31 março 2014

Provérbios - Três por dia

1 - Paciência de velho tem pouco valor.
2 - Paciência é a mãe da honra.
3 - Paciência e sebo de grilo é bom para aquilo.

O RIO QUE PERDEU AS MARGENS, por António Cabral


António Cabral frequentou o curso teológico do Seminário de Vila Real e obteve a licenciatura em Filosofia pela Universidade do Porto. Depois de abandonar a vida sacerdotal, ingressou no ensino secundário, sendo professor efectivo da Escola Secundária Camilo Castelo Branco. A partir de 2001 foi professor de Cultura Geral, na Universidade Sénior de Vila Real. Era conhecido pelas suas conferências em centros culturais, escolas do ensino básico, secundário e universitário, tanto em Portugal como no estrangeiro, Galiza e Alemanha sobretudo, falando de temas que lhe eram preferidos, tais como literatura, jogos populares e pedagogia do jogo.
Como animador sociocultural, fundou em 1979 o Centro Cultural Regional de Vila Real, do qual foi Presidente da Direcção até 1991, ano em que passou a ser o Presidente da Assembleia Geral. Foi sobretudo na investigação e organização de festas de jogos populares que a sua acção se tornou mais notória. Através deste Centro promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro: em Vila Real (1981), Chaves (1983), Bragança, Mirandela e Miranda do Douro (1984), Lamego, Régua e Alijó (1985) e Vila Real (1997). Foi perito do Conselho da Europa no II Estágio Alternativo Europeu sobre Desportos Tradicionais e Jogos Populares, realizado em Lamego, em 1982. Foi ainda o principal responsável pela organização dos Jogos Populares Transmontanos e Jogos Populares Galaico-Transmontanos, com início respectivamente em 1977 e 1983. No Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis, que antecedeu o Instituto da Juventude, desempenhou os cargos de Delegado do Distrito de Vila Real e Coordenador da Zona Norte, entre 1974 e 1976. Foi Presidente da Direcção e mais tarde Presidente da Assembleia Geral, da Associação Nacional de Animadores Socioculturais, fundada em 1995. Desde Março de 1996 até final de Janeiro de 2004, foi Delegado do INATEL no Distrito de Vila Real, o que lhe permitiu privilegiar a cultura popular.
No domínio das letras e das artes fundou em Vila Real, em 1962, a revista Setentrião, a revista Tellus de que foi o primeiro director em 1978, e o mensário Nordeste Cultural, em 1980. Era membro do Conselho de Redacção da revista galaico-portuguesa O Ensino. Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal de Alijó (1985) e de Vila Real (1990). Foi seleccionado para Maletas Literárias de duzentos livros portugueses, no programa Territórios Ibéricos em 2004-2005. Teve uma colaboração dispersa por revistas e jornais portugueses e estrangeiros, salientando-se a colaboração semanal entre Novembro de 1993 e Janeiro de 1995 no jornal Público, com textos sobre tradições populares. Colaborou ainda com o Semanário Transmontano, com o jornal Entre Letras, de Tomar, e com os periódicos Notícias do Douro e Notícias de Vila Real. Teve participação em programas de rádio e de televisão, colectâneas escolares, obras colectivas e antologias de poesia, tais como Poesia Portuguesa do Pós-Guerra, Poesia 71, Oitocentos Anos de Poesia Portuguesa, Hiroxima, Vietname, Poemabril, Ilha dos Amores, O Trabalho, Poetas Escolhem Poetas. Alguns poemas de António Cabral foram cantados por Manuel Freire, Adriano Correia de Oliveira e Francisco Fanhais. Prefaciou e/ou fez a apresentação de diversos livros, entre eles, Cantar de Novo, de José Afonso e Ser Torga, de Fernão Magalhães Gonçalves e também de obras de escritores transmontanos com projecção nacional como Bento da Cruz e António Manuel Pires Cabral.
BIBLIOGRAFIA:

30 março 2014

Provérbios - Três por dia

1 - O abade canta do que janta.
2 - O abismo atrai o abismo.
3 - O Abril é um rapaz, não sabe o que faz.

UM EXEMPLO PARA OS INTELECTUAIS TRANSMONTANOS: TRINDADE COELHO E A LÍNGUA MIRANDESA, por Amadeu Ferreira

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UM EXEMPLO PARA OS INTELECTUAIS TRANSMONTANOS: TRINDADE COELHO E A LÍNGUA MIRANDESA, por Amadeu Ferreira

HISTÓRIAS SELVAGENS - Contos, por A. Passos Coelho


António Passos Coelho nasceu em Valnogueiras, concelho de Vila Real, em 31 de Maio de 1926, filho de Paulino José Alves Coelho e Dona Margarida do Carmo Teixeira Passos. O pai era lavrador, podendo considerar-se abastado pelos padrões da época e do lugar. A mãe era professora primária.O casal teve dez filhos, sendo António o penúltimo. Esta prole numerosa condicionou de algum modo a escolaridade de António, que, após concluir a instrução primária em Valnogueiras, não pode vir estudar para Vila Real, como era seu desejo, uma vez que alguns dos seus irmãos andavam então nos estudos e os rendimentos paternos não podiam suportar mais aquela despesa. Mesmo assim, tendo a forte aspiração de vir a ser médico, estudou em regime doméstico, apresentando-se na altura própria a exame do 3.º e depois do 6.º ano. Finalmente pôde inscrever-se no 7.º ano, no Liceu de Vila Real, que concluiu em 1945.
Terminado o ensino secundário, A. Passos Coelho matriculou-se na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, onde se formou em 1953, não sem ter perdido dois anos, por motivo de saúde. Mais exactamente, uma tuberculose que se declarou logo no 1.º ano do curso e acabou por o obrigar à interrupção no 4.º ano. Esteve então internado no Caramulo – experiência que retrata com pormenor e crueza no seu romance Caramulo.
Em 1954 é convidado para estagiário do corpo clínico da Estância Sanatorial do Caramulo. Prossegue entretanto os seus estudos de especialização, após os quais obtém, em 1960, em provas públicas, o título de especialista em Pneumotisiologia da Ordem dos Médicos. Permanece ligado àquela estância, passando a exercer, ainda em 1960, as funções de director clínico do Sanatório Sameiro e, quatro anos mais tarde, cumulativamente, as mesmas funções no Sanatório Pedras Soltas. Em 1970, a seu pedido, abandonou a Estância Sanatorial do Caramulo.
Em Abril de 1970 encontramo-lo em Angola, onde é encarregado de organizar a luta antituberculosa no distrito do Bié, lugar que desempenha até Maio de 1973, altura em que é nomeado director do Hospital-Sanatório de Luanda. Ainda em Angola, exerce funções de Chefe de Serviço de Combate à Tuberculose e responsável pelo Curso de Tisiologia da Faculdade de Medicina de Luanda.
Após o seu regresso a Portugal, em Novembro de 1975, desenvolveu sempre a sua actividade clínica em Vila Real.
Foi durante a sua permanência profissional no Caramulo que conheceu a enfermeira Dona Maria Rodrigues Santos Mamede, natural de Santana da Serra (Ourique, Baixo Alentejo), com quem casou em 1955 e de quem teve quatro filhos.
O seu currículo médico foi sendo sucessivamente enriquecido com novos estudos, a publicação de trabalhos sobre pneumologia e o exercício de funções directivas, de que se destaca a direcção do Hospital-Sanatório de Luanda e a chefia do Serviço de Combate à Tuberculose de Angola.
No âmbito da actividade clínica, no distrito de Vila Real, desempenhou as seguintes funções (entre parênteses o ano da nomeação para o cargo): coordenador distrital do Serviço de Luta Antituberculosa – SLAT (1976); membro da Comissão Instaladora da Administração Distrital do Serviço de Saúde (1977); presidente da Assembleia Distrital da Ordem dos Médicos (1978); vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Patologia Respiratória (1980); presidente da Comissão Instaladora do Hospital Distrital de Vila Real e director clínico do mesmo (1991).
A carreira de médico e todas estas ocupações paralelas absorveram-no de forma quase total, pouca disponibilidade lhe concedendo para outras actividades. Mesmo assim, pôde encontrar tempo para a actividade política e para a escrita. No plano político, exerceu funções de Presidente da Assembleia Municipal de Vila Real. No plano literário, além de colaboração episódica e dispersa em algumas revistas, conferências e comunicações, publicou dois livros de contos, um livro de poesia e um romance (a que prefere chamar, não sem razão, crónica romanceada, pois o livro comunga dos dois géneros).
Os livros de contos, Gente da minha terra e Histórias selvagens, saíram em primeira edição em 1960 e 1963, respectivamente. De ambos se fez uma 2.ª edição em 2002. O livro de poesia, intitulado Material humano, saiu em 1997. O romance, Caramulo, em 2006.
A grande vocação de A. Passos Coelho é a de contista. Os seus contos – alguns de extensão considerável – retratam com realismo o meio rural vila-realense e a fauna humana que ali vive os seus dramas e as suas ambições. João Gaspar Simões disse numa recensão publicada no Diário de Notícias: “Não temos dúvidas em considerar o seu livro [Gente da minha terra] entre os melhores do género ultimamente aparecidos.” E, sobre o mesmo livro, escreveu Amândio César: “Trata-se de um volume de estreia, mas isso nada influi para a real categoria do escritor que aqui me aparece pela primeira vez”, para depois lhe apontar “um estilo forte, sadio, másculo”.
Sobre Caramulo, que reúne, como apontámos acima, características de crónica e de romance, escreve António Cabral: “É a relação com Marta e com os amigos do Grande Sanatório que transforma sobretudo a crónica num óptimo romance; é aí que ele começa a ganhar altura verdadeiramente literária, qualidade sem dúvida bem suportada pelo que no longo texto é apenas crónica.”
O livro Histórias selvagens serviu de argumento para um filme de António Campos.
    
* * * 

Cada escritor é um caso novo. Se relativamente ao anteriormente tratado neste Ciclo, Alberto Lopes, não descobrimos referências explícitas a Vila Real, em A. Passos Coelho elas abundam em qualquer dos seus dois livros de contos, Gente da minha terra e Histórias selvagens. Mais do que contista da ruralidade trasmontana, ele é um contista da ruralidade vila-realense, que viveu de forma plena, na infância e na juventude, em Valnogueiras, e que nos revela nos contos, uma vez por outra com um pé na vila e o pensamento na diáspora que também foi sua e longa de 30 anos.
Mas A. Passos Coelho vai surpreender-nos muito mais, já que esta vivência rural teve sempre também os olhos postos na vila das décadas de 1930 e 1940 – também ela com muito de rural –, que ele retrata como ninguém foi ou será capaz de o fazer num livro ainda inédito, Eu e a minha Vila, acabado de escrever em Outubro de 2006 e que cometemos a inconfidência de revelar através de uma “ecografia” já muito próxima do nascimento da “criança” (esperamos).
Aí se conta como vem à vila pela primeira vez por volta dos seis anos de idade, atraído pela iluminação nocturna de que via as “milhentas luzinhas” na aldeia. Descobre um mundo fascinante: as ruas empedradas, a ponte metálica, a “casinha” onde declarou a cesta de cerejas que trazia para a avó materna, o “escritório dos elefantes, da cabeça de búfalo, dos flamingos e de mais bicharada africana” na casa da mesma avó (onde a sua educação é posta verdadeiramente à prova) e o circo, que foi sempre para as crianças uma forma de descoberta do mundo exterior e uma prova de que é possível vencer as dificuldades que a vida apresenta.
Levantámos a ponta do véu. O resto se verá a seu tempo.
 
Fonte:http://gremio.cm-vilareal.pt/index.php?option=com_content&task=view&id=83&Itemid=28

Provérbios - Três por dia

1 - Na abertura da saca é que está o governo.
2 - Na adversidade, se conhecem os amigos.
3 - Na adversidade se prova a amizade.

28 março 2014

Provérbios - Três por dia

1 - M. macombé, bate no cu e vai-te esconder.
2 - Má cepa, pior vinho.
3 - Má consciência, bolsa cheia.

A vida é…,de António Sá Gué

A vida é 
uma tangente de fantasia
que toca almas sem chão.

Duas retas paralelas
de um plano pessoal,
que se cruzam no infinito
de um universo emocional.

Três pontos de uma parábola,
três vértices, três premissas,
três incógnitas de uma função,
unidas por uma razão.

Quatro traços perpendiculares
de uma respeitável fachada.

Cinco linhas quebradas
por dúvidas cartesianas.

27 março 2014

POR AMOR TAMBÉM SE MORRE,por Carlos Carvalheira

Vale da Vilariça.Foto: Leonel Brito
No Estio, o vale é um braseiro.
Encurralado entre Bornes e o Reboredo, a saber a frio e a ferro, e limitado pelas alturas escorregadias e quase abruptas da Lousa até para lá de Vila Flor, o vale é um dinossauro violento, recostado em leito húmido. Vê-se-lhe a cauda lá acima, a norte, a estancar as iras da serra. E, cá em baixo, na Foz, as fauces escancaradas, muito irregulares, a vomitar escorrências e imundícies na curva do Douro. E, por toda a amplidão do vale, o dorso calmo, tranquilo, estranhamente sossegado.
Mas é uma fera, o vale. É o Éden e a Geena.
Para experimentar Abraão, criou Deus o cume da montanha; para sacrificar os homens, concedeu-lhes toda a largura do vale.
No Inverno é ameno, suave. Mas, apertado nos estreitos braços da natureza e alagado pelos ribeiros e riachos que o alimentam, rapidamente muda de aspecto. As águas, repelidas pelos contrafortes pedregosos do Monte Meão, refluem e tornam a paisagem lisa, uniforme e magestática. É a rebofa, que atormenta os homens, alaga os campos e cobre casas e plantas. Como o Nilo, no Egipto, em tempos de judeus e de faraós.
Mas, no Verão...  O vale, no Estio, é um braseiro de assar pessoas e animais. A terra úbere, estrumada com os sedimentos carreados pelas águas inverniças, gera trigos e joios em abundância. Porque, na terra que dá o pão, germina, indistintamente, a cizânia. E é preciso cuidar de um e estiolar o outro. Por isso, no Verão, o vale é um formigueiro.
Na aragem do vale tudo é temporão. O dia, as primícias, os calores. Tudo vem cedo. Até a vida... Até a morte.
 Os sem-terra, os desprivilegiados da era agrária, vêm de todas as geografias. Do Castedo e do Vilarinho, da Cabeça de Mouro, da Vide, dos Estevais, do Felgar... E da Cabeça Boa... E da Vila... E até de mais longe... Vêm homens, vêm mulheres... Vêm jovens e de meia idade... Até os velhos... Até as crianças, que trocam a escola e a vida por ajudas de miséria que os braços todos são poucos e débeis para os trabalhos de Hércules que é preciso levar ao fim.
A jorna é longa. Longa e dura. Ainda os mochos piam, suspensos da ramagem do arvoredo que enxameia as encostas circundantes...  ainda os melros não acordaram o arrebol com as suas gargalhadas brancas, fugidias... Ainda as rolas não embalam a manhã com os seus gemidos suaves, inocentes e já os capatazes gritam que vem o dia chegando, que a noite foi demorada para o descanso, que a jeira é cara e a jorna curta para tanto trabalho.
 E, à noite, já os corvos abalam para ocidente a perseguir o sol...  Já o noitibó percorre os caminhos denunciando os rebanhos a recolher ao bardo... Já as rãs coaxam nas margens do Sabor e nos limos dos riachos e dos ribeiros... E ainda os capatazes de vozes duras e roucas e cenhos avinagrados mandam recolher alfaias e cuidar animais.
Mas é noite. E os homens ressequidos e exaustos precisam de um leito em que se abandonem para acalmar os ardores que as chagas despertam nos corpos e nas almas dos jornaleiros. Porque amanhã... E depois... E depois ainda... É preciso viver. Troca-se a vida por canseiras.
Olhai as aves do campo que não semeiam nem criam...
Mas essas, as aves, comem trigo, comem joios, comem pão, comem cizânias. O homem, esse, faz escolhas. E dessa consciência lhe advêm medos e insatisfações, dúvidas e angústias. Por isso, todo o dia, todos os dias, homens e mulheres descem à Ribeira, trazendo a vida para levar canseiras. O ar é quente, abafado. A água dos pequenos charcos e poços queima os pés e tortura as mentes. E, nesse ambiente, não raro sucumbem os corpos, tiritando de frio ao peso das maleitas, das febres, das sezões. 

26 março 2014

Provérbios - Três por dia


1 - Lá cai o sino e o sacristão.
2 - Lá como cá más fadas há.
3 - Lá dizem os de Montalvão: Lavar cabeças a burros é gastadouro de sabão.

24 março 2014

Silhades,por António Sá Gué,

SILHADES.
Quando cheguei a Silhades, a primeira sensação foi de isolamento. A descida abrupta da estrada transportou-me para os meus cantos sinuosos de silêncio. A tranquilidade experimentada na Nossa Senhora da Assunção, lugar de cota bem mais elevada (mas também ele grandioso), a luz amarelenta de fim de tarde, os montes altos a envolverem o rio, tudo isso me obrigou a entrar dentro de mim, a olhar ao meu redor e a cair na fonte de chafurco que sou e onde gosto de me banhar. Brotam em mim silêncios de pequenez perante a grandiosidade dos montes, perante a sua vetustez, perante as águas selvagens que o rio transporta. Sinto-
-me especial, não por aquilo que sou, ou que deixo de ser, mas por aquilo que sou capaz de sentir em locais ermos, no meio dos montes desabridos, perante a pobreza da terra. Eu sou daqui! Sou feito destas giestas que afago com ternura quase libidinosa, sou feito destas fragas sedosas, recantos de mulher, onde me deito e descanso, sou feito desta água barrenta que corre em vales escavados por sentimentos e emoções tumultuosas, sou feito de caminhos poeirentos e dos muros que os delimitam. Eu sou feito desta terra xistosa que se parte em placas, tal como eu quebro perante a grandiosidade da arte e das pessoas que a concebem, que a estudam e que reconheço como almas gémeas, desses amantes do belo, do provocante, que me obrigam a parar, a questionar-me e, tantas vezes, a render-me às evidências mais comezinhas que me enformam. Sou desse sentir terrificamente doce, deste sentir de homens e mulheres que olham para dentro deles à procura da grandeza, da elevação, da assunção da alma humana aos céus!
Atravessa-se o rio e os casebres de pedra solta obrigam-nos a repensar a caminhada da humanidade. Sente-se o peso da história e da pré-história e sente-se a vida de quem ali se abrigou, de quem ali amou, de quem ali pariu vidas que partiram, de quem ali sofreu a agonia da morte, de quem ali viveu uma vida também ela feita de silêncios meditativos do entardecer, como aquele que agora sou, tantas vezes encapsulados na busca do divino que a pequeníssima capela de S. Lourenço me recorda. Recorda-me esse lado contemplativo da alma humana e recorda-me a lenda, a lenda do pastor Ildefonso, que foi santo porque atravessava as águas, para assistir à missa, sobre a manta feita barco. Vou mais fundo no tempo e, com esta alma mediúnica, entro no reino do deus Denso que vejo surgir no alto do Castelinho envolto em sombras longínquas. Ignorado pelo deus Homem, sinto o seu pesar. Brotam-lhe sentimentos outoniços pela face, lágrimas humanas alagam-lhe o corpo franzino, sinto compaixão pela sua breve existência, entendo a humanidade dos deuses, percebo que também eles têm pés de barro. Jaz perante mim.
Acordo.
Esse lado místico da alma humana recorda-me que brevemente ficará submerso, deixará de existir, e nunca mais o poderei sentir como o hoje o senti. Restará em mim esta memória temporária. Temporária porque também eu, em breve, ficarei submerso pelas águas do Letes, o rio do esquecimento, porque também eu, em breve, voltarei a ser esta terra que me pariu e voltarei à inorganidade merecida, eterna, voltarei a ser átomos e moléculas deste céu azul que me cobre, desta luz que se adensa em mim e que paradoxalmente me entenebrece.
Finalmente... voltarei a mim.
In Quadros da Transmontaneidade de António Sá Gué
Ver:http://antoniosague.blogspot.pt/

PAISAGEM DA MEMÓRIA: ARQUITECTURAS DA ÁGUA, por Amadeu Ferreira

22 março 2014

Provérbios - Três por dia


1 - Já a burra jaz no pó.
2 - Já a burrinha jaz no pego.
3 - Já a formiga tem que (quer ter) catarro!

Mimórias de bidas, por António Cangueiro

Mimórias de bidas
Achega se mos un oulor a las narizes i risas de miles quelores…son Rosas, senhor, son Rosas, nun ye l milagre de las Rosas mas l çpertar de todo l que drume ambiernos lhargos de suonhos…Jardin de la Streilha, an Lisboua, amostra mos l milagre de bida. L Museu João de Deus, eilhi, an zlhado, amostra mos mimórias de bidas hai muito drumidas. Poucos dies apuis de l salimiento de l lhibro subre la bida de João de Deus, eiqui stou outra beç.

Amadeu Ferreira ambestiga la bida i obra de personalidade lhigadas a la lhéngua mirandesa zde hai muito. Albino Morais Ferreira ye ua dessas personalidades. Fui porsor i andubo pur tierras de Miranda i ten cartas screbidas para João de Deus i serie buono saber se algua deilhas falaba de la lhéngua i cultura mirandesa.

Tener antre manos cartas cun 140 anhos, screbidas por personalidades purmeiras desta naçon i lhigadas a la nuossa lhéngua, ye muita eimoçon! Çfolha-se, lei-se, bei-se l índice, outros nomes…Manuel Sardinha / Manuel Sardenha… «bei esse». Letra bien feita, fácele de ler. «Se mais nun fusse yá baleu la pena!». «Cartas i poemas que nun sabie de la sue eisisténcia.», diç Amadeu Ferreira. Acrecenta: «tantas las horas que passei an bibliotecas para sacar anformaçones subre Manuel Sardinha!

Quien quejir saber mais subre Abade Manuel Sardinha, baia a esta morada eiletrónica: http://abadesardina.wordpress.com/.

Cartas, alas adonde mos asseguramos para bolar i antre airaçadas i temporales, ende bamos a tiempos i mimórias de outros tiempos.


La repunsable pula biblioteca de l museu, dra. Elsa, ye eificiente i simpatica i an todo mos ajuda. Quaije trés horas se passórun, debrebe se findórun. De la rebista “ A Harpa” [1873] adonde muitos scritores de l tiempo screbírun, eiqui queda, para amuostra de l muito que achemos, un poema de Manuel Sardenha, screbido an castelhano, lhéngua an que, até agora, nun faziemos eideia de que el habie screbido poemas oureginales:


EL FILANDAR / O FIADEIRO



EL FILANDAR / O FIADEIRO

20 março 2014

Nos 40 Anos de "Algures a Nordeste"

Vai ter lugar no próximo dia 3 de Abril a acção ‘Nos 40 Anos de Algures a Nordeste: Uma Jornada sobre A. M. Pires Cabral’, organizada pelo Departamento de Letras da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro e integrada no programa de comemorações dos 40 Anos da UTAD.
No programa da jornada, que decorre no Auditório da Biblioteca Central da UTAD e tem início pelas 09h30, incluem-se comunicações por João Bigotte Chorão (11h00: “Os dois rostos de um escritor”), Ernesto Rodrigues (12h00: “Um artista dos sete ofícios”) e José Carlos Seabra Pereira (14h30: “A condição poética em A. M. Pires Cabral”), bem como uma mesa-redonda (15h30) sobre a poesia de A. M. Pires Cabral, com a participação de Pedro Mexia, Vítor Nogueira e Isabel Alves.
Após a sessão de abertura (09h30), será apresentado em estreia o documentário ‘A. M. Pires Cabral na primeira pessoa’, de Leonel de Brito. Haverá ainda (17h00) uma visita à exposição ‘A. M. Pires Cabral: 40 anos de vida literária’, na Biblioteca Municipal Dr. Júlio Teixeira, seguida de leitura de textos do autor por alunos do Departamento de Letras, Artes e Comunicação da UTAD. A jornada encerra às 18h00 com uma intervenção de Henriqueta Gonçalves.

Notas biobibliográficas de A.M. Pires Cabral

    Nascido em Chacim, Macedo de Cavaleiros, em 13 de Agosto de 1941, António Manuel Pires Cabral ruma a Coimbra, por razões académicas, deixando atrás de si o seu Nordeste transmontano. A ele regressa munido de uma licenciatura em Filologia Germânica a empurrá-lo para a docência. Exerceu-a, por um mais prolongado lapso de tempo na Escola Secundária Camilo Castelo Branco, em Vila Real, tendo encetado, ainda ao activo, funções de assessor dos serviços municipais de cultura. É, desde a sua criação, em 2006, director do Grémio Literário Vila-Realense. Como animador cultural tem sido notável a sua actividade, pela ousadia, criatividade e carácter ambicioso das acções promovidas na defesa do património cultural transmontano, na divulgação dos escritores da região, no apoio a todas as iniciativas que visem a preservação da identidade de um povo que só manda mesmo no ditado popular “para cá do Marão mandam os que cá estão”.
    Faz agora quarenta anos que Pires Cabral concretiza uma vocação adormecida, à espera do toque de alvorada. Nasce, em 1974, a sua obra de estreia ALGURES A NORDESTE, a primeira de muitas provas literárias de amor assumido à sua terra natal.
    Apesar de absorvido pelas tarefas de dinamizador cultural, de que é justo salientar a realização em Vila Real de sete Jornadas Camilianas que cá trouxeram os maiores camilianistas do país, associadas, até 2002 à prática lectiva, chegou-lhe o tempo para se dedicar à sua grande paixão extra familiar – a escrita. A sua bibliografia conta com cerca de cinquenta títulos que englobam romance, conto, crónica, poesia e teatro. É, também, autor de antologias temáticas e didácticas e tem colaboração em mais de seis dezenas de publicações de índole cultural.
    Recentemente deu carta de alforria a um trabalho que lhe fez companhia durante três décadas – FALA CHARRA – Regionalismos de Trás-os-Montes e Alto-Douro, em dois volumes e num total de 1174 áginas.
    O valor da sua obra em que o local se transforma em universal, tem vindo a ser objecto de teses de mestrado, de elogiosas recensões e de entrevistas em suplementos literários de jornais como o Público e o Expresso, no Jornal de Letras e nas revistas LER e Visão, entre outros. Está traduzido em várias línguas.
    A interioridade a que se confinou por opção não impediu a sua obra de transpor fronteiras geográficas e intelectuais, nem o seu nome de ser uma referência nas letras portuguesas contemporâneas.

Hercília  Agarez

19 março 2014

Provérbios - Três por dia


1 - Iaiá eu posso com vocês botar negócio, entrar de caixeiro e sair de sócio?
2 - Ibis louvado, anjo ou diabo.
3 - Ida de João Gomes: foi em sela, torna em alforjes.

Raízes, por José Mário Leite

Pires Cabral.
Esta crónica nasceu em Bragança, no auditório Adriano Moreira. Deveria ter sido enviada para publicação na semana passada. Tal não aconteceu porque, propositadamente, quis resistir à tentação de cair no facilistismo e no coro de lamúrias que, infelizmente, os tempos que correm, justamente, patrocinam. Quis refletir durante uma semana e, sobretudo, ir ao cinema ver o “The Monuments Men – Os Caçadores de Tesouros”. Ainda bem que o fiz. Não, não posso concordar nem de perto nem de longe, que qualquer obra de arte possa justificar a vida de um ser humano. Desconte-se isso e a sendo certo que, segundo o próprio Frank Stokes “com tanta gente a morrer quem quer saber de arte?”  não deixa de ser absolutamente verdadeiro que “se pode arrasar uma geração inteira, reduzir as suas casas a cinzas, mas ainda assim elas regressarão. Mas destruindo a sua história destroem-se as suas realizações e é como se nunca tivessem existido.”

Por mais que me esforce, não consigo escapar ao lugar comum do momento: o nordeste está em processo de destruição! Cada vez há menos gente. Cada vez há menos serviços. Cada vez há menos recursos. A austeridade sendo igual ao resto do país, é mais dura aqui! E quando há mais desemprego, mais pobreza, mais dificuldades, mais necessidades básicas, quem quer saber de arte, de literatura?
Pois é quando esta enorme desgraceira nos cai em cima, quando quem supostamente nos devia acudir nos afunda extinguindo serviços e ameaçando acabar com os poucos que vão sobrando, quando os ramos secam e pedem poda, que é necessário tratar das raízes e garantir que ao menos essas continuarão agarradas ao solo materno que nos garantirá a permanência e a existência.
Em Bragança, em Lisboa, no Porto, em Paris, Nova Iorque, Singapura, Camberra ou Sidnei, todos os que se identificarem com o torrão materno, todos os que aqui se revêm e reconhecem, continuarão a ser transmontanos, continuarão a ser nordestinos. E o Nordeste existirá, mesmo que espalhado e repartido pela geografia da nossa diáspora. Porque a memória nos lembra quem somos e de onde vimos. E é essa a razão pela qual a preservação dessa memória não é só um dever, mas um imperativo. De sempre e muito mais de agora!

A Academia de Letras de Trás-os-Montes está a levar a cabo uma obra notável. Fruto da generosidade e empenho do moncorvense Leonel de Brito vai produzir onze DVD’s com as memórias de outros tantos vultos da literatura transmontana a saber: Bento Gonçalves da Cruz, João Barroso da Fonte, António Lourenço Fontes, António Manuel Pires Cabral, António Passos Coelho, Hirondino da Paixão Fernandes, António Modesto Navarro, Júlia Guarda Ribeiro, Borges Coelho, Adriano Moreira e Aniceto Afonso, sendo que os depoimentos dos oito primeiros estão já executados. É a memória cultural de Trás-os-Montes! Espera a Academia que as Câmaras Municipais, sobretudo aquelas da naturalidade dos entrevistados, adquiram alguns exemplares contribuindo assim para o esforço que tal empresa requer.
No que me toca tenho de reafirmar o que afirmei na última Assembleia Geral da Academia: Não é sequer uma questão de opção. É uma obrigação! Enquanto instituições representativas das populações, as autarquias transmontanas (todas e não só algumas!) não podem fugir a este desígnio inalienável: adquirir vários exemplares destes DVD’s para as respetivas Bibliotecas Municipais, Arquivo das Escolas e para a própria Câmara, obviamente, para oferecer e promover a nossa terra. Claro que as autarquias de onde são alguns dos entrevistados deverão fazer sessões especiais de apresentação e lançamento das respetivas obras. Mas isso já não é nada que se lhe deva pedir. Pelo contrário, esse é o seu privilégio que os mesmos e a Academia lhes proporcionam e portanto nada mais lhes resta fazer que colaborar e patrocinar todos os eventos programados.
Nota final: para que não fiquem dúvidas nem se julgue que há valores desmesurados de aquisição e/ou subsídios é preciso deixar muito claro que o que a Academia de Letras espera receber na totalidade, se dividido pelas Câmaras Transmontanas o que toca a qualquer uma delas é pouco mais que uma centena de euros! Esperamos que a contribuição autárquica seja substancialmente superior!
 José Mário Leite


Tertúlia sobre os 40 anos de vida literária de Ernesto Rodrigues

Hoje,dia 19 de Março de 2014, a partir das 14h00, na Livraria Caixa dos Livros (Faculdade de Letras de Lisboa):
– Tertúlia sobre os 40 anos de vida literária de Ernesto Rodrigues, cujos últimos títulos são o romance histórico A Casa de Bragança e o conjunto de poemas Do Movimento Operário e Outras Viagens.



18 março 2014

L pastor que se metiu de marineiro, por Faustino Antão


L pastor que se metiu de marineiro
Este lhibro ye un machuço de cuontas, assi a modos dua nobela, mas nun ye ua biografie.
Feito an Júlio de 2012, ten apuis l sou salimiento an Agosto, ne l salon de l’Associaçon “Sol Nascente”, n’aldé de Zenízio (Miranda de l Douro), tierra adonde naci, medrei i quedei até ls dezassiete anhos, quando me scapei pa la marine. Son ls anhos de biesperas i apuis la bibéncia dua biaige feita pula purmeira beç, para un mundo çconhecido, l tabrado desta obra.

Publicado pul’eiditora Zefiro, antegrado na coleçon “An Mirandés”, que ten cumo diretor i repunsable l ambestigador, scritor, porsor Amadeu Ferreira, arrimasse este lhibro assi a las demais publicaçones doutros scritores de la lhéngua mirandesa, que al lhargo de ls redadeiros anhos ténen benido a terreiro dando a conhecer la riqueza i bariedade desta lhéngua. An crónicas, lhiendas, cuontas, poesie este porjeto yá stá taludo i fui un éisito, ende stan essas obras rebelando un patrimonho dun pobo que stubo tan ancerrado i botado al squecimiento.
Screbi este lhibro i quedei siempre cula eideia de que l camino que scribo, ye por assi dezir bien armano de muitos i muitas stramuntanos que a cierta altura de la sue bida se botórun pul mundo, sien nada a perder i todo tener a ganhar.
Sien belhiçcar nadica aqueilho que mais balioso m’iba n’alma, que era al amor als mius, a la mie giente, a la mie tierra, a las mies ouriges, cumo muitos l fazírun, fázen i cuntinaran a fazer alhebantei la cabeça, dei la cara fiç-me al mundo.
Ye por assi dezir l que cuonta “L pastor que se metiu de marineiro”.


Outor: Faustino Antão

L salimiento de l Lhibro “L pastor que se metiu de marineiro”
(çcurso a l’assembré ne l salon)
FAUSTINO ANTÃO
L salimiento deste miu segundo lhibrico an mirandés, tal qual l purmeiro an 2009 (Nuobas Fábulas Mirandesas i Cuontas Sacadas de la Bida) antegrado na coleçon “An mirandés” de l’Eiditora “Zefiro”, só fui possible porque l porsor, ambestigador, tradutor, ansaista, scritor, poeta, jurista Amadeu Ferreira, para alhá de las demais atebidades culturales, porfessionales, i deberes familiares, inda arranjar tiempo para ser respunsable desta colecon, adonde este lhibrico stá antegrado.
Sien las upas, sien l sou ansinamiento, sien l sou ancentibo, l sou ampeinho, puis siempre tubo i ten palabras para me motibar i dar fuorças, puis mesmo que you sempre tenga ganas de screbir, nunca serie possible publicar fusse l que fusse, muito menos an mirandés.
Ye grácias al sou trabalho i dedicaçon a las pessonas, a la nuossa tierra, a la lhéngua que you i cuido nun m’anganhar muitos de nós cuntinamos a registrar i amar esta lhéngua, este património cultural.
Fai todo sien pedir nada a naide nien nada an troca, fai-lo por amor a las gientes i a la cultura, porque le gusta ser amigo de to l mundo porque quier ber felizes las pessonas i ber la lhéngua bien alta.
Debo-lo a el, este miu stado de felcidade, porque ye esse l modo cumo me sinto, l miu muito oubrigado i que Dius bos l pague.
Mais ua beç l digo, l trabalho que todo esto dá, zde la correçon, la cumposiçon i la feitura de l lhibro, porque nunca será de mais, sien la sue dedicaçon i entrega, yá quantá you habie quedado pul caminho. Nunca serei capaç de pargar todo l que teneis feito amigo Amadeu, zde l purmeiro curso, passando pul outro lhibro yá publidado.
Dixe, zde l purmeiro curso fai anhos no Alto do Moinho – Corroios, cula colaboraçon de Francisco Domingues tamien cumo porsor, adonde muitos, cumo you, associados de l’Associaçon Cultural i Recreativa Nial de la Boubielha stubimos, fui ua einiciatiba daprendizaige an parcerie cula Associaçon de la Lhéngua Mirandesa.
A miu ber todo ampeçou eiqui, estes ansinamiento fúrun ls aliçaces, fui este l ampeço dua jornada que stá loinge de la fin, si, porque se dantes yá querie muito esta fala, agora amo-la dun jeito que yá nun sou capaç de passar sien eilha, çpierto, a drumir, an Zenízio, an Miranda, an Lisboua i quando fur pa l outro mundo, lhiebo-la.
Tamien, quiero eiqui deixar ua palabrica de reconhecimiento i agradecimeinto als respunsables de l’Eiditora, porque cuntínan a dar l melhor que ténen para que haba lhibros an mirandés, neste momiento çfícele i anubrado que l’eiconomie atrabessa.
I para ancerrar esta pequeinha crónica, nun podie deixar de prestar la mie houmenaige al pobo d’hoije i d’onte de Zenízio, al pobo mirandés an giral, a las gientes que alhá biben, trabálhan i cuntínan a falar mirandés, que bíncen atalancadeiros culturales i nunca çpégan de lhuitar para que esta hardança nun se muorra, a las gientes que se scapórun pul mundo i cun eilhes lhébórun un cachico de la sue tierra i fala, al termo que fui l miu canastrico, a to das las cousas que reçúman mirandés.
Nun percisaba, mas mais ua beç, cumo l fizo ne l dies de l salimiento de ls lhibros de Alcina Pires, Adelaide Monteiro i Válter Deusdado, l pobo de Zenízio dou probas de que quando ls filhos percísan ende stá, marca perséncia, i fúrun muitos, de manos dados culs amigos de Bilasseco, San Pedro, Miranda, Çicuiro, de la Speciosa, de Bergáncia, i de muitos mais lhugares, para dar fuorça, para acarinhar, balorizar, abraçar nun géstio de ternura i afeto.
Este pobo que me biu nacer, que ye amigo, cumpanheiro, son del estas cuontas que scribo, debo-lo a el l pouco que sei, ye a el que antrego este lhibro.
(publicado na : Tierra alantre, la mesma fala



Apersentaçon de

L PASTOR QUE SE METIU DE MARINEIRO

de Faustino Antão, Editora Zéfiro, 2012

an Zenízio, l 12 de agosto de 2012, na sede de la Associaçon Sol Naciente

 [texto lido por Francisco Domingues, yá que nun pude star persente]

Buonas tardes a todo mundo i un special saludo al amigo i scritor Faustino Antão.

Ampeço por bos pedir çculpa por nun poder star eiqui persente , cumo serie grande gusto miu, seia pula amizade cun Faustino Antão, seia pul grande aprécio que tengo por toda la giente de Zenízio, que tanta beç eiqui yá me recebiu. Mas bien sabeis que nun podemos star na todo l lhado, i un grabe problema de salude dun familiar zarredou me deiqui.

Assi i todo, nun quije deixar de bos mandar algues palabricas, fazendo me repersentar por une ilustre zeniziense, Francisco Domingues, un grande amigo, a quien le agradeço haber aceite este miu pedido, i publicamente le presto sentida houmenaige por todo l que ten feito pu la lhéngua mirandesa, subretodo cumo porsor nas classes de la Associaçon de Lhéngua Mirandesa.

L Pastor que se metiu de marinheiro, ye l segundo lhibro de Faustino Antão que, assi, bai fazendo ua berdadeira carreira de scritor, que spero nun se quede porqui. You próprio, na Antrada que le fago al sou lhibro, digo, meio de risa meio a sério, que talbeç l sou próssimo lhibro se benga a chamar L Pastor que se metiu de scritor! Eiqui le deixo, publicamente, ls mius parabienes i l recoincimiento por todo l que ten feito pula nuossa lhéngua i tamien pul nome de la tierra, Zenízio, i pulas sues gientes. I isso ye bien assi porque ls harois, ls personaiges prencipales de ls dous lhibros de Faustino, an special deste segundo lhibro, son la sue tierra i la sue giente, la giente que lo criou i que lo biu crecer cumo home. Tanto l feito de Faustino, cumo que estes harois díran para screbir lhibros, era algo ampensable inda nun hai muito tiempo, i a muitos inda hoije le custa a acreditar.

Este nuobo lhibro de Faustino Antão ye un lhibro de mimórias. Quando le fiç l zafiu pa lo screbir, bai para uns dous anhos, lhougo el respundiu apersentando l que ides a poder ler: la bida dun rapazico, filho de la giente desta tierra, que daprendiu a ser pastor pul termo desta tierra, a puntos de esse oufício le haber quedado agarrado a la teç de l’alma, del sacando ls ansinamientos pa la bida que acabou por bibir por esse mundo fuora. El cunta mos essa bida cun toda la sue dureç, las sues dificuldades, l sou atraso material, la pequenheç desse mundo adonde muita beç era custoso respirar, subretodo un moço que querie coincer mundo, namorar, que tenie outras eideias. Poderie haber feito l que outros ténen feito que ye falar cun romantismo dessa bida, falseficando-la i apersentando-la mais quelor de rosa, que ye un mdo de nun la respeitar nien de respeitar la giente que la bibiu. Las giraçones nuobas i las que han de benir, cumo la sue filha Suzana i sou nieto Afonso i tantos outros cumo eilhes, ténen dreito a coincer essa berdade i ténen de saber quanto fui preciso chubir de tan fondo até chegarmos adonde stamos agora.

Muitas de las pessonas que eiqui stan persentes poderan recoincer-se ne l que Faustino mos cunta, puis bibírun ua bida aparecida por estes campos afuora. Este ye un modo de cuntar la stória dun pobo, nó pula boca de outros que nun mos conhécen i que, ne l fondo, até mos çprézian, mas cuntada por un de ls nuossos, que nunca se bendiu nien arrenegou las sues ouriges. L pobo mirandés ten un passado an que muitos, ende ancluídos muitos de ls sous filhos, lo botórun al çprézio, tanto por bias de la nuossa fala cumo por bias de sermos probes, mas tamien ten un passado de lhuita, de bencir deficuldades sien cunta, de nunca zistir, de amostrar que bibir i lhuitar bal la pena i esse ye un patrimonho mui grande que tenemos pa le deixar als nuossos filhos, esses son ls prencípios que traírun la houmanidade até als nuossos dies i por esso son un patrimonho coletibo.

Yá nun era sien tiempo que ls próprios mirandeses screbíssen subre eilhes mesmos i nó outros que porqui fúrun passando, ou l çcurso de l poder, mesmo de l lhocal, que siempre tubo un mirar de çprézio an relaçon al pobo i a la sue cultura, mesmo quando ten necidade de falar bien del. Mas essas son outras cuontas que la stória nun deixará de acertar a sou tiempo. Hoije ye die de fiesta i cumo die de fiesta tem de cuntinar.

La Associaçon de Lhéngua Mirandesa bai a cuntinar l sou trabalho de lhuitar pula nuossa lhéngua i la nuossa cultura i stou cierto que nuobos scritores de Zenízio han de aparecer i nuobas miomórias seran publicadas, para que la nuossa stória seia melhor coincida i ls nuossos balores puodan quedar mais a la muostra. 

Eiditar un lhibro destes ye ua dificuldade mui, mui grande, que nun serie possible sien l apoio de la nuossa Associaçon de Lhéngua Mirandesa i, neste causo, tamien de la Associaçon Nial de la Boubielha. Cuntamos cun l buosso apoio an cumprar l lhibrico, puis nun hai outros apoios pa la nuossa lhéngua i cultura para alhá de l pobo. Tenemos que ser nós a cuidar de l que ye nuosso.  Son mui poucos ouros que se le píden a cada pessona para ua obra que ye de todos, puis nun se cunta cun apoios de mais naide, subretodo de mais nanhue anstituiçon, mesmo daqueilhas que tenien oubrigaçon de dar l sou apoio, inda que pequeinho.

Acabo apersentando mais ua beç ls mius parabienes a Faustino Anton, mas tamien al pobo de Zenízio que tales filhos ten. Spero que antre todos seia possible ir palantre, als poucos oupindo la nuossa lhéngua i la nuossa cultura al nible an que merece star. Bamos a cuntinar a lhuitar para ber se antre todos nun q~deixamos que se muorra, ansinando la als mais nuobos i falando la. I isso fai-se cun einiciatibas cumo esta i outras aparecidas, pequeinhas cousas, mas que fáien parte dun todo que ye mui grande, un menumiento que ye de l pobo i als poucos bamos custruindo i amostrando.

Bien háiades.


Amadeu Ferreira

Lisboua, 11 de Agosto de 2012


17 março 2014

Provérbios - Três por dia


1 - Há ainda alguns milagres: Homens bons.
2 - Há amigos recentíssimos, recentes e os de sempre.
3 - Há bens que por mal vêm.

16 março 2014

Apresentação do livro Gaveta do fundo, de A. M. Pires Cabral, por Maria Hercília Agarez.

Escrevo versos num papel que está no meu pensamento – Alberto Caeiro
    É uma ousadia, senão mesmo um sacrilégio, apresentar um livro de poemas. Pela simples razão de que o poeta, por mais que confie no leitor e queira com ele estabelecer cumplicidades e interacções, receia legitimamente (ou não) que ele não entenda, como os seus companheiros, os seus “mansos trocadilhos”.
    Se o texto poético é susceptível de tantas interpretações quantas as leituras, reservo as minhas para uma intimidade reflexiva alheia a imposições de relógios que, para os aposentados como eu, fazem menos falta do que um par de óculos… Falo em leituras num plural não arbitrário. Pobre é o poema sem entrelinhas, sem subentendidos, sem ambiguidades, sem plurissignificações. O valor estético de um texto poético passa pela ausência de linearidade, pela maneira inovadora e surpreendente de transmitir uma mensagem, por uma riqueza imagética não forçosamente impeditiva de assimilar essa mesma mensagem. “A metáfora é a tal pequena perversidade do poeta”. in LER
    Que farei, então, aqui e agora? Deste homem, que direi? Antes de falar do livro que marcou a poesia portuguesa na passagem de ano, vou socorrer-me de palavras suas dispersas pelos seus versos, por jornais e revistas, em geral ilustradas, estas últimas, com a imagem urbana de “um camponês que anda preso em liberdade pela cidade” (citando Caeiro a propósito de Cesário Verde) com as suas serras como pano de fundo. Essas palavras ajudar-nos-ão a conhecer, em parte, a arte poética do autor de Arado, o seu quotidiano dependente do “ferrão do moscardo da poesia”.
    Seguem-se frases/expressões em que o poeta fala desta sua condição em entrevistas e nos seus diferentes livros de poemas. Registe-se que, nos últimos anos, a imprensa escrita e falada se tem feito eco mais sonoro da existência de um homem com uma obra notável, várias vezes premiada, traduzido em três línguas, e que teve a ousadia de desafiar o destino (Portugal é Lisboa…), mantendo-se perto das suas raízes nordestinas à prova de vendavais. Acordaram tarde, mas vale mais tarde do que nunca…
    Tentemos, então, reconstituir a Poética de Pires Cabral numa passagem de olhos pelas suas palavras, pelos seus versos, sem a pretensão de esgotar o assunto. Assim, em Solo Arável questiona-se: “De que obscuro canto/ recebo inspiração?”; em CAVALOS DA NOITE afirma ter “a escrita por vigia”, em DOURO: PIZZICATO E CHULA, dirigindo-se ao rio Douro, estranha que ele queira ouvir “as intrusas palavras inquinadas do poeta”, considera os companheiros de viagem “líricos nautas estouvados” e, usando um plural conhecedor, assume que os poetas são detentores “do seu pequeno gene de loucura”. Em ARADO, o homem que tem a natureza como espaço privilegiado de criação poética, assume humildemente: “é fácil ser poeta/ à custa do vento.” Em “Prefácio”, primeiro texto de TÊMPORAS DA CINZA, um dos livros mais doridos de Pires Cabral, afirma precisamente o contrário do que tinha defendido em entrevista à revista LER de Outubro de 2008: “Os poetas são os melhores de todos nós”. No verso que abre o dito poema escreve: ”Os poetas são os piores de nós todos”. Ideia reiterada, como que simetricamente, em “Posfácio”: “Os poetas, repito, / são os piores de nós todos”, ideia contrariada antiteticamente na seguinte estrofe: “Rectifico: os poetas, tigres de papel, / não são os piores de todos nós. / Serão talvez / os que mais se amotinam, / os que mais armadilham as palavras…”
    E, comparando-se às folhas das árvores, escreve: “Assim múltiplo e trémulo sou eu”. Sobre o ofício de poeta (“…nós- os oficiais do danoso ofício das metáforas”) escreve em “Ofício”:

“Este – o das palavras – não é o meu ofício.
O meu ofício é outro:
Encher os dias de silêncios,
Hesitações, amuos.

É isto que faço à minha revelia
- cada baldada manipulação
De palavras que entre si se não ajustam –
É desastrosamente
um silêncio a menos nos meus dias.

Um alvoroço a mais.”

    No poema “Poetas e Deuses”, inserto em COBRA D’ÁGUA, estabelece, como o título indicia, uma comparação entre uns e outros, insurgindo-se contra o dom dos segundos de fazerem o mesmo que os primeiro “transpirando menos”. Suor pressupõe trabalho, oficina, um “esforço circense de engendrar tropos, imagens, expedientes vários…” O texto remata com um plural que engloba os seus “irmãos poetas”: “….qualquer de nós não passa de um pedestre / sucedâneo de deus. E viva o velho!” O tom, subtilmente humorístico, não escamoteia uma realidade – o que subjaz a cada poema saído do labor aturado do artífice que utiliza “as mais eficazes ferramentas / do [seu] banco de carpinteiro.” (“Resposta” in GAVETA DO FUNDO)
   Voltemos à entrevista atrás referida: “… a inspiração não tem hora. Não se faz anunciar. Não bate à porta como um carteiro”.
    “Os poetas são os melhores de todos nós. São aqueles que abrem perspectivas de pensamento. Aqueles que, de alguma forma, nos ajudam a compreender um bocadinho melhor este mistério tramado - tramado, é realmente o adjectivo – que é a vida.”
    “A poesia entendida ao rés das coisas.”
     “Hoje, o que quero é exprimir-me através da minha poesia e derramar um pouco de beleza – se é que ela a tem – pelas pessoas que me lêem”. Eu acrescentaria e que me entendem, uma vez que é o próprio a defender a literatura legível, ficcional e poética, e a “acusar” certos contemporâneos de hermetismo. E diz: “… os meus poemas também podem ter qualquer coisa de hermético. Isto é, estou a exigir dos outros uma coisa que, por vezes, não lhes dou. Mas é assim mesmo. O homem é feito de contradições e eu assumo esta”.
     Antecipando-nos, cremos ser GAVETA DO FUNDO o livro de poesia menos hermético de Pires Cabral. Assim sendo, talvez os poemas desta gaveta lhe granjeiem mais leitores, alguns dos quais são adeptos confessos da sua ficção, mas se intimidam com a dificuldade de compreensão de alguns versos.
     Quando, em 2006, Pires Cabral recebe, em Mateus, o prémio D. Dinis, o presidente do júri, Vasco Graça Moura, intitula o texto justificativo da escolha de “Um Clássico a Nordeste”. O laureado aceita o epíteto. A propósito, o Jornal de Letras pede au poeta uma síntese autobiográfica onde ele afirma: “escrever é a minha maneira de escapar à morte: perdurar através daquilo que faço. É uma forma de a esconjurar.”E resume, assim, a sua existência: “Poesia – eis o recheio dos meus dias”, avançando com a metáfora “o ferrão do moscardo” que emprega, aliás, referindo-se tanto à poesia como à morte. Romain Rolland também disse: “Criar é matar a morte”.
     Tecidas estas considerações introdutórias sugiro-vos uma investida às “gavetas” de Pires Cabral que as labaredas não beberam nem beberão. Essas gavetas de um hoje, existem, algures, e transbordam como caudal de rio zangado com o seu leito. Nelas já se instalaram, irmãmente, respeitando cada uma o seu lugar, jóias literárias, logo imorredouras, escritas em oficina de filigrana, ao longo de quarenta anos. São elas a resposta silenciosa à dúvida expressa pelo poeta no poema “Senha” em SOLO ARÁVEL: “Que ficará de mim ao se apagar / o tímido clarão que me habitou?”
    Não cabe aqui referir toda a diversificada e a longa bibliografia de Pires Cabral. Reporto-me por razões óbvios, à sua última obra, mais do que nenhuma outra “badalada” e que, apesar da transversalidade temática que é o Nordeste, constitui, a nosso ver, o vértice de um triângulo cujas bases são Algures a Nordeste (1974) e Arado (2009).
    A colectânea contempla, grosso modo, três vertentes temáticas. Uma diz respeito a memórias de vivências rurais em convívio fraterno e cúmplice com campos cultivados, flores, árvores e frutos, ribeiros tranquilos, animais seus irmãos de vida, gentes labutadoras, sons de noras, de carros de bois e de chocalhos de rebanhos, “peixes distraídos”. Memórias comovidas também porque associadas a um tempo privilegiado de infância e adolescência, porque não passam mesmo disso, de memórias de realidades sofridamente irrecuperáveis. Aqui arrumar-se-ão, entre outros, poemas como “Erosão”, “Seara”, “Cães que tive”, “Pirilampos”, “Nora”, “Sunt lacrimae rerum”, “Requiem pelo rio Tua”. E, claro, “Terra Quente”, “a minha Terra Quente”, “fiel depositária do meu pó”, “meu invólucro final”.
    O poema “Aquele que trazia uma vinha guardada”, traduzindo embora uma memória, só fisicamente encaixa no passado. Volvidos cinco anos após a sua partida, ele continua entre nós, faz parte do património afectivo de quantos o admiram, a si e à sua obra. Sobre um outro António que também Cabral, a quem já dedicara um poema em Douro, Pizzicato e Chula, escreve este seu colega de oficio:

“ De modo que, enquanto não regressa,
 a sua voz continua a nosso lado,
 indicando caminhos, desbravando
 matagais que ocultam a esperança.”

    Uma segunda vertente é a dicotomia passado/presente em que o primeiro espreita, marca, implícita ou explicitamente presença. Trata-se de poemas que nos falam de um tempo hoje, desolador, de espaços corroídos, habitados por fantasmas, de onde a globalização e o progresso tecnológico escorraçaram homens e animais adjuvantes e /ou companheiros de vida, de um quotidiano captado pela lucidez por vezes impiedosa de quem se quereria em tempos idos. O poeta nos guiará, nos dará a sua visão poética, amenizará com a beleza de palavras e imagens a dureza de uma realidade irreversível de transformação e abandono.
    Paradigmático a este respeito, o poema “Fechou a escola de Grijó”, o que impede os seus poucos habitantes resistentes de ouvir “as aves da manhã a caminho da escola” mas que, em contrapartida, enche de júbilo o senhor ministro das Finanças.
    Cabe desde já referir que, embora a poesia de Pires Cabral se caracterize por um tom elegíaco em crescendo desde a publicação de E SE BOSCH TIVESSE ENLOUQUECIDO e QUE COMBOIO É ESTE? (uma muito conseguida alegoria sobre a morte) o poeta não deixa de temperar a dureza das suas inquietações ligadas à finitude e à “viagem” com salpicos de ironia, com notas humorísticas, espécies de antídoto aos “rasgões da alma”.
     A subtileza deste entrelaçar de elementos (aparentemente) contraditórios constitui um desafio a uma leitura atenta. Tomemos por exemplo o texto “Aos meus óculos”, um objecto do dia-a-dia, indispensável para ler a vida. Se o tom é subtilmente trocista, não podemos deixar de reparar numa comparação que o poeta faz, sempre cônscio da sua fragilidade: “Vós que sois de vidro quebradiço/ como o meu próprio barro,…”
     Não poderia ter passado em falso o destino de um rio outrora “amotinado contra as pedras, /cheio de força e pressa…..” que vê o seu currículo de “rio tumultuoso que mordia as próprias margens…” achincalhado por imposições técnico-económicas, amansado como  fera shakespeariana, morto, “vitimado/ pelos seus próprios ímpetos / que escondiam turbinas.”
     O tema dominante deste livro é, sem dúvida, o da desertificação das aldeias nordestinas, o abandono dos campos, a modificação da paisagem. Como escreveu Pedro Mexia, é ele um “Requiem transmontano” e melhor não sou capaz de dizer. E esta expressão remete-nos para um desabafo do nosso poeta no texto “Emigrantes” em ALGURES A NORDESTE – “Para cá do Marão manda o olvido”.
     Ignoramos se é intencional da parte de Pires Cabral dedicar os últimos quatro poemas ao que resta do passado e que pode assim resumir-se: pequenas hortas de subsistência, escombros, “pedras, cardos, ervas sem préstimo”, poeira, “Gente pouca, envelhecida, / muito dada a morrer.”, “ventos que mordem o vazio dos campos”, em suma, e empregando uma eloquente expressão do autor – “O desuso agrário”. Do que foi vida, movimento, cultivo, azáfama agrária, produtividade, “Restam as hortas”, poema fulcral na economia da obra, espécie de súmula, de síntese de um Nordeste sempre assumido.  Apesar de tudo, algo resta de uma identidade ameaçada, além dos tais cibos resistentes onde o ventre da terra continua a abrir-se à espera de ser fecundado. O poema “Procissão de Aldeia” a lembrar-nos João Villaret e António Lopes Ribeiro, é uma espécie de políptico, em que visualizamos, passo a passo, o desfilar do cortejo religioso em honra do Santo em liberdade provisória, onde é escalpelizada uma realidade rural mais ou menos estereotipada e respeitada uma hierarquia tacitamente aceite por todos os fiéis que “apaparicam” o padroeiro: “No fim de tudo, volta o Santo ao seu altar / de papinho cheio…” A respeito deste poema de registo forçosamente narrativo, chamamos a atenção para o apurado sentido de humor mais relevante quando se refere aos sapatos novos do padre: “Debaixo do pálio, o senhor padre pragueja mentalmente / contra os sapatos novos que lhe apertam os calos…” Outra realidade actual é narrada, em tom crítico, diríamos mesmo de uma ironia trágica, no texto “Magusto no Lar de Idosos”. Mais urbanos que rurais, estes espaços recolhem velhices e doenças desamparadas, em geral em acumulação. Ao assinalar datas festivas com actividades lúdicas, as assistentes sociais agem “como se houvesse ainda no apoquentado / quotidiano dos velhos lugar para a festa”.
    Registe-se o carácter bipartido, tripartido e mesmo quadripartido de vários poemas deste livro. Como em andamentos de uma sinfonia, o poeta faz as suas pausas para que o leitor tome fôlego. Reparte o todo por partes em sequências lógicas, em segmentos temporais ou outros, quase sempre sem autonomia, uma vez que se encontram interligados, como é o caso de, por exemplo, “Vento”, “Nora”, “Requiem pelo Rio Tua”, “O Ribeiro e Eu”, “Nalguinhas”.
     Entre aspectos da estética poética de Pires Cabral transversal a todos os seus títulos, realce especial para o bestiário: pardais, milhafre, pintassilgo, borboletas, rebanhos, gato, vaca, peixes, lagartixas, caracóis, rãs, pirilampos, animais benévolos, excluindo o milhafre a que se vêm juntar, no poema que remata o livro, ratos e morcegos, únicos habitantes possíveis num habitat que já não é de gente: “O último a sair que apague a candeia / e cerre a porta. Que      ratos e morcegos / possam sem ser perturbados devassar / o que outrora foi lugar de gente, / apoderar-se dele, // fazer dele o seu salão de baile.”
    Reservei para o fim a abordagem daquilo a que Pires Cabral chama “peregrinação / aos lodos de mim” onde impera a presença do eu, o discurso de primeira pessoa, logo o extravasar de uma interioridade partilhada. Vamos ousar ser nós os peregrinos em romagem ao interior do poeta da nossa devoção. Calculo que ele subscreveria os versos de Caeiro em O Guardador de Rebanhos: “Ser poeta não é uma ambição minha / É a minha maneira de estar sozinho”. Sabemo-lo introspectivo, ensimesmado, feito de “vidro quebradiço”, com ar de quem traz sempre um verso atravessado no pensamento. Buscamos mais elementos susceptíveis de acrescentar dados para a sua poética, para a sua forma pessoal de encarar a criação literária. E eles surgem-nos, discretos, modestos, irónicos. Em “Arte de gritar” confessa-nos uma ambição e partilha connosco uma decepção: “Quisera dizer coisas / que ninguém tivesse dito antes de mim”, mas os seus antecessores só lhe deixaram migalhas “…para eu me entreter // como uma criança pobre brinca com destroços/ de brinquedos recuperados do lixo.”Em “Bucólica” (apesar de tudo mantêm as aldeias um certo bucolismo virgiliano), um quadro pintado “com letras, com sinais”, à moda de Cesário, as vacas que pastam no lameiro têm alma de poeta “mas sem as birras destes”. Brinca com a sua essência como acontece em “Do mal, o menos”: Trago assanhada a veia da poesia (…) // Mas enfim, do mal o menos: / sempre é melhor trazer a poesia / assanhada do que ter, por exemplo / a aorta dilatada”. Ainda num registo jocoso, o poema “Resposta” refere-se ao castigo dado pelo vento a alguém que o interpela “Soberbo com as [suas] prerrogativas de poeta”.
   Na parte II de “Flor da Esteva”, esta espécie bravia que, juntamente com a urze e a giesta grita a primavera num branco pintalgado de vermelho, o poeta, contagiado pelo eco festivo, arrisca “algumas serôdias aleluias” – “Só que a mim/ os gritos saem-me pretos / e sem pintas de nenhuma cor.”
    Recorrendo (o que é habitual) a comparações, o poeta surge-nos consciente de ter uma missão a cumprir, como um “Caminho de pé-posto”: “sou um caminho e levo a algum lugar”.
Identifica-se, também, com um ribeiro em “O Ribeiro e Eu”: “ambos movediços, / trazemos de nascença caminhos a cumprir” e com uma ribeira: “é fatal perdermos parte de nós /caída no caminho.”
    O livro encerra sob o signo da despedida – “O Adeus às Almas”, um poema cru, acutilante, mordaz. É um adeus aos espaços e às gentes do nordeste, um render da guarda, um passar de testemunho de gentes para bichos repugnantes e negros que se assenhorearão de um território sem que haja necessidade de luta entre sitiantes e sitiados porque estes não existem.

    Terminamos com um poema do livro que foi a primeira pedra daquilo que é, hoje, um templo de poesia, onde se deve entrar limpo de pés e de alma. Há 40 anos escreveu Pires Cabral em “Hic et Nunc”:

Aqui e agora assumir do Nordeste
a voz hostil. A excessiva morte
hei-de perfazer: exigência de mim
em campo ferido – memória augusta e salutar.
assumir o Nordeste. urgente. em duro exemplo
vivo. aqui e agora o Nordeste aprendido.
teimar  com mansidão. como se
nunca o peito aberto me doesse.
                                      
in ALGURES A NORDESTE
            
Vila Real, 14 de Março de 2014-02-27
    
 M. Hercília Agarez

 Nota do editor:

– Apresentação do livro Gaveta do fundo, de A. M. Pires Cabral, por Maria Hercília Agarez.  
  No dia 14 de Março de 2014, às 21h00, no Centro Cultural Regional de Vila Real.