21 junho 2014

Destino para uma Língua Moribunda (manifesto em forma de hino), por Amadeu Ferreira ( Fracisco Niebro)

Nosso Senhor é como as pessoas de Miranda, não fala mirandês.
Quando uma língua não serve para rezar. Quando se dizem todos os pecados a Deus, sem medo, e se tem vergonha de rezar em mirandês. Quando é assim, não há língua que resista. Parece que Deus, quando andou pelo mundo a aprender as línguas, chegou aqui e passou ao lado. Eu creio que o desviaram. É tempo de Deus não ter vergonha de falar em mirandês.
Quando uma língua não se escreve, dizem que a história ainda não começou, porque não há como contar essa história. Apenas pode ser contada pela língua dos outros. Uma língua sem história não pode durar para sempre.
O pior é quando a língua deixa de servir para pensar. Ou, quando dormimos, não aparece a falar nos sonhos, porque a língua dos sonhos é aquela que está dentro de nós. Fala-se como se respira. Se o leite que mamamos não vem misturado com a língua, esta não pode ficar metida dentro de nós e ser tão importante para a vida como o estômago, o coração, a cabeça, o fígado. Só dessa maneira não se pode viver sem ela. Apenas assim aparece nos sonhos, ainda que não queiramos. Uma língua que não fala nos sonhos não vai longe.
Há palavras que, quando as dizemos, nos deixam com pele de galinha, mas apenas nós nos apercebemos; há sons que mos envolvem como uma onda de calor, mas apenas nós sentimos o gelo que por vezes trazemos dentro de nós a derreter; há trejeitos da língua dentro da boca, falando, que nos fazem cócegas que ninguém mais sente; há ditos que não têm outra maneira de se dizer e ninguém se apercebe quando não conseguimos traduzi-los; há coisas que, quando usamos outra língua para as dizer, soam como estranhas e, no fim, ficamos com a ideia de que não fomos capazes de as dizer. Há palavras, sons, ditos, coisas, que dormiram durante tanto tempo connosco, que tomaram cama para um lado e quando não nos deitamos para esse lado é como dormir sobre uma pedra.

"A voz e o eco", de Carlos Moreno


20 junho 2014

CONTOS NO TERREIRO AO LUAR DE AGOSTO, de Júlia Ribeiro. Apresentação de Hercília Agarez

 A memória é a sentinela do espírito      Shakespeare

Hercília Agarez e Júlia Ribeiro no "artes e livros"
    Para quem a não conhece, diremos que nasceu em Torre de Moncorvo, se licenciou em Filologia Germânica em Coimbra, é mestre em Ciências da Educação  e exerceu importantes cargos no âmbito do ensino, tendo sido leitora na Universidade de Leipzig.
    Para o que aqui nos interessa, diga-se que foi autora de vários livros cujas datas de publicação desconhecemos. É para falar da última obra que estamos aqui, embora pouco tenhamos a acrescentar ao que constitui a sua matéria introdutória. Na verdade, após um prefácio escrito por mão segura e conhecedora dos meandros da cultura popular transmontana em que são realçados os aspectos mais relevantes do livro aos níveis do conteúdo e da forma, temos dois testemunhos sobre o mesmo e a introdução da responsabilidade da própria autora. Não temos, portanto, muito a acrescentar, com a desvantagem (ou vantagem?) de desconhecermos Júlia Ribeiro.
    Lemos o seu livro na totalidade, embora não profundamente por falta de disponibilidade. Assim, passaremos à sua apreciação, resultante da nossa sensibilidade enquanto leitores.

   Parece ser timbre dos transmontanos o seu apego às raízes. Nascidos em terras desfavorecidas e vítimas de uma interioridade madrasta, tiveram, aqueles a quem estavam reservados mais altos voos, de se deslocar para meios académicos. Outros, para quem o amor soou mais alto, seguiram o seu destino familiar a arrastá-los para longes terras. Seja como for, raramente renegaram o berço, tantas vezes humilde, onde abriram os olhos para um mundo de pureza e de silêncio. E ei-los, sempre que possível, em busca de sítios e gentes da sua infância, a segregarem baba, como o cão de Pavlov, à simples ideia de irem saborear aquele fumeiro inconfundível, a tenrura de uma boa posta, o sabor das couves num caldo bem regado com azeite da região e migado com a broa que conseguiu escapar à modernidade.

UNEARTA - Nr. 21, Setembro 2003

                                Para ler o PDF completo clique aqui

Enviado por António Chaves

19 junho 2014

Júlia Ribeiro em Leiria (Contos no Terreiro ao Luar de Agosto)


Alfândega da Fé - Convite

Apresentação da obra Percursos do poeta Francisco José Lopes
Por Norberto Francisco Machado da Veiga

I – Breve resenha biobibliográfica do autor

Francisco José Lopes nasceu em 1955, em Alfândega da Fé, onde reside. Licenciou-se em História, pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto e é professor do quadro no Agrupamento de Escolas de Alfândega da Fé, onde desempenha, atualmente, as funções de Diretor. A sua atividade profissional tem-se desenvolvido essencialmente no campo da educação, do ensino, da cultura e da comunicação autárquica.
Tem vários textos publicados na imprensa regional (Quanza-Sul, Angola, O Elvense, de Elvas, Maré Viva, de Espinho, Fonte Nova, de Portalegre, Terra Quente, de Mirandela e A Voz do Nordeste, de Bragança). Foi, também, coordenador do Boletim Municipal da Câmara Municipal de Alfândega da Fé desde o seu primeiro número, saído em 1990, até praticamente à sua extinção.
 Prefaciou várias obras de diversos autores, dos quais menciono: Fernando Pereira, Modesto Navarro, Virgílio Tavares, Regina Gouveia, Hélder Rodrigues e Aida Borges e apresentou, igualmente, muitos desses trabalhos. Além disso, é o autor do texto «Alfândega da Fé», inserido no Dicionário dos mais ilustres Transmontanos e Alto Durienses. O autor está representado em Entre o Sono e o Sonho, Antologia da Poesia Contemporânea, Vol. V, publicada pela Chiado Editora, em março de 2014.
            Da sua publicação literária saliento: "O Arquivo Histórico Municipal de Alfândega da Fé", edição da CMAF, em 1994; No tempo das musas, poesia, edição de autor, em 1999 (2.ª edição, da CMAF, 2001); Memórias do tempo, poesia, edição de autor, em 2001; No tempo das palavras, poesia, edição da CMAF, em 2003, e Alfândega da Fé – Registos de um Percurso Histórico, vol. I, edição da CMAF, em 2006.
Termino este sucinto percurso de vida com uma afirmação suscetível de causar alguma celeuma, mas aceite pela maioria dos Alfandeguenses, Francisco José Lopes foi e continua a ser o principal dinamizador cultural de Alfândega da Fé, desde a década de oitenta do século passado até ao presente.
II – Uma possível porta de entrada para o “lago escuro” da obra Percursos do poeta Francisco José Lopes. 
 “Quantos ledores, tantas as sentenças” Sá de Miranda

09 junho 2014

O FARANDULO DE TÓ, por Antero Neto

Janela aberta, para o conhecimento de uma das localidades mais antigas do nosso actual concelho de Mogadouro. Digo, actual porque o autor traça na sua obra o percurso histórico administrativo, bem como o rico património material e imaterial da freguesia de Tó. Dando, neste último tipo de património, enfoque à figura do Farandulo.
Nesta obra são aventadas diversas explicações sobre a evolução do topónimo Tó e a sua progressão fonética, que poderá ser encontrada nas propostas que o autor expõe de forma congruente e lógica, acessível para todos os leitores, incentivando os mesmos ao estudo sobre a origem do topónimo desta freguesia.
O autor, conhecido escritor da nossa terra de Mogadouro, demonstra a sua preocupação em promover, divulgar e conhecer a história de cada uma das diversas povoações do nosso concelho, tendo já publicado algumas obras de carácter relevante sobre o seu património e a sua história, procurando assim conservar pedaços da memória colectiva que poderiam perder-se nos tempos próximos.
Elegeu para esta nova obra a freguesia de Tó, rica em património arqueológico e histórico, mas que no entanto, como refere o próprio autor, onde ainda há muito por descobrir, conhecer e preservar. Senti que a mensagem do autor é a de que se devem manter vivas as tradições e delas tirar o conhecimento que se pode perder.

PERCURSOS, por Francisco José Lopes

Poesia da vida

Por Norberto Francisco Machado da Veiga[1]

O poeta é aquele que escolheu ter um ser através da sua linguagem. Isso pressupõe que a linguagem possa dizer o ser. Por essência a poesia nunca duvidou disso, ou duvidou
afirmando-se através dessa dúvida.

Eduardo Lourenço, Pessoa Revisitado, Gradiva,
2.ª Ed.ª, 2003, p. 23


Começo por convocar, em minha defesa, as palavras de Eduardo Lourenço: «O crítico é o leitor que se crê autorizado a decidir por imaginar ter descoberto os critérios, os pontos de referência, o sistema capazes de introduzir uma ordem no caos da criação»[2]. E, ainda, as palavras de Gastão Cruz: «O discurso crítico perseguirá o poema sem nunca alcançar o que ele é, porventura, inalcançável, ou melhor, o que nele não é explicável, nem parafraseável, nem redutível a uma segunda linguagem»[3] É, pois, adotando estas duas atitudes que escrevo o presente texto.
I – Temas e motivos da poética de Francisco Lopes

Na Epístola aos Pisões do poeta latino Horácio que, anos mais tarde, Quintiliano apelidaria de «Ars Poetica» ou «De Arte Poetica Liber» encontra-se o seguinte preceito: «No arranjo das palavras deverás também ser subtil e cauteloso e magnificamente dirás se, por engenhosa combinação, transformares em novidades as palavras mais correntes[4]. Creio poder asseverar, sem cometer um crime de lesa-majestade, que Francisco Lopes, ao longo da sua atividade literária, seguiu este preceito à letra. O mesmo se encontra patente nos seus vários livros de poesia e, de forma mais acutilante, nos dois derradeiros, onde, sem qualquer dissídio, a sua ars, atinge uma tal depuração que corrobora a citação do grande poeta latino. Ora esta capacidade de traduzir o mundo através das palavras foi uma decisão prematura que o poeta abraçou desde tenra idade, quando despontou para o mundo da escrita e da poesia. Com o tempo apreendeu um outro ensinamento de Horário que se traduz na comparação do ofício cantante, isto é, da arte poética com a arte do marceneiro no apurado e demorado trabalho da lima que, em termos poéticos, nada mais significa do que muita emenda e aperfeiçoamento dos versos que enformam o poema. Esta qualidade não deixa de ser percetível ao leitor que se entregue à tarefa de ler os restantes três livros de poesia, a seguir mencionados, que o autor já publicou e encontra-se, de forma cristalizada, em Percursos.

04 junho 2014

artes e livros -Convite


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artes e livros - Convite



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03 junho 2014

A FILANDORRA,por António Tiza


Era o fim de um chuvoso domingo de Outubro. A rapaziada fazia a sua ronda pelas adegas. Não que fosse muito habitual, mas, havendo assuntos a tratar, aproveitavam a ocasião. Bebiam do vinho novo, meio turvo e ainda um meio adocicado; o velho, esse já havia muito que se enxugara nas pipas. Emborcavam todos do mesmo copo, do pipo ou da bota, consoante as posses de cada anfitrião. E roíam umas castanhas, coisa que não faltava em Varge, terra fria, de corpulentos castanheiros, como gigantes. Assim enganavam o estômago e sempre podiam dar mais umas goladas que, nesse tempo, a rapaziada era numerosa e nenhuma adega podia ficar sem a devida visita.
Por via de regra, os mordomos dos rapazes eram escolhidos entre os mais experientes. Não foi o caso nesse ano. Tendo sido “eleitos” no Santo Estêvão do ano anterior, como sempre se procedia, Joaquim da Frairenga e Manuel João eram dois novatos; Dera-se o caso que os “velhos”, combinados entre si, quiseram pregar-lhes a partida ou, por assim dizer, tomar-lhes o pulso. Como mandam as regras, no fim do almoço, deram duas voltas por trás da mesa, um por cada lado, deixando cair, à vez, os seus enfeitados chapéus de mordomos nas cabeças de todos. Contudo, não chegaram a fazer duas passagens. Queriam fazer a surpresa. Inesperadamente (havia sempre uns mais velhos que já contavam com o ovo no cu da galinha), os chapéus permaneceram pousados na cabeça do Joaquim e do Manuel João. Só passados alguns momentos é que o pessoal se deu conta do que havia acontecido: tinham sido eles os “eleitos”. Não obstante, houve aplausos entusiásticos e a algazarra foi geral. Tinham para o ano mordomos verdadeiramente “novos”. Eles saberiam dar conta do recado.
Joaquim era um rapaz sossegado, um “paz d’alma” que se dava bem com todos e estava sempre pronto a dar uma mão. Tinha feito a quarta classe, mas dali, como a grande maioria, dali não tinha passado. Queda para os estudos, isso tinha ele, mas as leiras da família e os cinco irmãos mais novos que havia para criar não davam para o pôr a estudar na cidade. Cedo, com os seus onze anos, já andava agarrado à rabiça do arado, atrás da junta de vacas. Agora, com dezasseis anos feitos, era mordomo da festa dos rapazes.
O seu companheiro de funções, o Manuel João, na casa dos dezoito, não era mau diabo, mas tinha lá o seu feitio; “mau génio”, dizia o povo. Na hora da eleição, tinha ficado todo emproado e não cabia em si de contente. Joaquim conhecia-o bem: na escola tinha havido umas disputas por dá-cá-aquela-palha, mas as coisas ficaram por ali porque o Joaquim não queria problemas com ninguém, muito menos com ele. Raramente se encontravam; evitavam-se, sem deixarem de se falar. Mas na hora da sua escolha para mordomos, ambos se tinham esquecido das rixas do passado. E abraçaram-se como grandes amigos.
Chegado o mês de outubro, a prova de fogo dos mordomos ia começar. Era agora. Sim, porque outras tarefas haviam sido realizadas já durante o verão, mas nada que se assemelhasse à lenha dos Santos; tinham feito umas quantas jeiras para lavradores carenciados de mão-de-obra, executadas pela “sociedade” dos rapazes, para angariação de fundos para a festa. Peditórios, nada; só para os santos, que uma festa pagã não gozava de estatuto que lhos permitisse fazer. Até mesmo a arrematação da lenha dos Santos se destinava, na quase totalidade, para o sufrágio das almas. 
Os Santos estavam mesmo à porta. No fim da ronda das adegas, Joaquim lança então o aviso, tomando a palavra com a autoridade de que estava revestido:
− Rapazes, no domingo que vem, é preciso arrancar as cepas. Este ano vamos à Pena Veladeira, bem sabeis, os tratores da floresta já lá andaram a romper o mato, está tudo revolcado e temos lá coisa que chegue e sobre para uma boa carrada. 
Ficou, pois, assim decidido. Aquele lugar ficava a mais de duas léguas da aldeia, a raiar o termo de Rio de Onor. Mas, enfim, trocavam um mais longo carrego do carro pelo trabalho facilitado da arranca das cepas, num terreno já completamente desbravado. Bem mais duro seria arrancá-las num qualquer matagal onde até os javardos entrariam com muito custo.
Na verdade, nos princípios dos anos sessenta, as máquinas dos Serviços Florestais já haviam ocupado quase todos os baldios cultivados, plantados agora com pinhos ou em vias disso. Uma boa parte da mocidade por lá trabalhava, sempre era uma boa ajuda para o sustento da casa. Só os mais abastados dispensavam essas magras jeiras; nem tempo para isso tinham, ocupados que andavam no amanho das terras. Era uma canseira todo o ano. Como tal, Vale de Espinheiros, as Rachas ou a Pena Veladeira, em qualquer um destes lugares tinham o trabalho bastante facilitado. Mas, é claro, a distância era consideravelmente maior do que o habitual. Ainda assim, optaram por esta solução, com algumas vozes discordantes e resmungonas, poucas.
Nesse domingo, bem cedo, lá foram. Apesar de algumas faltas, formara-se um grupo numeroso. Fizeram todo o caminho a pé. Ainda assim, chegaram à Pena Veladeira com tempo de sobra para arrancarem um castelo de cepas. A meio da manhã começou a cair uma chuva miudinha, de molha-tolos, e que aos poucos foi engrossando. Sem se importarem com o contratempo ou sem darem por isso, continuaram o trabalho: cravar o enxadão bem fundo na terra meio esfarelada pelas máquinas, sacar as cepas das urzes, em jeito de pé-de-cabra, e sacudi-las até ficarem limpas dos torrões. Mesmo com a terra amolecida, sempre era um trabalho árduo: cepas grandes, com raízes profundas, que haviam de dar para uma boa arrematação.
Chegou a hora da merenda. Havia ali uma fraga de enormes proporções e em forma de gruta. E lá se abrigaram todos. E mais que viessem. Lá se viam ainda os restos das paredes que um antigo pastor de cabras construíra, havia muitos anos. Pastor-ermitão, dela fizera a sua casa, por lá passara os seus dias. Cada vez que baixava ao povoado, diziam os antigos, era para fazer um filho.

A dada altura, começaram a ouvir vozes que se tornavam mais percetíveis à medida que se acercavam. Certamente, buscavam o mesmo abrigo.
− São os de Rei D’nor – adiantou Chico Tonho. Só poderia ser, naquele monte, domingo e àquela hora, alguém que andasse ao mesmo que eles. Quando os avistaram, Manuel João, tendo confirmado de quem se tratava, lança o convite: “Vinde p’ra aqui, cabemos cá todos”.
Couberam, sem dificuldade. Sacaram as merendas, pão, toucinho, uns nacos de presunto (só para os mais abastados) e vinho. Alheias e chouriças frescas, vinham mesmo a calhar, para assar em brasas de estevas. Mas quê, as matanças tardariam mais um mês. O isco que levaram já tinha ranço de um ano. E o que havia, partilhado foi por todos.
Conversavam animadamente; os de Varge sentiam-se emproados por receberem os vizinhos em sua “casa”. Sim, porque a dita fraga se situava dentro seu termo. Inesperadamente, um de Varge, o Rogério, lança uma provocação, virando-se para os de Rio de Onor, alto e bom som para que todos ouvissem:
− Qual é o maricas que este ano vai de Filandorra?
− Vê lá como é que falas! – responde o mordomo da festa dos Reis. Ato contínuo, um dos outros avança em direção a Rogério, com a navalha em riste. A confusão estava prestes a rebentar. Alberto Lameira, o outro mordomo, segura-o pelas costas para evitar o que já parecia inevitável:
− Vá, vá! Tem calma – ordenou, como que a dizer que era ele quem impunha ordem na sua rapaziada – não queremos cá confusões.
Calaram-se todos, olhando uns para os outros sem saber como reagir. E a coisa ficou assim meio suspensa, na expetativa de ver como aquilo ia acabar.
Rogério Cabeço era o único que conhecia bem a festa dos reis de Rio de Onor. Seu pai era guarda-fiscal, tinha sido colocado lá no posto e ele por lá tinha sido criado até ao fim da primária. Nessa altura, o pai fora promovido a cabo e chefiava agora o posto de Aveleda. E ele, querendo mostrar que sabia daquilo e sentindo as costas quentes pelo estatuto do pai, tinha feito aquela provocação irrefletida. Mesmo tendo saído de lá havia oito anos, lembrava-se bem da Filandorra, essa figura feminina representada por um dos rapazes, que acompanhava os mordomos pela aldeia no peditório.
− Desculpai, rapazes, não será por causa deste desbocado que vamos estragar a merenda – pediu Joaquim da Frairenga, levantando os braços em sinal de paz.
− Está. Mas deixa que te apanhe. Vais pagá-las – ameaçou o outro.
Era Manolito, nome que lhe vinha do pai que era de Arriba, o que naquele ano ia fazer de Filandorra. Fora, por isso, atingido em cheio na sua masculinidade e, sem querer, havia-se denunciado. Nestas condições, tal provocação poderia ter um desfecho desagradável. Mas, por agora, nada, tudo acalmou e logo voltaram ao trabalho das cepas, cada grupo para o seu terreno.
António Tiza


01 junho 2014

artes e livros - “ EFÉMERA GLÓRIA D’EL REY SEM TRONO “

A Peça de Teatro, “ EFÉMERA GLÓRIA D’EL REY SEM TRONO “ de autoria de António Afonso, é uma ficção dramática, que assentando em factos históricos verídicos, se desenvolve a partir da pretensão do Duque de Lencastre, John of Gaunt, ao trono de Castela e Leão, em que como aliado de Inglaterra por tratados antes celebrados, está envolvido D. João I de Portugal.
Intitulando-se já como Rei de Castela e Leão, como consta do texto do próprio Tratado de Babe, o nobre inglês abdicava de qualquer direito que no futuro viesse a ter sobre a Coroa de Portugal.
Sem efeitos políticos dignos de nota, mas por fazerem parte da história local, não poderão os factos ser desvalorizados ou ignorados.
Através do seu processo criativo e baseado em factos reais, a Ficção transporta-nos no Tempo e torna-se fisicamente presente, como ferramenta da nossa memória colectiva.
Sendo ainda a Ficção, um género literário complementar ao nosso imaginário, é a Arte Cénica um veículo da mesma por excelência, tornando-a em nosso entender, culturalmente legítima.


 PREFÁCIO

 Foi com alguma surpresa, que recebi o convite do meu ilustre amigo António Afonso para escrever o prefácio da sua peça de teatro: Efémera Glória d’El Rey Sem Trono - A História Atribulada do Tratado de Babe. Surpresa, porque nunca tinha escrito um prefácio para uma peça de teatro mas, alguma vez havia de ser a primeira... Depois de ler o supracitado texto da peça, fiquei muito mais à vontade, na medida em que o tema era inteiramente ligado à minha formação académica, ou seja, à História. Por isso, foi com toda a alegria e algum atrevimento, que aceitei tão honroso convite.
Tenho uma grande admiração e estima pelo meu grande amigo António Afonso, desde há muitos anos, por isso, não me é fácil falar dele. Como pessoa, para além de uma vasta cultura e erudição, tem aquela maneira de ser tão transmontana, que nos põe completamente à vontade, como se nos conhecesse-mos desde sempre. Espírito aberto, alma cristalina, coração sem reservas.
Como homem de Arte, este Bragançano é um criador multifacetado, fecundo, cria um pouco de tudo, à maneira dos intelectuais renascentistas: escreve poesia, é autor de várias peças de teatro e de prosa, pintor, participou (e participa), em incontáveis exposições (quer individuais, quer colectivas), pronunciou inúmeras conferências e palestras, enfim um artista completo, com um curriculum vastíssimo, que preenche várias folhas e que aqui referi muito sucintamente.   
A peça Efémera Glória d’El Rey Sem Trono - A História Atribulada do Tratado de Babe, para além de estar muito bem elaborada, escrita numa linguagem acessível quer aos intelectuais quer ao público em geral vale também pela valorização da História local, normalmente tão esquecida. Há muitos anos que vimos defendendo que, as nossas escolas deviam ter uma disciplina de História Local para que os nossos alunos conhecessem a História da sua terra e das suas gentes.
O texto fala-nos no célebre “Tratado de Babe”, do qual falaremos mais à frente. Devo confessar que visitei pela primeira vez Babe, aquando do Congresso “A Festa Popular em Trás-os-Montes”, decorrido entre 3 e 5 de Novembro de 1993, em Bragança e Miranda do Douro, em companhia sabedora do saudoso Senhor Padre Belarmino Afonso. Foi uma lição de História, que jamais esquecerei.
Mas voltemos ao contexto em que se desenvolve a supra referida peça. Decorria a guerra pela independência de Portugal, face a Castela. Eram tempos difíceis de guerra, com muitas incertezas sobre o futuro, sobretudo para Portugal.
Eleito nas Cortes de Coimbra, Regedor e Defensor do Reino, o Mestre de Aviz, era doravante Rei de Portugal, ou seja, era D. João I de Portugal. Haviam de se encontrar estratégias para defender e consolidar a nossa independência face a Castela. Assim, nesse sentido, em 1383, consegue-se um tratado de aliança entre Portugal e a Inglaterra e em 9 de Maio, pelo Tratado de Windsor novo tratado. Este Tratado determinava que entre estes dois reinos haveria «uma liga, amizade e confederação real e perpétua, de maneira que um seria obrigado a prestar auxílio ao outro contra todos os que tentassem destruir o Estado do outro». Este tratado servia perfeitamente quer os nossos objectivos quer os da Inglaterra. Portugal contava assim com um poderoso aliado contra Castela. Por sua vez, também servia perfeitamente os interesses ingleses na medida em que era importante para a pretensão do Duque de Lencastre, ao trono de Castela. É que o Duque de Lencastre, D. João de Gaunt, quarto filho do Rei Eduardo III de Inglaterra, após ter ficado viúvo de Blanche de Lancastrer (de quem teve D. Filipa de Lencastre, que nasceu em Inglaterra em 1359), casou em 1371, em segundas núpcias, com a Princesa Constança, filha do falecido Rei Pedro I de Castela, O Cruel, envolvendo-se assim, na política castelhana ao declarar-se pretendente da Coroa de Castela, rivalizando com Henrique de Trastâmara, na disputa do mesmo propósito. Muito inteligentemente, D. João I de Portugal, apercebeu-se que esta era a grande oportunidade para ter um aliado contra Castela, uma vez que iria não só dividir as tropas do inimigo, como também, viriam para a Península Ibérica muitos mais militares, gente que apoiava o Duque de Lencastre. Por isso enviou um emissário a Inglaterra, oferecendo auxílio ao Duque de Lancaster. O Duque inglês aceita a oferta e desembarca o seu exército na Corunha. O encontro entre os dois aliados dá-se em Ponte de Mouro, perto de Melgaço, onde subscrevem um novo Tratado de Aliança, contra o Rei de Castela. Como era costume na época, com a finalidade de reforçar essa aliança, ficou combinado o casamento de D. João I de Portugal, com D. Filipa de Lencastre, filha do Duque inglês.
Entretanto o Duque de Lencastre e as suas tropas seguem para Bragança, onde fica hospedado no Mosteiro de Castro de Avelãs. Após se ter solicitado a Roma a necessária dispensa do mestrado de Avis, veio D. Filipa, alojando-se no Porto, no Paço do Bispo. Na manhã do dia 2 de Fevereiro de 1387, na cidade do Porto, na Igreja de S. Francisco, realiza-se o referido casamento. D. João I de Portugal demorou-se bastante no Porto e o seu sogro, farto de esperar, parte com as suas tropas para Babe, povoação fronteiriça, perto da cidade de Bragança, onde os dois exércitos se iriam reunir. Aqui, em 26 de Março de 1387, era assinado um novo tratado, o Tratado de Babe. Por este Tratado, o Duque de Lancaster desistia de qualquer direito, que no futuro viesse a ter, sobre a coroa de Portugal. 
Após a assinatura deste Tratado, os dois exércitos aliados, atravessaram o Rio Maçãs e rumaram a Alcanices. Entretanto, D. João de Gaunt, chega a acordo com o rei de Castela e, para selar este acordo, casa outra sua filha, com o Rei de Castela, tendo o Duque de Lencastre regressado a Inglaterra. No entanto, a guerra entre Portugal e Castela, estava longe de ter acabado. Morto D. João I de Castela, o seu sucessor, D. Henrique III, reavivando a guerra, invadiria Trás-os-Montes, em 1397, não respeitando as pazes anteriormente assentes, entre os anteriores monarcas, dos dois reinos.
Conquista Bragança, Vinhais e Mogadouro, obrigando D. João I de Portugal, a entrar pela Galiza, para libertar estas terras transmontanas, em 4 de Maio de 1398.
A paz definitiva entre estes dois reinos, apenas seria alcançada em 1411.
Dentro do contexto de uma guerra tão prolongada, quero salientar alguns factos, relacionados com estas terras transmontanas. Assim em 16 de Maio de 1386, D. João I de Portugal, doou um Foral ao Azinhoso (renovado em 13 de Fevereiro de 1520 por D. Manuel I Rei de Portugal).
Segundo a História, D. Nuno Álvares Pereira, o Condestável de D. João I de Portugal, terá rezado junto ao altar de Nossa Senhora da Natividade, no ano de 1386, na centenária Igreja de Santa Maria do Azinhoso, pedindo protecção à Virgem, contra os Castelhanos. Também há uma grande polémica sobre o local onde se terá realizado o célebre Alardo da Vilariça (é que há duas povoações possíveis de ter ocorrido porque ambas se chamam Vilariça, uma no concelho de Torre de Moncorvo, outra, muito perto do Azinhoso, concelho de Mogadouro).
Para concluir, devo chamar a atenção para uma reprodução “fac-símile”, do Tratado de Babe, incluído neste livro. Como o pergaminho original, guardado na Torre do Tombo está em muito mau estado, a Associação Bragança Histórica, de que o António Afonso é membro fundador, tomou a notável iniciativa de o mandar restaurar, parabéns!
Só me resta desejar ao leitor uma boa leitura desta notável peça de teatro.      

António Pimenta de Castro