20 outubro 2014

NATÁLIA CORREIA, A POÉTA SATÍRICA, por Hercília Agarez

    Começamos por justificar o acento colocado na palavra poéta. É dele responsável o escultor Martins Correia, amigo de Natália e autor de um busto seu em que perpetua a imagem da beleza sensual de uma mulher no auge do seu esplendor. Na base da obra plástica está inscrita a forma acentuada, como que a dar maior ênfase à condição daquela que, embora autora de quatro romances, de cinco peças de teatro e de inúmeros ensaios, ganhou notoriedade como cultora de poesia lírica e satírica, tendo publicado, em quarenta e três anos, treze colectâneas de versos.
    Como escreve Clara Rocha em “Sobre Poesia Completa de Natália Correia”, estudo inserido em O Cachimbo de António Nobre e Outros Ensaios, a produção poética da escritora açoriana encerra “matrizes estético-literárias tão díspares como o Barroco, o Romantismo e o Surrealismo”, caracterizando-se, também, por “uma pluralidade de um rosto que proteicamente se diz em figurações várias, na alternância entre o frívolo e o sério, o riso e as lágrimas, a alegria e a mágoa…”, por um “constante movimento de temas e de tons”.
    Na primeira badana de O Sol nas Noites e o Luar nos Dias pode ler-se: “ (…) é sobretudo na poesia que o seu talento de escritora vanguardista e independente de quaisquer agrupamentos poéticos ganha plena expressão, assegurando-lhe um lugar de destaque entre os grandes vultos da literatura contemporânea”.
    Se lhe reconhecemos mestria no domínio da lírica, patente, sobretudo, nos sonetos, consideramos que a força indomável da sua inspiração fulgura predominantemente quando, na senda da nossa melhor tradição maledicente iniciada na Sátira Trovadoresca medieval com as Cantigas de Escárnio e Maldizer, desfere as suas afiadas farpas em pessoas e acontecimentos do Portugal político pós 25 de Abril.
    Eleita deputada à Assembleia da República pelo partido de Sá Carneiro (a quem apresentou Snu Abecassis) em 1979, a sua voz incómoda e sem peias abalou as estruturas do Parlamento, quebrou a sisudez composta do hemiciclo, atreveu-se a ridicularizar políticos de vários quadrantes, incluindo o seu, num pluripartidarismo lúcido e imparcial. Parodiou decisões governamentais, ridicularizou ministros, dirigentes, deputados, candidatos a cargos políticos, como foi o caso de Marcelo Rebelo de Sousa aquando da sua campanha eleitoral autárquica da Coligação por Lisboa. A ele dedicou o “Cancioneiro Joco-Marcelino”, constituído por oito poemas de que apresento o seguinte:

O FADO DO COVEIRO

Das artes mágicas campeão audaz
tira Marcelo da manga outra faceta:
 por sua dama Lisboa, o Galaaz
faz-se à viela e ginga à lisboeta.

Calça à boca de sino e cachené
 ao marialva senil metendo inveja,
            fidalgo edil que canta para a ralé
o faduncho finório gargareja.


Estremece Aníbal com o pardal fadista
            que aquilo é treino para o último regalo:
 escaqueirar o reinado cavaquista
e sobre a tumba, por fim, cantar de galo.


Entre 1979 e 1991 Natália Correia escreve CANTIGAS DE RISADILHA, designação de uma das espécies das Cantigas de Maldizer, aquelas em que os trovadores, sem qualquer ambiguidade ou subtileza, achincalhavam pessoas identificadas de forma directa e chistosa. A autora esclarece, assim, os leitores:

Não se apure nestas sátiras, só algumas entre as que perdi, qualquer intento malévolo contra instituições democráticas que mesmo abaladas pela célere erosão do sistema político-partidário são o que há onde o que deve haver terá de ser fruto de uma ideologia ainda adiada cujo irromper se impõe. Tomem-se, por conseguinte, estes versos parodísticos como desenfados quase todos parlamentares, outros visando a política partidária em geral, instantemente reclamados pelo duende do meu justiceiro humor, tiranete a que não resisto pelo sortilégio da homofonia HUMOR-AMOR.
           
   Registe-se, a propósito, a militância da poeta na resistência ao fascismo, a sua participação na campanha de Humberto Delgado, a perseguição de que foi alvo traduzida na apreensão de livros, no impedimento de serem levadas à cena peças da sua autoria.
    Como se vê, encarou a política com seriedade e, quando a parodiou, teria em mente a função morigeradora da crítica social, segundo o axioma Ridendo castigat mores, presente na dramaturgia desde a Antiguidade Greco-Latina e que encontra expressão na nossa literatura, como acontece, por exemplo, com os comediógrafos quinhentistas Gil Vicente e Camões.
    Para evidenciar as qualidades humorísticas da autora de Mátria, nada melhor do que proporcionar ao leitor dois textos, o primeiro dos quais provocou a hilaridade de quantos, no dia 5 de Abril de 1982, leram o Diário de Lisboa e que foi inspirado na afirmação de João Morgado: O acto sexual é para fazer filhos”.
    Na introdução a este capítulo do livro, a autora esclarece que não era sua intenção publicar as sátiras em que “aliviava de alguns pesadumes parlamentares”. Aconteceu que um companheiro de bancada lhe pediu para ler o texto que fotocopiou e distribuiu, traiçoeiramente mas com boas intenções a deputados e jornalistas.

            Já que o coito - diz Morgado –
tem como fim cristalino,
preciso e imaculado
 fazer menina ou menino;
e cada vez que o varão
 sexual petisco manduca,
temos na procriação
 prova de que houve truca-truca.
Sendo pai de um só rebento,
Lógica é a conclusão
 de que o viril instrumento
só usou - parca ração! –
 uma vez. E se a função
faz o órgão - diz o ditado –
consumada essa excepção,
ficou capado o Morgado.

DURANTE O DEBATE DA LEI CONTRA O ALCOOLISMO

Num país de beberrões
Em que reina o velho Baco
Se nos tiram os canjirões
Ficamos feitos num caco.
E querem os deputados
Com um ar de beatério
Que fiquemos desmamados
Quais anjos num baptistério.
Se o verde e o tinto são
As cores da nossa bandeira,
Ai, lá se vai a nação
Se acabar a bebedeira.
De abstemia não se faça
A lex neste plenário
Que o direito à vinhaça
Esse é consuetudinário.


Bibliografia: NATÁLIA CORREIA, O Sol nas Noites e o Luar nos Dias II, Círculo De Leitores, Maio de 1983

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