora Rattazzi em cujo preâmbulo, a reboque de D. Francisco Manuel de Melo (“ Mulheres doutoras, autoras e compositoras dava-as o diabo”) exprime a sua opinião sobre as mulheres escritoras. Estaria a pensar em Les Femmes Savantes de Molière?
   
    Mulher escritora, por via de regra pouco exceptuada, é um homem por dentro. O coração, que lhe devia ser urna de suavíssimas lágrimas, faz-se-lhe botija de tinta; e as doces penas da alma metalizam-se-lhe aguçadas em penas de aço. O fuso de Lucrécia e da rainha Berta desfez-se em canetas. Em vez de tecerem o seu bragal, urdem intrigas.
    […] Não há feminilidades que se respeitem desde que a mulher se masculiniza, e, como escritora virago, salta as fronteiras do decoro, sofraldando as espumas das rendas até à altura da liga azul-ferrete.
[…] Eu, criado no velho noticiário, tendo de anunciar o produto duma dama dado à luz, antes quisera, em vez dum livro bom, anunciar um menino robusto. Acho muito mais simpática a feminilidade de mães pálidas, com olheiras, emaciadas, que aconchegam dos seios exuberantes a criancinha rosada, recém-nascida. Não me comove nem alvoroça o espectáculo de uma autora que se remira e envaidece na brochura que deu à luz, obra entre cinco e sete tostões – 740 réis com estampilha. Por isso, antes quero noticiar um menino robusto que um oitavo compacto.

    No corpus do texto polémico, Camilo regista e contesta as várias barbaridades contidas numa publicação cujo título sugere a superficialidade das abordagens feitas. A terminá-lo, regista:

            Vence-me o tédio; mas não me punge o remorso de ter lido 415 páginas. Tenho, porém vergonha de que um ou outro português, desnacionalizado por despeitos pessoais e políticos, se compraza de ver os seus conterrâneos enxovalhados pela srª Rattazzi, cuja maledicência é notoriamente europeia. O seu renome de estilista desbragada sem cerimónia ganhou-o em Itália e Paris a ponto de lhe imputarem as brochuras crapulosas do infame bandido Vésinier, um corcunda petroleiro que espingardearam em 71.
    Que escreve a princesa escritora sobre Castelo Branco? Pouco mais do que isto:

Todos os romances do solitário de S. Miguel de Ceide contêm infalivelmente um tipo de brasileiro, uma rapariga que se recolhe a um convento, um fidalgo de província e um romântico apaixonado e transparente. É invariável como a chuva e o bom tempo. De forma que o primeiro romance que se lê do Sr. Branco parece muito interessante, o segundo acorda reminiscências, e o terceiro adivinha-se; o quarto sabe-se de cor, volta-se a página sabendo-se o que vai passar-se. É uma galeria de personagens que raramente se renova, como a dos museus de figuras de seda.

    Esta opinião remete para a de Miguel Torga:

     Este Camilo, com o devido respeito, lembra-me sempre uma romaria…
 Muita gente, muito vinho, música, a procissão com o Brasileiro que paga tudo à vara do pálio, a missa, o sermão, a menina que comunga, o homem da vermelhinha, o jantar na Residência, e o arraial à noite, com foguetes de lágrimas, onde se acaba tudo aos tiros e às facadas.

                                                                                                                                 Diário I

Do Movimento Operário e Outras Viagens de Ernesto Rodrigues, por Norberto da Veiga

Do Movimento Operário e Outras Viagens de Ernesto Rodrigues

Por Norberto Francisco Machado da Veiga[1]

Este livro de poesia é composto por quarenta poemas, elaborados como resposta aos estímulos das deambulações do poeta, como se infere da leitura do título “Outras Viagens”. Os topónimos poetizados por Ernesto Rodrigues são as cidades míticas que enformaram a sua cultura, nessa busca interminável do ser por ele próprio e, através dele, pelo outro, lato sensu, pelo homem em busca da sua felicidade, que o poeta só consegue descortinar pelo amor à língua, cultura e civilização.
A obra abre com a composição poética que dá título ao livro “Do movimento operário” onde, para além de se fazer uma sentida homenagem ao honesto trabalho com o qual o Homem ganhará o pão, metaforizada no pai do poeta, se compara o ofício da forja, isto é, do ferreiro ao ofício cantante, ou seja, à ars poetica. Assim, para o eu lírico, o processo alquímico é análogo, pois, tal como o ferreiro domina e molda o ferro em brasa para dar forma aos mais belos e proveitosos utensílios, o poeta funde, molda e dá forma às palavras para escrever o verso mais perfeito que consiga auxiliar o leitor na sua autognose permanente.
O segundo poema é um soneto, embora a arquitetura estrófica não seja a canónica, uma vez que é composto por um dístico e três quadras, dedicado à mãe do poeta, onde se patenteia o carinho e a ininterrupta preocupação maternal. Parece-me que o dístico resultaria melhor no final, visto tratar-se da súmula do poema, funcionando, assim, como chave de ouro.
Os poemas deste livro podem agrupar-se, segundo creio, em dois grupos: o primeiro marcado pelo tom mais intimista, ou seja, mais lírico, presente nos sete sonetos e nas composições mais curtas, onde se ouve a voz dolorida do poeta murmurando com saudade as doces alegrias pretéritas; o segundo, e mais amplo, compreende o grande número de poemas narrativos, que, na minha ótica, se organizam em torno de duas realidades, significativas a todos os níveis para o poeta, a saber: Europa, e Portugal/Nação/Pátria.
No primeiro grupo, encontramos textos sobre topónimos da Hungria e de outras cidades e países da Europa, que enformaram culturalmente o poeta. Nestes poemas de grande fôlego o tom épico alterna com o lírico facilitando a comunicação com o leitor.
O seguinte reúne poemas sobre o país, assunto de questionação constante pelo poeta, onde o tom épico secundariza, de vez, a voz lírica, nos quais o eu poemático assume, sem ambages, a atitude prometaica da poesia. Esta atitude leva-o a declarar abertamente o seu intento, que passa por provocar a reflexão no leitor e levá-lo à ação, para que, em conjunto, se possa construir um mundo melhor. Nem outra função pode ser cometida à poesia a não ser inventar novas realidades a partir do real concreto. 
Permitam-me destacar o poema épico «Outra Pátria», em jeito de súmula do que afirmei atrás. Esta composição apresenta a estrutura interna da epopeia pois encontra-se dividido em quatro partes: proposição, invocação, dedicatória e narrações. Aqui, creio que o modelo é Camões, uma vez que as epopeias clássicas não apresentam, na sua estrutura interna, a dedicatória. Poema singular e fulcral na arquitetura do livro onde imitador e imitado se confundem num derradeiro esforço de refundação da pátria que, por incrível que pareça, continua numa austera, apagada e vil tristeza. Não falo nas aproximações estilísticas, realço, tão só, os motivos e propósitos enunciados no incipit do poema “A luz, a cor, o dom de minha terra / canto, no tempo mau em que navego.” [P. 50, sublinhado meu]. Resulta, também, feliz a decomposição dos versos da “proposição” em elementos realçando, desta forma, o ritmo e a compreensão da leitura. A primeira estrofe da composição 4 da narração corrobora a ideia de privação e do abatimento que persiste em acompanhar o país, no presente, como se percebe pela interrogação com que termina a estrofe: “Que bravia sombra vem, / ronronante, levando-me por sobre / sonhos gastos de pátria tão pobre?” [P. 61]       
É, ainda, pertinente salientar que este carme é antecedido pelos poemas «Língua» em que lê-mos: “Eu comovo-me, povo, com teu fado, / a coragem de ser além de nós, / tão pequeno, já solo embarcado, / para longes contactos, uns após // outros – em sintonia cor e língua.” [P. 44]; «História de Portugal» no qual se revisitam os acontecimentos fundadores da nossa identidade como Nação; «Pátria» onde “Chão, Deus, água, valor, língua, / são quinas de Portugal” [P. 46]; «Rimas Pobres» em dois andamentos: no primeiro o poeta apresenta um retrato mórbido do país como se pode constatar pela primeira quadra “A maldade tomou conta de nós. / Prometia baixar impostos; dar / emprego a milhares; ser correcto; / ajudar quem precisa, e avós.” [P. 47] A segunda parte encerra com um aviso e a convocação à não resignação dos leitores/eleitores para que não embalem no falar melífluo dos governantes. “Mas, se fores // na conversa, em ti chorarás quanto / buscou evitar-te este meu canto.” [P. 47, sublinhado meu] O vate acredita na possibilidade de a poesia “este meu canto” ajudar a transformar o mundo e a tornar o ser humano mais cônscio; “Governo” onde se faz uma crítica desvelada à imigração e se apela à pátria, adjetivada de amada, para que tal como uma mãe continue a sustentar os seus filhos, “O exílio // não é vocação - pesa-, ó amada pátria: sê grande, mas em ti; cria bens;” [P. 48]. A composição «Outra Pátria» precede o poema «Democracia» um longo poema narrativo organizado em seis partes no qual o poeta, recorrendo a adágios populares e a frases feitas, continua a pintar um quadro do país com cores esmaecidas, onde, apenas, é nítida a falta dessa mesma liberdade que dá título ao carme. O sujeito lírico chega ao ponto de a apostrofar, “Sê, democracia, igual aos que te desejam recta, cultivada.” [P. 64] Ato contínuo, o poeta continua a enumerar as desventuras da democracia, recorrendo, despojado das demais armas, à poesia como a derradeira salvação, “A ti cabe, amigo verso, tal / dedicatória (…) Por ti começa, verso, sermos outros.” [P. 65] Mas, e apesar destes desejos e incentivos para que a democracia seja o sol do país, a composição culmina de forma disfórica, como se pode constatar pela leitura destes versos, “Tens. Ó democracia, sangue vil em ti. / Não digas, pois, que és democracia. Oh, / mas que de ilusões o homem se sacia…” [P. 68] 
Parece-me que este conjunto de poemas sob o signo da portugalidade apresenta três momentos. O primário formado pelo conjunto de carmes que precedem «Outra Pátria» nos quais o poeta reflete sobre o país no passado, no presente e “sem futuro”. Por essa razão, ele propõe uma alternativa, seguindo no encalço de Camões, que passa por reedificar uma «Outra Pátria» acreditando que o canto/a poesia, como aconteceu com o épico, pode cumprir esse desígnio. Penso ser essa a inferência que se pode retirar da leitura da estrofe que encerra o referido poema “Honrar quem nos comove: língua, chão, / dignidade; ser grande na incerteza / lida de viver. Um poema não / faz muito - mas é cais, casa, desperta / asas do sim, que dão cor ao lugar. / Um poema faz-se para criar.” [P. 61, sublinhado meu]
Os antepenúltimos poemas do livro, «civilização» e «cultura», reacendem a proposta de Pessoa na Mensagem. No entanto, o que em Pessoa era sonho, crença e esperança nesse quinto império capaz de redimir o país é, no presente, para Ernesto Rodrigues desalento, pois “A civilização é um mal sem cura; / sobrevivemos?” É, ainda, miséria e sujeição “dependência, necessidades falsas – sonho de verbo-acto, adjetivo, / quando a vida é nome pobre.” [P.71] É, por fim, hipocrisia “Cresce sociedade / no equilíbrio certo / entre o ser e o ter. (…) Morrem / povos famintos. Voam / palavras, que encobrem / os ares; e não vende / arte fora de moda”. [P. 74] A deceção é total como se depreende da interrogação “Que mundo nos calhou, / tão desequilibrado?”
O livro de poesia Do Movimento Operário e Outras Viagens abre com um tom épico cantando as capacidades do homem que, transformando o mundo, pelo trabalho, se transforma. E finda com o registo lírico em tom autobiográfico no poema «Dono de mim, não perco nada. Séneca» e com a crença nas potencialidades da vida humana em «A vida não é uma linha; tem», onde as últimas palavras constituem um repto à não resignação do ser humano e à crença nas suas capacidades para transformar o mundo, “Faz / da dor teus pés de lã, rasgando lagos; / do riso, praia nua, que afago.”
Epilogando, este livro pode ler-se como uma sonata em três movimentos e em forma circular: o primeiro onde se faz a apologia épica do trabalho, o segundo onde ecoam algumas vozes resultantes da fadiga e do ceticismo emanados da espuma dos dias, para, no último andamento, se reforçar, de novo, as capacidades individuais do ser humano.

Bragança, 31 de dezembro de 2014

[1] Doutorado em Literatura Portuguesa, poesia contemporânea, pela Universidade de Salamanca homologado pela Universidade do Minho.