21 outubro 2014

Os lugares de Patrick Modiano, Nobel da Literatura, por Ernesto Rodrigues (40 anos de vida literária)

Ernesto Rodrigues
Após mais de oito anos como detective particular, ao lado de Hutte, patrão e amigo que decide gozar a reforma em Nice, o narrador vai dar início a uma investigação muito particular: saber quem é, donde veio, como se chama, qual foi o seu passado. «Não sou nada», lê-se no intróito. Uma amnésia roubou-lhe a memória quando, com Denise, procurava fugir à Segunda Guerra Mundial através da fronteira franco-suíça. Ambos enganados pelos passadores, e já separados, o nosso herói vagueia pelo branco da neve até retomar os antigos passos que façam luz sobre um optimismo crescente.
Da família e amigos a ódios que se esvaíram, lenta é a perquisição, emaranhando-se as pistas, chocando-se nomes supostos e acaso verdadeiros, num desvelar de situações que pedem grande atenção e paciência ao leitor. Os seus interlocutores são figuras, de algum modo, marginalizadas, mas sempre generosas. Todos cedem as fotografias que iluminam um périplo e que o herói guarda num bolso interior, acalentando-as como a um antigamente que se elabora na topografia de Paris, também esta já não de todo intacta.
A propósito do seu Remise de Peine, L’Express (5-II-1988) referia esta particular característica de Patrick Modiano (1945): «Primeiro, os lugares. Porque há um Paris de Modiano. Não épico como em Balzac, nem mundano como em Proust, mas obcecado pela lembrança, reduzido às dimensões do inconsciente, submerso.» Outras obsessões que traz a adolescência – desde edifícios, números de polícia e moradas precisas até às recorrentes garagens – são confessadas por Modiano em entrevista a El País (Madrid) de 16-V-2009.
É curiosa esta presença de Balzac (institucional) e Proust (sentimental), a que era mister acrescentar Céline – parisiense, tal o herói, igualmente se distrai um pouco da cidade-luz, mas a cujas periferias ou bairros perdidos sempre regressa. A relação que Modiano estabelece com os seus escritores passa normalmente pelos cenários dos respectivos livros, de que se torna familiar, e onde facilmente situa e confunde personagens reais e de ficção.
Se se dá o caso de o universo lhe parecer longínquo, como, em artigo de homenagem (Le Matin (Paris), 17-IX-1980), reconhece ter sido o de Giono, aí, a aproximação acontece «graças à força e à simplicidade do estilo», que são, do mesmo pé, características da sua obra.
As vagas reminiscências que emergem e se coligam obrigam a uma forma alusiva de contar. Esta faz uso de textos cristalizados, como moradas extraídas de anuários e listas telefónicas, ou das investigações que provêm de um detective a seu cargo. Parte do texto ergue-se, assim (idêntica estratégia na correspondência militar em Pantaleão e as Visitadores, de Vargas Llosa), do nevoeiro ou de um «sonho que tentamos agarrar, quando despertamos, para reconstruir o sonho inteiro» (p. 93). Deste modo pode ser vista a situação do narrador, quando arranca em busca de uma identidade (sujeita a origens e filiação), não isenta de culpa, como em Fleurs de Ruine (1991).
De cada texto seu, e de como de Une Jeunesse (1981) escreveu François Nourrissier (Le Figaro Magazine, 14-II-1981), Modiano faz «um romance-murmúrio», onde «se risca tanto quanto se escreve», onde, se há recuos, é para melhor apreender a fluidez dos instantes, onde se ensaia tocar a respiração de várias solidões. Ou, como de Dimanches d’Août (1986) escreveu Antoine Audouard (Le Figaro Magazine, 20-IX-1986), «O milagre é que esta dor doce, esta suave habilidade [...], nunca cansam».
Se Na Rua das Lojas Escuras (porquê traduzir [Lisboa, 1987] este sexto romance Na Rua..., se a personagem nunca se encontra nessa rua, mas tão-só projecta conhecer-se enfim na Roma sonhada?) é uma busca no labirinto da identidade, já, em Domingos de Agosto [Lisboa, 1988, donde cito], passa-se um pouco dos mistérios quase sem solução para um enigma que nos dá resposta. O antigo fotógrafo de arte transformou-se em garagista. Depara-se-lhe, em Nice, Villecourt, vendedor ambulante que, até sete anos antes, fora feliz com Sylvie e que esta abandonara pelo fotógrafo.
A humidade e mofo meridionais anunciam, todavia, a vindicta das «águas lodosas do Marne», onde as personagens se tinham encontrado. Os Neal, um casal-figura da duplicidade sempre convivendo em Modiano, preparam-se para vingar o amigo desprezado... Um diamante riquíssimo sobre Sylvie arrastará os fugitivos para a definitiva separação.
Como se vê, também aqui é mais uma história de amor breve e sem amanhã. São, precisamente, os fugidios instantes desse Agosto de há sete anos que suavizam a memória e encandeiam o texto. No tempo do discurso, sabemos que estamos perante «silhuetas do passado», ou que, como diz o narrador, «os fantasmas não morrem» (p. 32). O tom nostálgico escorre como a chuva no Passeio dos Ingleses, nessa «cidade de fantasmas onde o tempo parou» (p. 93), Nice. Temos duas histórias de enganos em que os narradores perdem as amantes, mas em ambas existe a reconstrução através da fotografia ou, o que vem dar ao mesmo, daquilo que fomos um dia: além, o narrador, ex-detective, evolui na companhia de, e serve-se de, um detective; aqui, Jean, antigo fotógrafo, compreende o logro e reconhece Neal com a colaboração do fotógrafo ambulante do Passeio dos Ingleses. Como se dissesse: não se pode fugir ao nosso destino.
Nos dois livros, ainda, comparece a Roma mítica, «a única cidade em que eu imaginava que poderíamos fixar-nos para o resto da nossa vida, essa Roma que se adequava maravilhosamente a naturezas tão insolentes como as nossas» (p. 92). Na ausência do lugar, o seu murmúrio.

[A escolha de Modiano surpreendeu, naturalmente, a bem informada crítica portuguesa. O texto acima é adaptação do que já escrevi no semanário Tempo, em 28 de Abril de… 1988.]

Fonte: Mensageiro de Bragança, edição 3495

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