03 novembro 2014

NATÁLIA CORREIA, UM “FESTIVAL DE MULHER”, por Hercília Agarez

Leonel Brito e Dórdio Guimarães com "Florbela Espanca".
Rodagem do documentário realizado pelo Dórdio e
 texto de Natália Correia
“Que festival de mulher te expandes, sou já celebridade ao olhar-te”.
Dórdio Guimarães
     Poeta menor, sobretudo em confronto com os que enriqueceram a nossa literatura lírica na segunda metade do século vinte, Dórdio Leal Guimarães nasceu no Porto em 1938, quinze anos depois daquela que, vinda dos Açores ainda criança, haveria de fazê-lo esperar trinta e oito anos. Por ela se apaixonou com catorze, com ela travou conhecimento aos vinte e quatro.
    Como escreve Inês Pedrosa, “ (…) depôs-lhe nas mãos a sua vida, incluindo todas as suas múltiplas aspirações artísticas. Ela tinha o impulso criador, ele tinha o desejo de o ter”.
    Poetou-a nos livros publicados com o nome de Cynthia. Após a morte da sua deusa abandonou a escrita de que ela foi a única musa inspiradora.
    Depois de dois casamentos efémeros e de um duradouro (39 anos) Natália Correia aceitou casar com ele, curiosamente por sugestão do homem que os amigos consideram ter sido o grande amor da sua vida: Alfredo Machado. Por horror à solidão, ela que era incapaz de dormir sozinha por medo dos fantasmas. E porque, como justificou, por considerá-lo a única pessoa capaz de organizar e catalogar a sua obra. Não nutria por ele mais que um ligeiro afecto, como pode ver-se num soneto que lhe ofereceu com a dedicatória “Ao Dórdio, meu irmão”, espécie de resumo irónico de uma história de vassalagem amorosa.

O BEIJO DE ANTIKONIE

Foi no mês alumbrado dos bruxedos
 o ardente encontro. Estava eu nos trinta.
Abrasavam-te vinte chamas verdes
 e enluarado me chamaste Cynthia.

Como uma puma pelos meus vinhedos
 sedoso e hábil me laçaste a cinta
 e encantaste-me em sala de brinquedos
 da tua boca bárbara e faminta.


Mas declino e o Anjo de alabastro
 tatua-me na fronte o frio astro
 que a tormenta do sangue anestesia.

Ó trémula beleza sem apoio!
Fiz-te pássaro e mato-te no voo.
Não me culpes, amor. Foi bruxaria.

    Se Dórdio foi o homem que Natália desposou, por interesse ou comiseração, aos sessenta e sete anos, se Alfredo Machado foi o cavalheiro galante que lhe transmitiu serenidade e com ela partilhou intensa vida social e intelectual, tendo sido, além de amante (no sentido etimológico do termo), uma espécie de pai que não teve, a sua grande paixão foi um primo açoriano vinte e cinco anos mais novo – José António Correia. Viveram oito anos na mesma casa, como amantes fogosos, divertindo-se com um jogo de casamento fictício, celebrado com dispensa de testemunhas.
    Durante os dois anos em que o jovem que a amou sofregamente esteve na Guiné a cumprir o serviço militar, escreveu-lhe ela 218 cartas arrebatadoras nas quais ele surge como um misto de anjo e de objecto de gozo carnal. Atente-se no extracto de uma delas: (…) “Está-se a dar um milagre comigo; julguei que não podia amar à distância, mas afinal de contas é possível.
    Tu conseguiste esse milagre. É certo que o eco do teu amor chega-me incessantemente, estimulando o meu. Nunca deixarás de o fazer? Pois não, meu maridinho adorado, meu primeiro homem, meu Adão de arminho e pássaros. Ontem a tua voz ao telefone derramou-se no meu sangue como fogo. Oh, beijo-te, beijo-te, entrego-me à fome do teu corpo e volto a renová-la sempre mais, amor. (…) Amo-te, amo-te, violentamente, ternamente, tudo”.
    Esclarecedor quanto ao ardor passional é, também, o poema que se segue:

Para o José António

Tu és o meu regato e o meu vulcão,
 eu sou a tua pomba, a tua cobra
 e os nossos gestos são a proporção
            de um sentimento de fogo e solidão
            em que nada nos falta e nada sobra.
 A nossa estrela é estarmos condenados
 pela perfeição que os ossos nos reclama
 a morrer um no outro extasiados,
anjos gravados na pedra de uma cama.


    Quem era essa “mulher-menina, mulher fatal”, como lhe chama Clara Rocha? Diz quem a conheceu ou simplesmente a viu nos cafés, bares e ruas de Lisboa ser uma das mais bonitas da capital onde esbanjava a sua sensualidade, despertando ardentes paixões tanto em homens mais velhos como em adolescentes que a endeusavam e se lhe prostravam aos pés. Tinha, pois, uma corte de admiradores de que se vangloriava, exibindo-os, vaidosa, como troféus. Bela, exuberante, provocadora, era “uma deusa rodeada de sacerdotes ou veneradores”. Coquette mais do que o normal, segura dos seus atractivos, exercia um irreprimível poder de sedução.
    Afrontando, em jeito de desafio, os preconceitos da moral vigente, fumava por uma longa boquilha, sua imagem de marca, e exibia o seu colo desnudado, para além do limite do decoro, aos olhares concupiscentes de quantos, esperançada ou desperançadamente, a cortejavam.
    Não obstante o que fica dito, não era sem constrangimento que a poeta se apercebia de que a sua beleza física se sobrepunha aos seus dotes de mulher de cultura aos olhos da opinião pública. Paradigmático quanto a tal facto, a reacção intempestiva perante as palavras com que Mário Soares iniciou o seu discurso ao galardoá-la com a Ordem da Liberdade: “Não me diga que eu era muito bonita, já sei que só olhava para o meu corpo”.
    E, insurgindo-se contra a sua fama mítica de “predadora” de homens, escreve:

    Essa asquerosa lenda é a herança de uma mentalidade que subsiste, mentalidade essa que, valorizando o meu aspecto físico, obscureceu o meu valor intelectual.

    Acrescente-se o que o referido político registou no prefácio do livro Retrato de Natália Correia, de Ângelo Almeida e publicado pelo Círculo de Leitores:

Nesse tempo, em que a Natália começava a abrir caminho nas Letras, vinda da sua ‘Pátria Açoriana’ para se fixar numa Lisboa pacata, mas em plena ebulição, e fumava por uma enorme boquilha, com os seus ares dominadores e os seus pronunciados decotes, não era fácil perceber que estava ali uma das personalidades mais marcantes do último meio século da vida cultural portuguesa.

Bibliografia: PEDROSA, Inês, “O Amor
Louco de Natália Correia” in REVISTA
EXPRESSO nº 1298 de 13 de Setembro de
1997.


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