08 março 2014

ARS VIVENDI, ARS MORIENDI - um texto de António Pinelo Tiza


FraciscoNiebro, ArsVivendi, ArsMoriendi, Âncora Editora, Lisboa, 2012
Resumo
Existe uma língua antiga, quase só falada até há uma dúzia de anos. Nestes três lustros, saltou para a ribalta e hoje escreve-se profusamente e afirma-se sobretudo nos domínios da comunicação e da literatura.
Amadeu Ferreira é um mestre incomparável da língua mirandesa. Mestre sobretudo da escrita, poesia e romance. Arrisco-me a afirmar que é a língua mirandesa uma das suas maiores paixões. Em pé de igualdade com a portuguesa, bem entendido. Pois não é Amadeu um escritor de duas línguas? A resposta parece óbvia: sim. Escreve em Mirandês e escreve em Português. Mas não. Para aqueles que acreditam na heteronomia, Amadeu Ferreira é o escritor e o ensaísta da língua portuguesa e FraciscoNiebro o romancista e o poeta do mirandês.
Assim, foi FraciscoNiebro quem escreveu ArsVivendi, ArsMoriendi, em Mirandês, como deve ser, por se tratar de uma obra poética. Amadeu Ferreira não poderia ter escrito esta obra em Português porque a sua forma e o seu conteúdo são de FraciscoNiebro e só este a poderia ter escrito; nem sequer se atreveu a traduzi-la porque Niebro pensa e escreve só em Mirandês. Então, ou escrevia tudo de novo e do princípio ao fim (outra obra), ou encarregaria alguém (no caso, António Cangueiro e Rogério Rodrigues) da tradução. Uma obra bilingue, com toda a propriedade.
1.     Os trabalhos e os deuses

O desespero de Orfeu
A mitologia clássica (e toda a cultura que a suporta) percorre transversalmente esta obra poética, enquadrando a cultura e as vivências mirandesas.FraciscoNiebro, tal como Orfeu, desceu ao inferno da cidade para trazer de volta ao mundo dos vivos a sua amada terra, cantando-a com a sua própria lira – a língua mirandesa.Niebro venceu o desespero ao regressar à sua origem e à sua gente, para lhes conferir a dignidade a que têm direito: ninguém melhor do que eles detém a “Arte de Viver / Arte de Morrer”.
A arte de viver (deixa perceber o poeta) só se alcança com a arte de morrer; assim se compreende que estejam “vivos os meus mortos”; é que ele não os deixa morrer, mantém-nos vivos para que neles o futuro lance raízes.

É triste ser velho será porventura um subcapítulo profundamente existencial(ista). Sem rodeios, renega o eufemístico ditado de que velhos são os trapos; não, “só as pessoas são velhas” e se o não forem, tanto pior; é porque morreram novos.
            O carpe diem de Horácio é, em Fracisco, “um sereno olhar de frente”, despreconceituado sobre essa idade existencial, a única de que não teremos saudade. Se formos coerentes connosco mesmos até ao fim, não vamos ter medo da velhice. Viver o tempo certo, não demorar mais do que aquilo que era suposto – isso é o que está certo. De outra forma, se demorarmos numa fase da vida mais do que o previsto, já ninguém esperará por nós. Interrogamo-nos, então, onde ficará a última fronteira, quando a vamos ultrapassar. Estas e outras dúvidas existenciais são cavalos a trotar na nossa cabeça, na noite da vida. A noite será a velhice; está prenhe de um exército de fantasmas que simplesmente vagueiam porque não têm pressa de ganhar a guerra; a morte está segura da vitória, qual “puta que nunca se deixará por nós foder”.
            Longe, longe era a cidade
            Deixamos a cidade para trás e ligamo-nos à terra – uma maneira de a ela nos acostumarmos e de nos lembrarmos de que um dia a ela (a outra terra) havemos de voltar, porque “pulviseset in pulveremreverteris”.
            Mas a cidade está bem presente nas lembranças do poeta que se misturam com as da terra, de quando era criança e observava o trabalho das andorinhas fazendo seu ninho com o barro que moldavam com o peito. E o voo das andorinhas que lhe trazia a luz da primavera. E o som do ruminar das vacas que se misturava com o chilrear dos pássaros do fim do verão, tão diferentes das andorinhas por não fazerem filasno voo “a la tarchica”. Entra, então, o outono da vida, o tempo oportuno de reviver princípios que os pecados de juventude haviam murchado. E prosseguir caminho.

            A morte da horta
            Apesar de tudo, com o retorno à terra, é preciso refazer a horta. Na primavera, tudo desperta como se de uma nova paixão se tratasse. Como se fosse o recomeço da vida. Mas, nesta altura, não sabemos se vamos conhecer a maioridade das árvores que plantamos; tampouco sabemos se os filhos vêm colher seus frutos; por isso, descansemos do muito que laborámos; a horta será aquilo que eles (não) quiserem que seja.
            Deuses
            O homem, enquanto contador de histórias (historiador), criou os deuses, mas reservou-lhes um papel secundário, no tempo ab origine, no génesis – o tempo da criação.Nós agora, à medida que o nosso fim se aproxima, sentimos necessidade de contarmos essas histórias como se assim nos tornássemos “andiuseseimortales”.
            Há vários tipos de deuses: os que já não servem para nada, como Júpiter, o das trovoadas, porque o avanço da meteorologia resolve a necessidade de conhecero estado do tempo; os que continuam na ordem do dia, como Marte, porque as guerras nunca deixaram de se fazer, nem deixarão; e outros que foram elevados ao estatuto divinal, como o Dinheiro. Todos eles lutam por um elevado número: de fiéis, de orações, de condenados à fogueira, de sacrifícios…
            Deixa me falar-te dos anos
            O poeta recua ao tempo da sua meninice, em que não se celebravam aniversários. Relembra esse tempo de má memória: as moléstias que matavam, sem olhar à idade; a mulher só frequentava a escola da vida, a dureza do trabalho do campo; a emigração que lhelevava o amparo do homem e também os filhos pouco mais que crianças e ela ali ficava sozinha, a envelhecer. O triunfo deles a ela se deve; já não precisam do que ela faz; precisam dela mas, se calhar, ela já partiu.
            Na verdade, a mulher sempre esteve interventiva nas grandes transformações do mundo; mais, foi por ela que se operaram, qualquer que fosse a sua condição.
            Mas não é preciso esticar os anos. Não se lembra já o poeta (diz ele à sua musa) de como estava o tempo quandocumpriu vinte anos. Foi há tanto tempo e já teria morrido se tanta informação tivesse sido acumulada na sua memória. Mas uma coisa sabe: era primavera e ela, a musa, trazia um lenço na cabeça, cujo brilho lhe iluminou a noite de todas as suas dúvidas existenciais.
            Do que o poeta não tem dúvidas é do tempo em que “ninguém festejava o dia dos meus anos”. Tudo está presente na sua memória: a dureza de vida, a casinha, a mesa despida de louça com desenhos bonitos e de talheres e copos, a família grande… Faria sentido celebrar aniversários? Hoje, tantos anos passados, “já me vão fazendo anos”: a velhice que se aproxima é uma preciosidade; há que celebrar cada ano que se cumpre como “um milagre” que acontece; há que agradecer não pelo tempo em que não festejavam o dia dos seus anos, mas “por habertenidoaqueilhagiente!...”.
            Pequeno tratado da arte da enxertia
            Será este subcapítulo uma alegoria à ruralidade vivida pelo poeta.
            A arte da enxertia consiste em aprender a lidar com as condições que se nos deparam: a persistência é a chave para o sucesso. Em algum outono (mesmo que não se saiba qual) os enxertos hão-de dar fruto.
            Para ir aos pássaros era preciso madrugar; a ansiedade precedia a entrada triunfal na aldeia: subia a rua com um rosário de pássaros ao pescoço, qual general que arrastava a sua vaidade entrando em Roma à frente dos seus exércitos vitoriosos.
            A longevidade das oliveiras equivale a fazer troça do tempo que as torna mais velhas que o próprio tempo; para os humanos (que procuram, a todo o custo, escondê-lo) é uma lição difícil de aprender. A vitória sobre nós próprios (que Píndaro não poetou nem cantou) é a que nos torna deuses, uma vez que outros não existem. A persistência, a tal chave da arte da enxertia, reafirma-se como a força dos fracos; neste caso, eles serão vencedores e deles rezará a história.
            Mas o poeta tresmalhado há-de voltar um dia às rochas e às escarpas, que é como quem diz, às arribas. Há-de caminhar por entre as flores das esteves e os frutinhos dos zimbros, por sobre o rio; registar os sons da aragem e a melodia da água em cachões; voltar às raízes do esquecimento eterno, na contemplação da simplicidade dos elementos: água, pedra, terra e flor.
            Longa é a noite
            A velhice torna longa a noite; dá para ouvir as cantigas dos pássaros que nos inspiram para viver o dia que entra de madrugada: orientar-nos para onde possamos sentir a frescura da primavera ou desfiar lembranças, contas, abrir sorrisos de apaixonado “numa abrigada ao sol de janeiro”. Há tanto para falar que o tempo pode não chegar.
            Longa é a noite mas os pássaros alegram-na com seus cantos de tal forma que ela passa sem que se dê por isso. Os cantos embalam o sono e levam-nos num voo mágico; quando eles se calam, vem então a cigarra a acender a fogueira da manhã; por ela nos deixamos encantar, como se regressássemos ao tempo da meninice.

2.     O caminho de casa
Lição de Filosofia
Em linguagem poética, FraciscoNiebro lança-nos um conjunto de metáforas filosóficas (a obra é uma metáfora do princípio ao fim, mas estas são mais contundentes), que nos fazem refletir: “a cultura alimenta-se da vida” e não das catedrais que “de tão altas, nada em importância se lhes mede”; o saber, posto como fronteira da felicidade, “é veneno que te sabe bem e nada mais”; os significados de amor são tantos quantos se queiram criar e crescem como erva simples “mas tão essencial que dá os seus rebentos a comer”. A Filosofia está aqui personificada, claro, como Sócrates que, sabedor de que ter não é um verbo, mas um problema sem solução, “se encostou ao ser e nunca mais de lá saiu”. E nós teimamos em nosdebruçarmos à janela que faz a pálida imagem do que pretendemos ser. A alma do ser tem um mundo solidário como céu, num tempo de flagrantes contrastes: as palavras e os sorrisos da solidariedade trocam-se “por sangue e por dor”.
O caminho de casa
A casa é o sítio da memória, aonde sempre voltamos e onde continuamos a construir novas lembranças; faz-nos reconhecer a nossa própria identidade. Se tal não for possível fisicamente, ao menos em sonhos voltamos ao ninho da nossa infância, “ao início de tudo” – ao paraíso.
Mas vale apena acompanhar o raciocínio do poeta: o paraíso é o lugar onde nadafazemos, onde nada temos que conquistar, mas também onde não somos livres; onde somos dependentes como um ser acabado de vir ao mundo; o pecado original é então o meio que nos leva a sair do ninho, o acto que nos torna adultos, com dignidade.
Em todo o caso, convém não esquecer o caminho para casa porque ele é feito de memória. Assim sendo, os sinais desse caminho estão dentro de ti, são a tua identidade. Talvez por isso, o poeta recobra a memória dos silêncios amarelos do Planalto (Mirandês, entenda-se), sem ondas de seara, nem ceifeiros, nem grão que permita alimentar um pássaro cujo voo rasante o levasse a uma sombra de fim de tarde. Mas não deixará ele de reparar nas paisagens estéreis que são a memória de um tempo de fertilidade; ele sabe que tem que descer à terra, que as coisas simples, sem valor aparente, têm cotação no caminho que o reconduz a casa.
Coisas miúdas
Agora o poeta fixa a sua atenção nas coisas simples do campo. As primeiras passagens deste subcapítulo apresentam-se num estilo a que chamaremos de prosa poética. As últimas serão mesmo poesia. Umas e outras se constroem um reflexo da vida do Planalto. O significado dessas pequenas coisas está descrito com tanta simplicidade que elas acabam por adquirir a profundidade das grandes questões filosóficas. Afinal as coisas importantes são inúteis; são simples as paisagens sem limites; “só amplas vistas te libertam da cadeia onde passas os dias”, preso sem condenação.
A ecologia é tratada no amanho da horta: as pequenas lides, as alfaias de abrir os sulcos para a sementeira ou a rega, a floração, o crescimento, a maturação e a colheita; as cotovias em seu voo que, antes de poisar, desenham um arco que permite a visão da brancura dos seus peitos. Alguém se havia lembrado desta minudência? É assim: a ecologia está reflectida em tantas destas “menudas” do ciclo agrário, sem mais; para a descobrir precisamos de prestar atenção a todos estes sinais de vida.
Coisas “menudas” como os “gramitos, cachicos de bides” nada valem, mas o assar da sardinha depende desses nadas ardentes. Coisas tão simples que, se não lhes damos importância, jamais alcançaremos o que toda a vida procuramos – a nossa felicidade – e, à falta delas, nos finamos.
Mas há muitas “menudas”; tantas e tão surpreendentes que é preciso lê-las – tarefa que, neste capítulo, se torna tão grata que nem damos pelo folhear das páginas.
Língua
A língua mirandesa? Não sei bem; sei (fiquei a saber):o que o poeta escreve devia calar fundo em cada um de nós: por pouco falada e desconhecida que seja uma língua, não deixa de ser um pilar do mundo; é pelas pequenas fendas que se arruínam as grandes construções. Procuramos palavras para dizer o que somos; o que o poeta faz é procurar palavras, sorvê-las e embriagar-se com elas. Às vezes, descobre uma nova palavra que o deixa louco ao fugir e voltar, nesse vaivém feito de alegria onde sempre penetra a tristeza. Conseguirá ela transmitir o nosso pensar ou é a língua em seu processo (re)construtivo?

3.     Pedrinhas que fazem sempre mosaicos
Com uma centena de “pedrinhas”, o poeta construiu um conjunto harmonioso e variado de mosaicos, rústicos, de uma vidência tão simples que nos levam a dizer “como é que nunca tinha pensado nisto?”. As “pedrinhas” são triangulares, tercetos silogísticos (quase) aristotélicos: duas premissas e uma conclusão; esta deve estar contida naquelas.“Pedrinhas” em jeito de haiku, a estrutura do terceto japonês, de cinco/sete/cinco sílabas. Desta forma, os mosaicos acabam por formar um painel filosófico de louvorà Natureza e a todos os elementos que a constituem: água feita chuva que engrossa as ribeiras e emprenha os campos da “prainada”; terra onde, dessa prenhez, nascem flores – está chegando a primavera; ar do voo das andorinhas e do vento que corre veloz e atira para longe as folhas amareladas e anuncia um novo tempo, o outono; o fogo é de festa no inverno e o sol de verão transforma a paisagem em arco-íris, com todas as cores, formas, figuras… O painel de mosaicos fica então completo, tal como a Arte de Viver e de Morrer; afinal, “o mundo até é bonito”.

António A. Pinelo Tiza



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