11 setembro 2014

APRESENTAÇÃO DE RELEVOS DE VIRGÍNIA DO CARMO, por Hercília Agarez

APRESENTAÇÃO DE RELEVOS DE VIRGÍNIA DO CARMO

Os poetas podem contemplar as estrelas, enquanto os bichos sociais se devoram na sombra (?)

    Há coisas que se não medem com fita métrica, não se pesam com balança, não se lhes avalia a temperatura com termómetro. Há coisas cujo valor é imaterial, coisas que nenhum dinheiro pode comprar. O talento é uma delas. O talento, esse privilégio, esse dom atribuído por um qualquer deus e que guinda quem o possui a alturas onde aves não chegam, lá para os lados das estrelas.
    Nenhuma arte nasce sem essa centelha de génio que ilumina o artista. Hoje falamos de literatura, mais precisamente de poesia, para festejarmos uma obra que, a haver justiça, mostrará à intelligentsia deste pais que, se Portugal é um país de poetas, Trás-os-Montes ajuda a confirmar a asserção.
    No interior deste espaço telúrico mais lembrado por uns resquícios de tradições, pela gastronomia e por alguma paisagem vendida ao turista a troco de um cálice de mau vinho fino, vive gente, mais e menos jovem, que, ao dedicar-se à escrita, o faz por paixão, cônscia de que dificilmente alguém lhe faça uma recensão, lhe dedique umas linhas na imprensa cultural, lhe ponha os livros ao alto em estantes de livrarias onde se acotovelam biografias de futebolistas, manuais de receitas de senhoras da televisão, Dan Browns da moda.
   Neste interior de rigores climáticos, de distanciamento das capitais, Virgínia do Carmo não cruza os braços, melhor, não põe um dique a estancar a inspiração. Vocacionada para a valorização da riqueza cultural, acaricia os livros com mãos de veludo, abre-lhes o seu peito, qual tabernáculo, onde, como veremos, arrecada ciosamente patrimónios afectivos e vivências, estrelas e mar, rios e flores, pássaros e pedras. Mulher destemida, empreendedora, persistente, livreira e editora, prosadora e poeta, de voz acetinada e olhar luminoso, anfitriã que gosta de mimar quem a visita nem que seja só com o seu sorriso, reservou-nos uma surpresa  para a rentrée. Não é uma estreia no género, é uma pérola ainda mais preciosa que as anteriores. Se Sou e Sinto (não conheço Tempos Cruzados) é uma espécie de aperitivo gourmet, RELEVOS é um prato substancial, uma harmoniosa e saborosa mistura de sabores, aromas e texturas, uma delícia para o paladar do espírito. Mas já lá vamos
     Em certas circunstâncias sinto-me no dever de justificar a minha presença como apresentadora de uma obra literária. Não sou macedense, não sou poeta. Estou, pois, aqui pela simples razão de gostar da Virgínia e de ela gostar de mim. Ela quis arriscar. Por isso lhe estou grata. Eu, talvez levianamente, aceitei.
    Na minha longa carreira de professora de Literatura que ainda sou, quantas vezes me interroguei sobre a análise de um texto literário, sobretudo poético. Quem somos nós, leigos na arte da escrita, para impingir aos alunos as nossas leituras?
    A este propósito não posso deixar de referir um episódio recentemente passado com Pires Cabral a propósito da Gaveta do Fundo. Num encontro de leitores, uma colega escolheu um poema para ler e deu-lhe a sua interpretação ao que ele respondeu: não era isso que eu queria dizer, mas agradeço-a e acho-a aceitável.
    Há dias, aqui neste lugar de cultura e de afectos, punha-se uma questão que teria dado pano para mangas, se não para um fato completo… O que é um escritor? O que é um poeta? Sem preocupações académicas nem de teorização literária, eu responderia com toda a clareza e simplicidade: o escritor distingue-se do escrevinhador como o poeta do versejador.
     Sobre os poetas, direi ainda que eles têm ideias. Pensam, escrevem e, quem sabe, sonham poesia, enquanto os outros se limitam a rimar banalidades, obcecados com as regras aprendidas na escola. Melhor do que eu falam vozes credíveis. Como Adolfo Casais Monteiro em

Aurora

A poesia não é voz – é uma inflexão.
Dizer, diz tudo a prosa. No verso
nada se acrescenta a nada, somente
um jeito impalpável dá figura
ao sonho de cada um, expectativa
das formas por achar. No verso nasce
à palavra uma verdade que não acha
entre os escombros da prosa o seu caminho.
E aos homens um sentido que não há
nos gestos nem nas coisas:

voo sem pássaro lento.

    Pires Cabral chama à poesia “o danoso ofício das metáforas” e Francisco José Viegas afirma: “A poesia não tem a ver com a literatura. Releva do domínio do sagrado indizível”. E Torga escreve: “Os poetas são como os faróis, dão chicotadas de luz na escuridão”.
    Antes de nos pronunciarmos sobre a poesia da Virgínia, vamos ver como ela se nos apresenta:

Na medida de todas as coisas

Na medida de todas as coisas, eu
a ser pequena.

O ar a doer-me, a não caber no coração
pequeno. E as mãos, tão pequenas, a perderem
os gestos no avesso de todos os tamanhos.

E eu,
a ser pequena.

Um horizonte a rasgar-me, a não caber
nos meus olhos pequenos.

Um chão de lume a consumir-me pés
e passos. A vida a doer-me, a não caber
no meu corpo pequeno. Tão pequeno.

E na medida de todas as coisas, eu,
a ser pequena.

Permitam-me que apresente a minha versão dos dois últimos versos:

E na medida das coisas poéticas, eu
a não ser pequena.

    Este livro chama-se RELEVOS. A plurissignificação obriga a um esclarecimento: um vocábulo, três acepções. Cabe ao leitor a escolha da que entende mais adaptada ao teor dos poemas. Ele tem essa liberdade. Por mim, opto pelo segundo sentido. Porque ele me sugere a orografia transmontana, as suas fragas  -  altos-relevos esculpidos em pedra (“E há fragas de pó no teu peito sem janelas”). Em contraste com a com a brandura lisa e amarela da planície alentejana. E também porque a vida da autora nos surge pautada por uma não linearidade, antes por percursos acidentados, sinuosos, exterior e interiormente. A própria afirma: Não sou uma linha recta;não sei ir direito para dentro de mim. O seu caminho, no duplo sentido de o caminho por onde vai e o caminho que é, é feito de sobressaltos, de ciladas, de incidentes e acidentes, de desafios, ilusões e desilusões, de mais dúvidas do que certezas: Não sou caminho de bermas simétricas.
    Alheia a um mundo que a rodeia onde os ditames sociais imperam, ela orienta “os seus próprios passos” , como afirma José Régio em “Cântico Negro, segundo o que lhe pede o peito, esse reduto inviolável do seu ser, essa caixinha de segredos, esse espaço onde gostaria de guardar constelações e penedias, essa redoma onde se refugia “dos ares contaminados: […] O corpo é um lugar que podes adormecer para / dissecar. Mas o peito não. O peito é uma pedra dura…” (in “Dor”)
    A propósito de pedra, assinalemos a recorrência desta palavra a que vêm juntar-se chão e caminho, peito, corpo e pele. Porquê pedras? Por serem parte integrante de chão? Pela sua firmeza, pela resistência que oferecem ao efeito corrosivo do tempo? Pela garantia de perenidade? Por serem testemunhas caladas do seu estar só?

“O peito é uma pedra dura”;
“[…] a síntese química das pedras”;
“É um cordão de pedras e nós a engolir silêncios  / irrespiráveis…”
“Apetece-me // o silêncio das pedras”.

    Quanto ao emprego frequente da palavra chão, usada no seu sentido literal, não poderemos ver nela um sinónimo do elemento terra? E de Terra Mater? Não será esse chão para Virgínia o que foi para Anteu, o gigante da mitologia que se sentia inexpugnável ao pisá-lo? Um chão que ampara os passos, as quedas, que não devora nem amputa como as ondas do mar: Perdi os braços no alto mar.

 “Cansada de tudo o que me sobra de chão”;
“[…] luz estilhaçada no ventre do chão vazio”;
“Um chão de lume a consumir-me pés e passos”;
“um grito de esperança a eclodir do chão”.

    Da recorrência dos vocábulos corpo, peito e pele falaremos oportunamente.

    As duas primeiras partes do livro são dominadas por um eu que se desnuda perante o leitor, que lhe transmite as suas angústias, os seus desejos e as suas frustrações, um eu que é como um novelo enrolado para o lado de dentro como se considerava Fernando Pessoa. É um ser que sofre e que deixa transparecer a sua dor através do uso de palavras como susto, medo, saudade, solidão, lágrimas, gritos, vazio, perda, suspiro, desmaio, algumas delas a servir de título (ou parte dele) aos poemas


Não há desespero algum neste estar só. Se
permaneço imóvel é porque o silêncio é mais
simples do que a voz de alguém. Na fala dos
outros há sempre a rouquidão das coisas. O
gemido latente das mãos a quererem mais. E
no chão fora de mim há estilhaços onde corro
o risco de ferir os pés. Corações que se partiram
contra as manhãs de vidro dos sonhos.

Aqui estou a salvo. Neste estar só onde é impossível
enlouquecer. Onde não há janelas que me atirem
tempestades. Nem sol que me arda no peito.

    E a propósito uma questão se me levanta: há relação entre o estar só e a criação poética? Calculo que sim.

    Temos a sensação de que o sujeito poético (para usar a terminologia da moda) impõe-se como é antes de fazer entrar em cena o tu que com o eu forma o nós, ambos protagonistas de um drama sentimental adivinhadamente acidentado e que atinge o clímax na III parte. É a explosão dorida do sentimento amoroso, é o assumir de uma dependência sentimental da mulher que, como nas Cantigas de Amigo, suspira pela vinda do amado, pelos seus encontros, dele pede novas às flores do verde pino.
    É, também, a altura de recorrências linguísticas como corpo, peito, pele, sugerindo uma comunhão de desejos e de palavras, de cruzar de caminhos e de afectos. Como acontece em todas as partes do livro, Virgínia faz uma curta introdução também ela poética como as anteriores:

Existir-me-á para sempre // [A doer-me tanto] // O sulco fundo e transparente de um fio de luz a // bordar-te em mim.

    Não cheguei a despedir-me de ti

Não cheguei a despedir-me de ti. Deixaste manhãs
nas cortinas das palavras que ainda não tínhamos
dito, e foste.

 [Uma planície de silêncios a queimar-me os pés. Passos
em combustão no limiar da boca.]

No peitoril da janela aberta morreu pouco depois a
~brancura. E o eco das lágrimas que ela chovia do alto
dessa paz de te querer tanto. E eu, quantas vezes
adormeci sobre a brisa de claridades nascidas da tua
presença simples, sem sombras, eu, que preciso tanto
desse céu limpo sobre o corpo deste não dizer, desse
cair sem dor no chão dos teus dedos, morro agora.

De olhos secos. Derramada em faúlhas de espera. Sem
eco que me salve da tristeza,

[um vento forte a sacudir as palavras que ainda não
tínhamos dito)

porque foste,
e não cheguei a despedir-me de ti.

(alternativas – “No avesso dos voos”, “Dói-me o caminho que sou”,

    A IV parte inicia-se, talvez propositadamente, com o poema “Catástrofe”. É o regresso de um eu agora imbuído de uma preocupação com os outros ( “Sobre as Pedras” – a fome que mata crianças todos os dias), sensível à natureza e às suas dádivas – (“O tempo das laranjas”), crítico em relação a atitudes de religiosidade imposta (“Páscoa”  - Na vigília extensa do Teu nome / algumas mulheres cobrem a cabeça. // Quase todas se vergam em sacrifícios estabelecidos/ e genuflexões mecânicas, e natal (“Que natal é este” – Dentro de mim não há-de caber um natal / que não sabe caber dentro de todos.

    Além do que, creio, ficou patente quanto ao valor literário da poesia de Virgínia do Carmo, gostaria de referir pormenores que me não passaram desapercebidos. Falo da riqueza vocabular por vezes conseguida pela inusitada adjectivação (liquidez inabraçável do mar; gritos angulares; um anseio vertical; flores acéfalas; aresta áspera e estrídula) pelo recurso a termos eruditos (atérmico, admonição; disfásicas; assíncronos; ambular), pela pluralidade de léxicos relativos a áreas do saber convocadas como a geologia, a geografia, a psicologia e a filosofia, a física e a química e, sobretudo, a geometria. Não se trata de intromissões abusivas e arbitrárias, antes surgem como elementos de clarificação de ideias:

Perdi […] a triangulação das estrelas e a síntese química das pedras;
…na rota recta dos/ olhos, na planura esguia dos ângulos do tempo // [obtusos demais];
…Não tenho ângulos para / medir a congruência dos passos.
  
   Termino agradecendo aos presentes a paciência com que me ouviram. Contava escrever um texto curto, mas a obra não mo autorizou. Entusiasmei-me, e lá vai disto…
   Reitero a ideia de que RELEVOS é uma colectânea poética de Relevo. Um marco na poesia portuguesa dos nossos dias a ombrear com poetas vivas como Teresa Horta, Ana Luísa Amaral, Maria do Rosário Pedreira e outras. Que todo o relevo seja dado a este livro em que alguém que tem a poesia inscrita no seu código genético dá prova de segurança e de maturidade, eis o que desejo à autora a quem me cabe agradecer o ter-me investido de tamanha responsabilidade. Obrigada.

M. Hercília Agarez, Macedo de Cavaleiros, 7/ 9 / 2014

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