29 janeiro 2014

RIBEIRA DE PENA E CAMILO: O PRINCÍPIO DO FIM DA SUA ODISSEIA AMOROSA,por M. Hercília Agarez

“Envelheci a amar” in No Bom Jesus do Monte
Introdução
    Na sua obra Viagens na Minha Terra, Almeida Garrett, socorrendo-se de um dito de Yorick, bobo do rei da Dinamarca, afirma, vindo em defesa de Carlos, seu alter ego: “O coração humano é como o estômago humano; não pode estar vazio, precisa de alimento sempre.” Assim foi com Camilo. Revela-o, por exemplo, o testemunho de Ricardo Jorge na descrição que faz do seu casamento com Ana Plácido:
    “No sofá, aconchegados os noivos, ambos de charuto ao canto da boca. Camilo está outro, calmo e contente, fala e graceja como de costume nos seus bons momentos. Acaricia a mulher, dirige-lhe requebros, chama-lhe a cada passo a Srª Viscondessa, sublinhando o título com entono e realce.” in Como se Casou Camilo
Desenvolvimento
    Qualquer estudo sobre o percurso humano de Camilo é um quebra-cabeças. Porque ele transfere para a ficção romanesca e para as crónicas pedaços da sua vida, porque os seus biógrafos e estudiosos nem sempre convergem em análises de factos e respectivas datas. O que eram, no início dos estudos camilianos, dados adquiridos, alguns talvez baseados em nem sempre críveis fontes orais, veio, com o aumento de rigor posto na investigação e inerente busca de documentos autênticos, a tornar-se falsidade. Refiram-se ainda revelações inesperadas que camilianistas apaixonados e insaciáveis nos oferecem, como é o caso do livro “Os manuscritos de Gertrudes” da autoria de Manuel Tavares Teles. A bibliografia passiva camiliana é, por outro lado, imensa, ao mesmo tempo que a conturbada existência do “torturado” se presta a especulações. Saber, sobre Camilo, onde acaba a verdade e começa a lenda, é tarefa difícil para quem se dedica ao estudo da sua biografia. Que ela dava romance, prova-o a existência dos livros O Romance do Romancista de Alberto Pimentel e de O Romance de Camilo de Aquilino Ribeiro.
    Se dermos créditos ao que Camilo escreve, em verso e em prosa, não aportou ele a Ribeira de Pena virgem de coração. Terá sido enfeitiçado por donzelas da aldeia da Samardã, tão puras como águas de riacho ou como as ervas que as suas ovelhas pasciam. Fora, pois, o campo o cenário idílico de “devaneios infantis” entre o rapaz a entrar na puberdade e as camponesas enredadas em tarefas agrícolas.
    Elas (Luísa, Rosa, Ângela, Margarida???) lhe terão inspirado poemas mais tarde recolhidos em Um Livro, oferecido ao grande amigo/editor/protector José Barbosa e Silva em 1854.
     Se alguns correspondem a figuras/flirts reais, outros não passarão de criações justificativas do cultivo de versos no género lírico para o qual, convenhamos, Camilo não foi vocacionado. Desfaz-se em redondilhas lamechas e inflamadas, em torrentes verborreicas de rimas pobres, como é o caso de uma composição poética de dezasseis estrofes irregulares dedicada a uma tal Luísa:

Luísa
Luísa, flor entre as fragas,
donairosa camponesa,
toda graças e pureza,
lindo esmalte das campinas,
colhes no prado as boninas
brincas à tarde, na espalda,
onde verdeja a alameda
da viva cor da esmeralda?
Brincas, Luísa, afagando,
o que mais amas no bando,
o teu alvo cordeirinho?
[…]
Quando, à noite, o gado metes,
farto e ledo, em seu redil,
vais no coro das donzelas,
onde as não viste mais belas,
descantar cadenciosos
carmes de alma tão saudosos,
dum sabor tão infantil!...
…………………………………………………

Joaquina Pereira de França (1826-1847)

    Quando, há anos, a Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão, a Casa de Camilo e o Centro de Estudos Camilianos promoveram uma exposição itinerante sobre as mulheres de Camilo (título ambíguo), houve omissões iconográficas naturais como a da mãe do escritor e a da freira Isabel Cândida. Também não consta nenhuma imagem de Joaquina Pereira de França. Com base na opinião de Alberto Pimentel de que seria ela muito parecida com a irmã Rosa, cabe-nos, através da fotografia desta, imaginar aquela que Mário de Meneses caracteriza como uma “mocetona de peitos empinados e tez morena”.
    Na altura em que um rapazola endiabrado e à deriva nos caminhos da vida troca a Samardã por Friúme, estamos ainda longe de poder contar com a sua epistolografia como suporte para a análise e conhecimento do seu quotidiano sentimental, profissional e social. Assim sendo, teremos de cingir-nos aos biógrafos ou simples estudiosos e encontrar, em alguma ficção, caminhos paralelos.
    Em Uma Sombra Picada das Bexigas João de Araújo Correia, para quem o autor de Anátema era o exemplo máximo do culto da língua portuguesa, escreve:
   
     “Se transpusermos, no distrito de Vila Real, a serra do Alvão, caímos em Ribeira de Pena, terra onde Camilo, dos dezasseis aos dezoito anos, viveu o equivalente a vinte anos de vida ordinária. Pandegou, namorou, casou, estudou e intrigou. Mas fez mais… Observou o ambiente, subiu e desceu montanhas, caçou factos vivos que lhe serviram, durante a vida literária, como sementes de efabulações.” […] Viveu em Friúme dois anos completos. Antes de casar, terá sido hóspede de sua prima Maria do Loreto, consorte estapafúrdia de um tal Moreira. Depois de casado, viveu num denegrido cardenho, hoje arruinado e desabitado.”

  No seu livro O Penitente (Camilo Castelo Branco), Teixeira de Pascoaes dá-nos conta da ida de Camilo da Samardã para Friúme. Aí exercerá a primeira actividade – a de ajudante de tabelião. A aldeia, descreve-a assim: “Friúme é um pequeno povo, três ou quatro fogos arrefecidos, na margem do Tâmega e perto de Ribeira de Pena. Fica num fundo vale, onde os empinados montes circundantes despejam torrentes de sombra, ao pôr-do-sol. E é logo a escuridão absoluta a rever-se nas águas do Tâmega, adormecida no seu leito. E adormecidas sonham as estrelas. E as estrelas sonhadas brilham como as verdadeiras.”
     Chegado a Friúme, para onde fora impontado na expectativa de aí aprender o significado da palavra trabalho, pensaria o adolescente armado em sedutor conquistar as moçoilas das redondezas. Tal não terá acontecido, segundo Ludovico de Meneses citado por Aquilino que afirma, por tê-lo ouvido no local, fazerem elas dele “gato-sapato”, correndo-o à pedrada e chamando-lhe, em voz bem alta, feião.
    Diferente tratamento lhe terá dispensado Joaquina Pereira, “uma destas raparigas de aldeia, meio senhoras, meio camponesas, a quem tratam pelo diminutivo afectuoso” no dizer de Aquilino. Ela era, pois, Quinita.
    Estamos em Março de 1841. Dois jovens quase da mesma idade apaixonam-se. Não haveria na pequena aldeia muito por onde escolher… Ela teria a frescura aldeã de uma maçã camoesa ainda não bem madura, mas a prometer doce sumo. Ele, galante q.b., ar citadino e bem-falante, com incipientes trejeitos de D. Juan. Ela, filha de gente enriquecida pelo comércio. Ele, futuro herdeiro de confortável património. Dela poderia dizer-se, como Camilo num conto: Como ela o amava!”. Dele diremos nós: Como ele era espertalhaço!
     Seguindo o exemplo da irmã Carolina, precipitou um casamento para poder apoderar-se da herança deixada pelo pai, parte da qual tinha sido delapidada pelos tios.
    Teixeira de Pascoaes, na obra citada, refere que o jovem compunha redondilhas para descantes e entremeses e aos domingos se divertia com a rapaziada a namorava Joaquina.
    Esta “moça de estatura regular, alta de peitos, morena e muito simpática” (palavras de Camilo) terá servido ao novelista de inspiração para o esboço de figuras femininas da ruralidade como Mariana (Amor de Perdição), Mafalda (Amor de Salvação), Teresa (Sexto dos Doze casamentos Felizes), Tomásia (Coração, Cabeça e Estômago), entre outras, como lhe terá sido útil a familiaridade com espaços e gentes da aldeia na delineação dos seus enredos. Não é por acaso que o próprio afirma, com parcial acerto: “Eu não tenho imaginação, tenho memória”.
    O casamento realizou-se na igreja de S. Salvador, na sede do concelho, e dela foi feito o seguinte registo cuja transcrição fomos encontrar em O ROMANCE DO ROMANCISTA de Alberto Pimentel:

“Francisco Xavier Alves, Reitor da Freguesia do Salvador da Ribeira de Pena, arquidiocese de Braga:
    “Certifico e atesto que em um livro dos assentos de casamento desta freguesia do Salvador, concelho de Ribeira de Pena, arquidiocese de Braga, está lavrado a fl. 43 o assento do teor seguinte: Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco, filho de Manuel Joaquim Castelo Branco e Jacinta Rosa Almeida do Espírito Santo, da cidade de Lisboa, e de presente assistente nesta freguesia do Salvador, e Joaquina Pereira, filha de Sebastião Martins dos Santos e Maria Pereira de França, do lugar de Friúme, desta freguesia do Salvador da Ribeira de Pena, contraíram o Sacramento do matrimónio por seus mútuos e expressos consentimentos in facie Ecclesiae conforme o Concílio Tridentino e Constituição do Arcebispado com comutação de proclamas para depois de recebidos na minha presença e das testemunhas abaixo assinadas, a dezoito de Agosto de mil oitocentos e quarenta e um: testemunhas presentes o Padre José Maria de Sousa, do Pontido de Aguiar e Francisco Ribeiro Moreira [casado com Maria do Loreto], de Friúme, desta freguesia….”

     De alguns aspectos singulares se reveste este casamento, além do já referido. Os pais de Quinita acreditaram ter encontrado para a filha um noivo rico. Contudo, foram eles que sustentaram o casal na sua humilde casa. Também foi Martins dos Santos, o sogro, que, acalentando a esperança de ter um genro médico, o enviou para a Granja Velha, a nove quilómetros de Friúme, para aí ser instruído por um padre que, entre outros conhecimentos então indispensáveis, lhe transmitiu os da língua latina. Estava, sem que isso lhe tenha passado pela cabeça, a separar os recém-casados, uma vez que o jovem só convivia com a mulher aos domingos e dias santos.
    As ténues relações foram esfriando (caso normal em C.), apesar do nascimento de uma filha, Rosa, nascida em 1843, abandonada, tal como antes a mãe, entretanto substituída por Patrícia Emília, em Vila Real. O precipitado abandono de Ribeira de Pena rumo a Lisboa terá obedecido a duas razões de peso: fugir de ajuste de contas exigido por uma versalhada em que o Camilo, com um jeito para a sátira já a despontar, põe a ridículo o casamento de um morgado com criatura de nível social inferior (!) e apoderar-se da quantia de 850$000 que lhe cabia da herança. A reacção pública à sátira afixada na porta da igreja de S. Salvador antes da missa das onze anunciava triste destino ao seu autor. Escreve ele no prefácio a Ao Anoitecer da Vida:  “Fugi com o Magnum Lexicon debaixo do braço e com os ossos direitos que aquela terra ingrata me queria comer.”
   Se camilo algum dia a amou, cedo se desiludiu e a sua presença se tornou entediante. Escreve: “…as nossas almas distanciavam-se tanto quanto os corações se identificavam. Não basta um forte e sincero afecto para nivelar igualdade de espíritos. O ar, os modos, este complexo de nadas que denotam convívio de boa sociedade, não os tinha, não os podia ter.”
    Foi triste, em tudo, o destino da rapariga que se apaixonou e deixou seduzir por um rapazola de lábia fácil e verso pronto, atributos suficientes para dourar a sua figura de bexigoso. Sabia-se traída, ali a poucos quilómetros. De visita à aldeia, a sua tia Rita não se inibiria de levar notícias de Vila Real, indiferente ao sofrimento que iria causar à sobrinha. À dor da traição e do abandono juntar-se-iam os maus tratos do pai a quem as contas acabariam por sair furadas.
    Foi a enterrar como indigente, sem a presença do marido que nunca haveria de assumir este compromisso. Quando deu entrada na cadeia da Relação do Porto, na sequência do rapto de Patrícia Emília, apresentou-se como solteiro e em outras situações omitiu sempre o estado civil de viúvo, apenas escarrapachado no registo do seu 2º casamento.
    O médico-escritor barrosão Bento da Cruz publicou recentemente Camilo Por Terras de Barroso e Outros Lugares. Na primeira parte, que antecede uma antologia de textos de camilianistas sobre a região, ao tratar do caso de Quinita assume ser essa a mulher do novelista a que, de todas as suas mulheres, lhe merece mais simpatia. E justifica: Quantas Joaquinas eu conheci na minha infância, verdadeiras rosas plenas de beleza, de cor, de alegria, de vida, e que, à entrada da puberdade, foram desfolhadas e reduzidas à miséria pela simples razão de serem mulheres.”

Registo de casamento de Camilo com Ana Plácido, transcrito no nº 124 do semanário Arquivo Nacional de 25 de Março de 1934:

“Aos nove dias do mês de Março do ano de mil oitocentos e oitenta e oito, nesta freguesia de Santo Ildefonso da cidade e diocese do Porto […] na minha presença compareceram os nubentes Camilo Castelo Branco, visconde de Correia Botelho e D. Ana Augusta Plácido, os quais sei serem os próprios, com licença para recebimento na sua própria casa por causa do estado valetudinário do nubente, dispensa de proclamas, e com os mais papéis dos estilos correntes, e sem impedimento algum canónico ou civil para o casamento; ele de idade de sessenta e um anos, viúvo de Joaquina Pereira França, falecida na freguesia do salvador de Ribeira de Pena, natural da freguesia dos Mártires da cidade e diocese de Lisboa, na qual foi baptizado e morador da freguesia de Santo Ildefonso, filho de Manuel Correia Botelho, natural de Vila Real de Trás-os-Montes e de mãe incógnita; e ela da idade de cinquenta anos, viúva de Manuel Pinheiro Alves.

Registo do óbito de Joaquina
(A certidão foi necessária para que Camilo pudesse casar em segundas núpcias com Ana Plácido). Diz o documento:
[…] Certifico que em um livro findo dos assentos de óbito desta freguesia do Salvador, Concelho de Ribeira de pena, Arcebispado de Braga, achei o assento do teor seguinte: Joaquina, casada, do lugar de Friúme e freguesia do Salvador de Ribeira de pena, faleceu com todos os sacramentos em dia vinte e cinco e poi sepultada aos vinte e sete de Setembro de mil oitocentos e quarenta e sete, foi sepultada como pobre, nada teve, e para constar fiz este termo.
Conclusão
    Todo o percurso vivencial de Camilo foi pautado por atitudes e comportamentos que fazem oscilar a reacção de quem o conhece: ora vituperamos o seu mau carácter, espantando-nos, por vezes, com o seu maquiavelismo e com a sua falta de escrúpulos, ora tentamos compreendê-lo e desculpá-lo com a infelicidade de uma infância vivida de Anás para Caifás, sem afecto nem referências, criado um pouco ao Deus dará, entregue aos maus instintos. Vários traumas terão justificado os desvios comportamentais de Camilo, temperamentalmente propenso à rebeldia, à estúrdia, à instabilidade, à irreverência e à provocação. Registado como filho de mãe incógnita, perde esta aos dois anos de idade. Dessa perda irreparável há-de falar na sua obra, lamentando não ter tido nunca um regaço materno onde reclinar a cabeça. Sete anos passados, é a vez de se despedir do pai. Sem parentela em Lisboa, o conselho de família, encarregue de decidir o futuro dos órfãos (Carolina era quatro anos mais velha), recambia-os para Vila Real onde seriam entregues aos cuidados da tia Rita Emília, única familiar viva e, como tal, futura administradora dos bens dos sobrinhos que delapida descaradamente com a conivência do amante. Mulher extravagante, gananciosa e dissoluta será recordada nas Memórias do Cárcere: “a irmã de meu pai, decrépita e cadavérica, disse-me que era necessário ser desgraçado para não contrariar o fado das nossas famílias.
    Se aos anos que passou com a irmã em Vilarinho da Samardã se refere como tendo sido os únicos felizes da sua mocidade, tal não significa que tenha encontrado junto dela o afecto de que carecia, dela dizendo que era boa para todos menos para ele.
    É, pois, um adolescente mal formado, apesar do convívio com um padre na Samardã, que assume, precoce e levianamente, um compromisso demasiado sério para a sua idade. Em carta a Alberto Pimentel, anos mais tarde, Camilo dirá: “este casamento foi uma infâmia”. A palavra foi bem escolhida e poderá ser adaptada a ligações amorosas irresponsáveis e inconsequentes cujo desenlace é o abandono do objecto do desejo, com excepção para Ana Plácido de quem, doente e com problemas de toda a ordem, dependia a sua sobrevivência. Porque, e citando Gondim da Fonseca em Camilo Compreendido, “é ela que o manteve, que o segurou, que lhe serviu de amparo, que foi a sua amiga e a sua escrava. Se porventura não se obstinasse em guardá-lo a todo o transe ele lhe fugiria, como fugiu de todas as mulheres.”
     Para Ribeira de Pena como para Friúme não foi vã a permanência de Camilo na região durante dois anos. Está ela na origem de visitas de estudiosos e de simples turistas, não só à igreja de S. Salvador, mas também à aldeia onde, se não fosse ele, talvez tivesse desaparecido a humilde habitação, sua residência de casado, tanto tempo votada ao abandono.
     Várias relações amorosas de Camilo, consumadas ou platónicas, não levantam problemas porque bem documentadas. Se a ligação sentimental a Fanny Owen levanta dúvidas, o mesmo não acontece com os casos de Patrícia Emília (Vila Real), Eufrásia, Isabel Cândida, Maria Felicidade Browne e Ana Plácido (Porto). Agustina e Aquilino falam ainda de uma Eugénia Vizeu que, na opinião de Alexandre Cabral, não passou de uma admiradora do seu talento. Recentemente Tavares Teles publicou Os Manuscritos de Gertrudes, onde inclui todas as cartas que essa mulher escreveu a Camilo em 1853 e 1854 e um diário a ele destinado. Não se tratou de uma paixão retribuída e se o escritor alimentou uma correspondência a que ele próprio pôs fim (já amava Ana), talvez tenha sido por sentir-se lisonjeado com tamanha dedicação.
     Não interessa, para o caso, quantas foram as vítimas imoladas no altar camiliano. Para os Ribeira-Penenses, mais importante é ser a sua terra o primeiro espaço de um roteiro sentimental daquele que foi considerado, no seu tempo, o maior romancista da península.

M. Hercília Agarez


Ribeira de Pena, 14 de Setembro de 2013


Nota: este texto não respeita o novo acordo ortográfico.

                                             OUVIR: PROGRAMA AGOSTO - Hercília Agarez



28 janeiro 2014

«A MULHER QUE VENCEU DON JUAN» de Teresa Martins Marques

NO JL de 22 de Janeiro saiu uma versão sinóptica deste belíssimo texto da escritora JULIETA MONGINHO. Aqui fica a versão integral:

CONSELHOS AOS LEITORES DE «A MULHER QUE VENCEU DON JUAN», DE TERESA MARTINS MARQUES

1. Escolha o leitor uma larga tarde, se possível de sábado, como esta, e aquelas em que muitos de nós deixávamos um filme por ver ou um lanche por lanchar para ir ao facebook à procura do capítulo semanal do folhetim. Neste thriller não há momentos mortos. Sem as reflexões que a autora propõe, os passeios pelos quais nos conduz, a navegação por paisagens mutantes, o enredo perder-se-ia do sentido e o leitor perderia a aventura.
O tempo, a sua duração, o abraço que nos dá sem nos sufocar, esse raro tempo espreguiçado, é essencial à boa leitura deste romance.
Como é essencial ao amor, o seu verdadeiro centro, o para o qual convergem todas as nuvens, todas as ideias, todos os rios secretos.
A autora aplica com mestria os enleios da sedução. Prega-nos a maior das partidas: enquanto disseca sem piedade o “dolo” do sedutor na relação amorosa, não o enjeita enquanto arte na relação com os leitores.
2. Venha o leitor masculino com o desconforto de quem entra em terreno movediço. Sabendo de antemão que há-de ser uma mulher a vencedora do confronto, o triunfo que lhe resta consiste em não se identificar com o vencido Don Juan, o predador, aquele que destrói o outro para sobreviver ao combate que trava consigo próprio e com a sua imagem.
Venha a leitora sem peneiras de vencedora antecipada, o género não lhe atribui estatuto superior. Para não chegar ao fim com a sensação de ter sido apanhada numa curva ilusória, terá de enfrentar os mesmos perigos, os mesmos espelhos que o seu aparente adversário.
Disponha, pois, do título do romance à sua vontade. A mulher a que se refere não é apenas Sara, Esmeralda durante a clandestinidade, mas um colectivo de género misto. Don Juan é ele mesmo a personificação/simplificação de vários tipos de personalidade que, no seu grau mais virulento, se torna um “serial killer dos afectos”, nas palavras da narradora.
3. Relaxe. Procure o lugar mais aprazível. Este livro vai fazer-lhe bem ao coração e ao sentido de justiça. Ao contrário de Dante à porta do inferno, a autora não nos previne contra a esperança. Não que a visita ao inferno seja poupada, mas nas deambulações pelo Hades desta vez Orfeu resiste, Eurídice é resgatada.
A subversão dos relatos antigos é um rasgo que Teresa Martins Marques assume com a naturalidade das travessuras da infância (uma delas, se não estou em erro, inclui umas certas amêndoas de licor). Neste livro é Penélope quem viaja, é ela quem vive as aventuras de Ulisses, enquanto este se divide entre o amo e o aio, também ele sujeito a uma transfiguração – metamorfose – que só lá mais para diante o tornará companheiro e herói.
4. Prepare o leitor uma malinha, um estojo de sobrevivência para acompanhar esta viagem, que inclua a bebida preferida, uns amuse-bouche e muita curiosidade. Aliás, se “é fácil transformar a alma em lama”, como a dado passo observa a narradora, não é menos fácil transformar ambas em “mala”, a mala surgindo ao longo do livro como o reduto do essencial, sempre pronto a acompanhar quem quer partir. Dir-nos-á ainda a narradora, e é este um dos lemas deste livro de proveito e exemplo, “tudo o que sou é a minha liberdade”.
5. Nesta viagem de rigor e aventura, não tenha o leitor medo de se marear, mesmo quando subir para uma embarcação ao sul. Há-de saltar da beleza para o horror no mesmo parágrafo, tal como na vida. Há-de encontrar nas paisagens deslumbrantes o palco dos actos mais atrozes, como acontece num apartamento com vista para a foz do Douro. E nas agrestes – casas pequenas, autocarros atulhados de sobreviventes – a liberdade mais feliz.
Contrastes, dicotomias: entre força e fraqueza, entre realidade e aparência, entre liberdade e escravidão. Não se apoquente o leitor com reticências ou adversativas. O tom é afirmativo. A autora sabe ao que vem, trata de definir os campos em confronto. De um lado as personagens que sabem amar: Sara, a quem ao nascer todas as graças foram dadas e a todas ia perdendo por um triz. Bela, rica, bondosa, culta e ingénua, caindo aos dezassete anos na rede de um sedutor. Luís, o professor brilhante e ingénuo, também ele vítima de uma Doña Juana. Lúcia, a psicóloga de passado misterioso, anjo da guarda das mulheres em fuga. Manuela, a jovem que escapa à condição de vítima e se entrega ao estudo do Diário do Sedutor, de Kierkgaard, defendendo uma tese, intitulada “Retórica Amorosa de Don Juan. Sombras da Sedução”, destinada a entender a origem profunda do donjuanismo. Da qual, apesar da persistência da dúvida filosófica, emerge uma ideia-força principal: Don Juan não ama as mulheres que conquista em série, através da arte da palavra. Don Juan, na sua forma letal, pertence à categoria dos homens que odeiam as mulheres, como aqueles que dão o título ao primeiro volume da trilogia Millenium, de Stieg Larsson, que a autora cita no original sueco.
Do lado oposto, os que não sabem amar, porque sofrem de “narcisismo exacerbado”: Amaro, o mais odioso biltre, cirurgião plástico. Joana, também ela fazendo vida da aparência, o correspondente feminino de Don Juan, no que constitui uma das especificidades mais interessantes do romance. Manaças, um sumaríssimo falhado, através de quem a autora descreve os métodos de sedução e os defeitos do sedutor num diálogo que evoca a conversa entre Don Juan Tenorio e Don Luís, na obra Don Juan Tenorio, de Zorrilla (1844).
As personagens que os acompanham enquadram-se também elas num ou no outro campo: Joaquim, o motorista bondoso, Paulo, o comissário compassivo, as mulheres da Casa Abrigo, estão no campo dos que amam. Alberto, o amante temeroso, Vargas, o traficante, no campo oposto.
6. Sossegue o leitor. O amor romântico não se opõe aqui ao amor erótico, antes o integra como bênção fruída. O confronto dá-se com o amor assimétrico, baseado em relações de poder, o que redunda na negação do próprio amor. “Werther é interioridade, Don Juan é exterioridade; Werther é haute couture, Don Juan é pronto-a-despir; Werther é gourmet, Don Juan é fast food.”
Afirma-se, isso sim, a crença na durabilidade da relação baseada no respeito, na liberdade, na doação e na “coragem da repetição”. A autora agarra numa pedra e vai implacavelmente cortando o que fere, o que cega, o que se falsifica, para ficar com o diamante, o centro – o coração – a pureza. Para descobrir o amor no mais elevado grau de pureza.
Nas palavras da narradora “amar é um verbo transitivo”. Um verbo que pede um complemento, um alguém que é outro em si, prolongando a alteridade no novo ente relacional. Uma nova entidade que, não sendo simbiótica, transcende a mera soma aritmética. O amado integra-se neste novo ser, proposto e esculpido pelo amor. A ressonância camoniana está presente: “Transforma-se o amador na cousa amada/por virtude do muito imaginar”.
7. Pense o leitor em três desejos, assegure-se que pode ir em busca deles, sem que ninguém o prenda. No ensinamento que a autora nos deixa, um dos ingredientes do amor assimétrico, ou seja da negação do amor, é a ausência de liberdade, por oposição à sua presença no amor verdadeiro. Este preceito – só há amor em liberdade – é repetido ao longo do texto como um refrão, uma ideia que Sara repete para não claudicar, que todas as Saras devem pôr em prática para não perecerem. A liberdade e, acima de tudo, a lucidez da liberdade, não pode sucumbir perante a ilusão do amor idealizado.
Esta afirmação de liberdade, contra as relações baseadas no domínio de um sobre o outro, estende-se ao laço filial, o que liga Lúcia à sua filha Joana. A autora aborda este laço por um ângulo pouco visitado na literatura, o da inversão dos papéis tradicionais de autoridade e tirania, como se desta feita fossem os filhos a engolir Cronos. De certo modo prolonga o questionar do instinto maternal, na senda, por exemplo, de Elisabete Badinter, na sua obra significativamente intitulada “L'Amour en Plus”, traduzido e publicado em português com o título “O Amor Incerto”.
8. Prepare-se a leitora, embora seja sábado, cuidando bem de si. Tome uma dose comedida de egoísmo, que o mundo não há-de desabar enquanto se entrega à leitura. Este romance assume o propósito didáctico do que costuma chamar-se o empowerment da mulher, por oposição à sua nulificação. Apesar do seu passado recente, ou por causa do seu passado mais que perfeito da infância, Sara exibe-se desde o início como uma mulher forte e corajosa, apenas com um interregno de fraqueza, atribuído à paixão. Um modelo, para todas quantas desejam fugir à condição de vítima e, mais do que isso, à resignação/comprazimento.
A começar pelas companheiras da Casa Abrigo, cada uma delas com o seu dote próprio, especialmente o de Maria para a cozinha, não importando a sua origem, aliás heterogénea. Ao ler as passagens em que convivem, numa leveza recém-adquirida, apetece-nos aplaudi-las, a elas e a quem, através das associações que as apoiam, no caso deste livro a APAV. Apetece-nos, como num manifesto, dizer de pé ó vítimas da violência.
Odete, Maria, Esmeralda e todos os outros nomes duplamente fictícios, são a identidade de quem ousou viver. A relação que se estabelece entre todas é comovente e alegre, porque assente na igualdade que a libertação proporcionou.
A diversidade de origens das mulheres que habitam a Casa Abrigo serve à autora de pretexto, como tantos outros, para viajar através da riqueza cultural do país, de Trás-os-Montes ao Algarve, demonstrando que este território construído está inscrito num mapa inapagável, que a crise morde, mas não vence.
9. Ganhará o leitor em ter à mão um aparelho com ligação à rede. Melhor ainda, instale-se numa biblioteca. Assim poderá seguir e aprofundar as pistas de leitura sobre o tema principal e os circundantes. Neste romance-ensaio (ou neste “manual para parvos que querem deixar de o ser”, nas palavras da narradora), muito terá a aprender sobre o amor, mas também sobre história, arquitectura, criminologia, sexo, música, gastronomia, língua dinamarquesa, pintura, cinema, automóveis, psicoterapias e organização doméstica. A referência, a reflexão, o propósito didáctico, não são elementos excepcionais, inserem-se no texto com a mesma naturalidade das peripécias próprias do folhetim. Este é um daqueles romances que meditam, segundo a expressão de Milan Kundera.
10. Se o leitor não chegou a ler o folhetim, não sabe o que perdeu, tente recuperar alguma coisa lendo o livro. Se o leu através do facebook, não julgue que dispensa este novo formato. O folhetim e o livro são duas obras distintas, na estrutura, na consistência, no pacto narrativo.
O que ficou do folhetim é uma teia de sedução ao leitor que, enfim liberto da tirania do tempo, anseia não pela semana seguinte, mas pela página seguinte. Navega na história como navega na rede, num googlar de saberes e fantasias.
Ficou também um romance cuja ligação a quem lê não se esgota no acto da leitura. Vai além, convoca-o literalmente para dentro do livro, assim se alimentando um ao outro, assim se amando um ao outro, autora e leitor, em co-autoria virtuosa. Teresa Martins Marques estica este jogo amoroso de modo a aparecer, também ela, no romance, qual Velásquez no quadro As Meninas, como palestrante em Tavira sobre o bastardo de D. João VI.
Permanecem ainda do folhetim traços inerentes ao meio de grande difusão que é uma rede social: o objectivo de contagiar, de se tornar viral. O imperativo de instituir uma ética nas relações amorosas.
Não é Sara que vence Amaro ou Luís que vence Joana. No dia em que perdem o medo, deixam, simplesmente, de os alimentar, libertando-se do jogo em que, pelo temor e pela aceitação do sofrimento, tinham participado. Don Juan é vencido pela sua própria incapacidade de escolher.
Teresa Martins Marques será uma das raras mulheres, que ousaram abordar directamente a figura de Don Juan, aparecida em El Burlador de Sevilla (1630), depois de Zorrilla, Cervantes, Goldoni, Lorenzo da Ponte – o autor do libreto de Don Giovanni, a célebre ópera de Mozart - Balzac, Byron, Pushkin, Dumas, Baudelaire, António Patrício, Saramago, Almeida Faria. E todo o resto da vasta bibliografia oferecida pelo texto.
“Vês, vês, eu também sei contar a história”, diz a menina Sara à criada/ama, no doce tempo da infância. Memória de Sara, memória de Teresa? Sim, Teresa sabe contar a história, e sabe recontá-la a partir de um ponto de vista vigorosamente novo.
Não terá sido a Teresa, e só a Teresa, a mulher que venceu Don Juan?

Julieta Monginho, Lisboa, Livraria Ferin, em 7 de Dezembro de 2013.

Foto retirada de: http://visao.sapo.pt/a-mulher-que-venceu-don-juan=f766249
 — com Teresa Martins Marques e ChangeMind GlobAid.



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26 janeiro 2014

Biblioteca Municipal de Vila Real -Leituras Cruzadas


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Ecos de Tempos Mortos,por Arlbertina Martins Lavinas

Sinopse
Também somos lugares. Somos a consciência do outro, do tempo e também dos lugares. Esta é a verdade que se descobre depois de lermos esta obra.
Este resgate da memória, que a autora brilhantemente nos oferece, revela-nos de forma sapiente e sensível que, lá atrás, na nascente deste rio, houve gente e um espaço que discretamente nos moldou e permanece em nós, simbolicamente, até que a chama se apague.
Quem não quer saber quem é e de onde veio? Todos. Renegar isto é desprezar a intelectualidade humana que nos leva a caminhar em direcção ao futuro.
António Sá Gué
A  Autora:
Arlbertina Martins Lavinas, nasceu a 24 de Novembro de 1947, em  Vila Real.
É Bacharel em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Foi Professora de Português e Francês na antiga Escola Comercial e Industrial de Vila Real e agora designada: Escola Secundária de S. Pedro, de da mesma cidade.
Durante um ano foi Assistente de Língua Portuguesa em Lyon, França.
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19 janeiro 2014

Tamborileiros e Fraiteiros da Terra de Miranda,de Mário Correia

A obra procura preservar para memória futura duas das mais expressivas tradições musicais de Miranda do Douro, através das histórias de vida dos tocadores de tambor e fraita mirandesa, uma flauta de três buracos também designada por flauta pastoril. Integrando o mesmo fundo cultural das tradições gaiteiras, distinguem-se pelo predomínio na área da chamada raia seca da região mirandesa  e por terem estado nos inícios dos processos de aprendizagem da esmagadora maioria dos gaiteiros.


Mário Correia (Praia da Granja, 1952)
Mário Correia iniciou em 1970 o seu percurso de crítico e divulgador das músicas tradicionais e populares, bem como de expressãofolk e étnica, na revista portuense MC – Mundo da Canção (criada em 1969), da qual desde logo se tornou um colaborador regular e chegando a exercer o cargo de director ente 1976 e Abril de 1998.
Integrando o grupo de divulgadores da música tradicional e popular portuguesa, assim como das suas congéneres europeias e latino-americanas, publicou numerosos artigos em jornais nacionais assim como em revistas, quer nacionais quer estrangeiras. Realizou, também, durante cerca de cinco anos alguns programas de rádio (RCP/Porto, RDP-Antena 1 e Rádio Nova-Porto/ RCP-Lisboa).
Criador da Sons da Terra em 1999, com um catálogo de edições de recolhas musicais da tradição oral portuguesa que já ultrapassa uma centena de títulos publicados.
Entre 1990 e 1998 integrou a equipa responsável pela programação do Festival Intercéltico do Porto.
Fundou, em Setembro de 2001, o Centro de Música Tradicional Sons da Terra, com sede em Sendim (Miranda do Douro), entidade que desde o ano de 2000 programa, produz e organiza o Festival Intercéltico de Sendim.
Investigador na qualidade de membro colaborador do IELT (Instituto de Estudos de Literatura Tradicional) da Universidade Nova de Lisboa, tem vindo a publicar regularmente várias obras consagradas às temáticas musicais.
Em 2007, foi entregue a Mário Correia o XII Prémio Europeu de Folklore Agapito Marazuela (Segovia, Espanha) e, em 2010, o Chosco de Oro (Navelgas, Astúrias).
No ano de 2012 foi-lhe atribuída pelo Governo de Portugal a Medalha de Mérito Cultural.

Apresentação do livro “Histórias de Benlhevai”,por Rogério Rodrigues

Benlhevai é o Reino Maravilhoso de José Maria Fernandes. Pertencendo a um família numerosa e ele com assento mais permanente nesta aldeia de Vila Flor, foi incumbido de ser o cronista-mór do Reino.
E desempenhou bem as funções, porque este livro é e será uma preciosidade para os estudiosos de antropologia, etnografia, comportamentos sociais,linguística mesmo ou sobretudo nos regionalismos,
localismos ou corruptela das palavras, o que levou, compreensivelmente,o autor  a apendiçar um glossário à obra.
 O que nos pode surpreender neste livro é a coexistência do sagrado com o profano, o repositório de um conhecimento empírico e ancestral na nomeação e catalogação das alfaias agrícolas , das suas características e utilização.
É toda uma cultura popular, mais assente na passagem de testemunho e memória de pai para filho, do que em qualquer documento escrito.
Registe-se também, e não é tão pouco, uma recolha da sabedoria popular, dos costumes, e dos ciclos da vida do homem e da Natureza. E nunca, como aqui, o homem e a natureza andaram tão ligados e foram tão dependentes um do outro.
 O próprio  trabalho agrícola, tão bem relatado pelo autor, conduz-nos a um conhecimento de práticas seculares. Já o poeta grego Hesíodo, na sua obra “Trabalhos e Dias”, escrita  500 anos anos antes de Cristo, nos relata o quotidiano agrícola com características semelhantes ao nosso trabalho agrícola até há bem pouco tempo. Já Hesíodo descreve com pormenor as distinções  entre o arado simples e o arado articulado.
 Chegado aqui, com o mundo rural hoje tanto em mutação, apetece-me lembrar-vos uma história, verdadeira, que aconteceu em Trás-os-Montes, após o 25 de Abril, quando nós, gente do norte, passamos a ser vistos como gente ignara, que vivia noutro mundo, como se o Reino Maravilhoso não passasse de um Jardim Zoológico, por profunda ignorância urbana, ou tentativa envergonhada de alguns esconderem as suas origens, renegarem as suas raízes, principalmente aqueles que se acomodaram às delícias da cidade e amesendaram à falsa fartura do orçamento.
 Aqui vai a história. Estava o país em plena campanha para as primeiras eleições livres, após 48 anos de obscurantismo, quando um jornalista  da RTP rumou até ao Norte. E porque uma velha de negro vestida é sempre uma imagem de que  um modelo de citadino gosta, vai de entrevistá-la, com o ar paternalista de quem tem o conhecimento do efémero e do que está na moda,perguntando-lhe: “ Então velhinha sabe o que é uma Assembleia Constituinte?”. A velha nem sequer olhou para ele e respondeu: “ E o senhor sabe o que é um almude de azeite?”
Estamos perante dois mundos: um que tem séculos de conhecimentos acumulados; outro, que não passa da espuma dos dias.
 Bem haja o autor deste livro que consegue recuperar o que irremediavelmente estaria perdido, porque cada velho que morre é um livro   que desaparece.
 Benlhevai tem a sua história. O primeiro registo que se conhece, e já com este nome, é de 1258, nas ordenações de D. Afonso III, farto  que os senhores feudais lhe roubassem terras que, por direito real, lhe pertenciam.
Em 1950 a aldeia tinha 500 habitantes. Pelo censo de 2011, não passava de 200 habitantes. Durante 60 anos, esta aldeia, como tantas outras, foi dilacerada pela emigração e pela guerra, os cemitérios cresceram mais do que as creches e as escolas.
O autor denota uma grande consciência social quando retrata, com minúcia, as condições de vida e os seus agentes, com a aldeia hierarquizada entre ricos (digamos antes abastados), pobres ( digamos antes muito pobres) e remediados( digamos antes, no limiar da pobreza, mas com algum património).
O livro, sendo um testemunho de solidariedade vicinal e de hospitalidade para o forasteiro, é sobretudo um hino à mulher, como o elemento fundamental da comunidade.
 E o autor vai enumerando pelo nome, as mulheres como heroínas e os homens que fazem parte da sua memória e da sua infância, com os nomes e mesmo as alcunhas.
O autor é rigoroso na descrição das festividades, tanto pagãs como religiosas, desde a festa do Divino Espírito Santo até à matança do porco em Dezembro.
E não deixa de lembrar que o início do ano agrícola é uma espécie do início de vida. Tudo na aldeia se move por ciclos, os homens e a natureza.
Hiatos há que vêm perturbar esta rotina secular: os anos loucos do volfrâmio, em que as riquezas morriam tão cedo como tão rápido tinham nascido.
Depois, com as minas em ruínas e os mitos abandonados, tudo regressa à normalidade das trovoadas de Maio, das pulhas e do Entrudo, da Quaresma,dos jogos do fito e do ferro, das segadas, de Agosto quente e das festas do Cabeço.
E atento à minúcia, o autor descreve, como se fosse o guia de um Museu do Mundo Rural, a malhadeira e o carro de bois. A descrição deste, é exemplar, com utensílios aperfeiçoados ao longo dos séculos, num conhecimento empírico que nos leva a admirar como aquela simplicidade é tão complexa.
A linguagem tecnológica e asséptica do software, hard ware, down load, etc. etc,  se é simples para os seus utilizadores e hoje tão vulgarizada, em relação às partículas ( passe a ironia) que compõem um carro de bois, é pobre. Dificilmente um hacker compreenderia esta linguagem.
 Vai longa já a conversa. Muito haveria ainda de dizer, desde a generosa tentativa de uma juventude carregada de ideais, com o 25 de Abril,  ressuscitar tradições e promover ciclos culturais, com a criação de escolas e a visita semanal do médico.Mas os sonhos foram-se perdendo. Cada um partiu para o seu lado, à procura de vida melhor, o deserto vai-se estendendo pelas aldeias, o próprio país é um sítio cada vez menos frequentado.
Resta ao autor a ligação profunda, de um intensidade quase possessiva, pela sua aldeia.
 E não quero terminar sem citar uma das passagens que mais me comoveu no livro. Em 1963, chegou finalmente à aldeia a luz eléctrica E qual poeta Homero que, não vendo, via mais do que os que viam, Alfredo, e passo a citar, “ que nunca verá luz eléctrica chora abraçado a mim, no dia em que oficialmente chegou a luz a Benlhevai”.

O Manco - Entre Deus e o Diabo . Um livro de António Sá Gué

   Sinopse:

O Manco é uma figura que procura a sua unidade, enquanto ser humano, entre a dura realidade  em que sobrevive e a busca de uma religiosidade que parece não lhe trazer respostas. Uma figura que se busca entre o seu mundo interior e exterior.
O Manco - Entre Deus e o Diabo é um grito em silêncio de uma revolta contida.

Um romance alegórico
 Este romance de António Sá Gué conjuga várias linhas de força que o magnificam.  Externamente, cada capítulo é precedido de um poema, cuja função emotiva nos dá, em primeira pessoa, um sujeito depois narrado na terceira. Conjunto de vinte e três peças, articula-se, aqui, uma biografia psicológica. Esse direito à palavra ‒ qual didascália no teatro do ser, não só definindo uma voz, mas orientando a leitura ‒ é um traço de personagem tenaz procurando domar o seu destino. Rescende aos heróis antigos, e não seria difícil encontrar concordâncias.
O ponto de partida e chegada é o mesmo: a geografia moncorvense, a pouco e pouco, esclarecendo-se; diferentes os pontos de uma existência, quando se é jovem ou já muito sofrido: vimos dos cumes altivos de pegureiro às fundas gargantas de linfa onde se percebe melhor o vivido.
Desde o início, pressente-se uma indistinção, na silhueta de Manuel, ao longe, que o pai reconhece pela «andadura». É um índice, ou indício, narrativo forte, também porque vai alterar a regularidade das coisas. Numa diegese com poucos incidentes, e gloriosos acidentes da natureza e linguagem transmontanas, inscreve-se vingança, e decide-se futuro, entre Março e Novembro de 1881, quando, acusado de incendiário por Maria das Dores, Manuel António Morgado, de 20 anos, pastor e camponês, declina identidade em seu irónico apelido: embora inocente, perde-se no conceito do povo, de iguais que o juram criminoso. É bem certo que Deus anda com o Diabo às costas, reiterando «antigo ditado».
Essa perda do (bom) nome anuncia outras piores. Afasta-se, assim, dos montes, trocados pela cadeia da Relação do Porto; degredam-no da pátria para Ultramar então na moda, quando conferências internacionais ‒ alude-se à de Berlim ‒ cobiçam as nossas possessões. Se a Justiça lhe acrescenta uma naturalidade, Carviçais, já Manuel perdeu o pé da própria realidade, e tão indiferente lhe e nos parece o silvo da locomotiva na linha do Douro (cujos primeiros troços são de 1875, e, no dealbar de 80, chegam à Régua e ao Pinhão) como a estada africana, onde se vê amputado de uma perna. A figura dissolve-se em corrente de consciência, que o narrador persegue, enquadra na atmosfera da época, deseja interpretar, num universo coetâneo rasgado em cores impressionistas (quase logo, pontilistas) e tentames simbolistas nas artes plásticas e na poesia. À luz destas homologias, é um romance fora do nosso tempo, a requerer demorada exegese ‒ e mais se olhássemos à teoria da vontade em Schopenahuaer, ao desvão do inconsciente freudiano… 
Do terroso naturalista passa-se, entretanto, à ideia, a uma conceptualização que, experimentado o Brasil ‒ outro destino nacional, onde amealha dinheiro, mas retorna-viagem, quando a mãe adoece, que já não consegue ver viva ‒, desemboca na concretização de um sonho, tanto mais difícil quanto se quer empresa de indivíduo só, e deficiente, desafiador de homens e de Deus, no esforço derradeiro de transportar as mós, qual anti-Sísifo.
O velho sonho de construir um moinho não visa, somente, alimentar o corpo; busca ‒ talvez, o principal achado ‒ recriar a alegoria da caverna platónica: «Foi além, entrou na caverna da sua existência, entrou no mundo das sombras, no submundo da inconsciência humana. Esteve no mundo do esquecimento.» É mais explícito noutra passagem: «Acordou agitado; sentia-se distante de tudo, longe do mundo dos outros, que sempre o atormentou. A noite não lhe trouxe a calma que procurava. Em boa verdade nada parecia dar-lhe satisfação plena. Durante anos sonhou com o moinho, agora que moinho era uma realidade, sentia-o como se tivesse encontrado o seu desterro, a caverna onde viveria morrendo. Maldição dos insatisfeitos! Ternura dos incompreendidos! Madrugada sem luz! Noite sem regresso!»
Que a satisfação, conquistado o objecto do desejo, vire insatisfação, vai de si, nos heróis e semi-heróis. Estranho é que se transmude em «desterro», como se o degredo africano fosse uma estação inevitável no peregrinar da alma. Há uma condenação superior, já espelhada na sentença de juiz terreno?
Seja como for, essa consciência é a verdadeira realidade, como se ameaçava desde a epígrafe. Negatividade, no prefixo in- e na preposição sem, a par de outras fórmulas? Eterna «dúvida inconsequente», que humedece o último poema? Ou puro desejo de, embora sofridamente, objectivar-se, contra a «verdade» que só os outros dizem possuir?
O gesto vitruviano enfim revertido na horizontal (contra a posição vertical) é um reforço dessa procurada harmonia ‒ reconhecidamente, em falta ‒, que o Renascimento científica e esteticamente alicerçou; o pensamento medieval, contudo, adaptou-o à cruz de Cristo, e, agora, humana (ou bicho da terra), num sentido salvífico. Vislumbra-se esta convergência, no cair do pano.
Eis como, de um andamento originariamente rural, localizável, à vista da Serra do Reboredo, se passa à enxovia da dignidade, da amputação familiar, social e pátria, até à morte dos seus e desprezo que lhe votam semelhantes; como um discurso fortemente enraizado, com boa enxertia no léxico regional, se atenua, para recrescer na frase autopsicográfica, em gradual romance-ensaio de propósito alegórico, feição raríssima entre nós.
O incêndio é um incidente, seguido dos trâmites judiciais, que também faltam à literatura nacional: são factos sociais, análogos de sentido, motores narrativos; mais do que um contra todos, perdendo-se quando mais se diz no nome e lugar de nascimento, é um herói psicológico em trânsito de maioridade, até se afastar para fundas terras e magoar no chão «de onde lhe vinha toda a vitalidade». Este inesperado elogio à vida é timbre dos melhores.
Ernesto Rodrigues

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13 janeiro 2014

Evocação de Afonso Praça

Câmara Municipal de Vila Real
Grémio Literário Vila-Realense

Grémio Literário Vila-Realense

    Convite


O Presidente da Câmara Municipal de Vila Real, Eng.º Rui Jorge Cordeiro Gonçalves dos Santos, tem o gosto de convidar V. Ex.ª e Exm.ª Família a participar na Evocação de Afonso Praça, jornalista, cronista e ficcionista, por ocasião do 75.º aniversário do seu nascimento.
A sessão terá lugar no Grémio Literário Vila-Realense, no dia 13 de Janeiro de 2014, pelas 21h30.
Na mesma ocasião, será apresentado o Programa de Actividades do Grémio Literário Vila-Realense para 2014.

Los Carochos

Descarregue a revista em PDF :http://www.academiaibericamascara.org/images/carochos.pdf
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11 janeiro 2014

Histórias que o Povo Tece - Contos do Marão,de M. Hercília Agarez

O título e o subtítulo desta colectânea apontam para o conteúdo dos contos que a constituem. Com efeito, privilegiou-se a ruralidade sobre a urbanidade, diga ela respeito à geografia física ou humana da região de Trás-os-Montes nos tempos em que imperavam a pobreza e a exploração. Pretende-se, com as efabulações que se esperam verosímeis, preservar, através da escrita criativa, uma identidade ameaçada e a desmoronar-se irreversivelmente. Protagonizam-nas gentes humildes, social e economicamente desfavorecidas, mas ricas em força de carácter, arreigamento às versas onde nasceram, espírito solidário, teimosia na manutenção de costumes e tradições, traços idiossincráticos coroados com a atávica e proverbial hospitalidade do – Entre Quem É, em que ninguém lhes leva a palma.



MARIA HERCÍLIA AGAREZ de Campos Marques nasceu em Vila Real em 1944. É professora aposentada do ensino secundário. É autora dos livros A Brincar que o Digas (crónicas) 2001, Miguel Torga: a Força das Raízes (ensaio) 2007, Histórias que o Povo Tece - Contos do Marão (2011) e co-autora da Antologia de A.M. Pires Cabral Aqui e Agora Assumir o Nordeste (2011). Está representada em várias publicações dos Serviços Municipais de Cultura de Vila Real – Revista Tellus , Histórias Tiradas da Gaveta, Pequeno Cancioneiro de Natal, Vila Real Histórias ao Café. Tem artigos publicados em inúmeras revistas culturais. Está representada em A Terra de Duas Línguas – Antologia de Autores Trasmontanos, 2011 e Uma Longa Viagem com Torga, de João Céu e Silva, 2007 (entrevista). Está representada com o título A Tia Ana Mocha e o Euro, A Terra de Duas Línguas II - Antologia de Autores Transmontanos - coordenada por Ernesto RODRIGUES e Amadeu FERREIRA, editor: Lema d’Origem Editora, Porto, 2013, p. 245-250. É estudiosa dos escritores Camilo Castelo Branco, João de Araújo Correia, Miguel Torga e Luísa Dacosta. Foi, de 1999 a 2011, colaboradora permanente do Jornal Notícias de Vila Real. É membro da direcção da Tertúlia João de Araújo Correia (Régua) e da Academia de Letras de Trás-os-Montes (Bragança). É sócia da Associação Portuguesa de Escritores.

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UM TIRO NA BRUMA - Manuel Cardoso

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10 janeiro 2014

Maria Hercília Agarez






“Trocas e Baldrocas ou com a natureza não se brinca” uma história de A. M. Pires Cabral com ilustrações de Paulo Araújo

Com a natureza não se brinca...

O Parque Natural de Montesinho recorta-se em quadrilátero no alto do Nordeste Transmontano, abarcando a parte setentrional dos Concelhos de Bragança e Vinhais, fazendo fronteira a nascente, norte e poente com Espanha. “Trocas e Baldrocas ou com a natureza não se brinca” é o título do livro que A. M. Pires Cabral e Paulo Araújo, em conjunto, fizeram para homenagear este local onde os bosques e clareiras de matos e cursos de água são refúgio dos bichos, que calcorreiam o território.
O mítico lobo aqui é real. O veado, o corço, o javali, a marta, o gato-bravo , a gineta, a lontra, entre muitos outros, também têm lá domicílio. Montesinho território sob o signo do verde, mas com uma paleta mais aberta onde cabem as letras de todos os que sonham a salvaguarda dos tesouros que a Natureza nele exuberantemente ostenta, são terras carregadas de História à espera que vão imortalizando a na sua aparência a verde-esperança. «”Trocas e Baldrocas ou com a Natureza não se Brinca” é uma bela história infantil, tendo animais como personagens, mas que protagonizam comportamentos e traços de personalidade, típicos dos humanos. Neste aspecto, não difere, portanto de muitas outras história infantis, que preenchem as prateleiras de todas as bibliotecas escolares. Porque razão merece então, este livro, uma atenção especial. Bem, na verdade há nele algumas especificidades que o tornam mais apetecível à leitura.
A primeira é o facto de esta história ser ilustrada por um ilustrador nascido no nosso concelho, chamado Paulo Araújo, que frequentou, na sua adolescência, a nossa escola secundária. A segunda é o facto de o seu autor, A. M. Pires Cabral ser natural do nosso distrito e ser professor do ensino secundário. A terceira e não menos importante é que o ambiente em que se desenrola esta história é o Parque Natural de Montesinho, situado em Trás-os-Montes, o que a torna mais familiar para nós, que vivemos nesta região. Digamos que a “moral da história” deste livro apela ao respeito pelo ambiente natural, que é na realidade, o nosso ambiente. Este livro, que foi o resultado de um projecto de trabalho concebido e coordenado pela Direcção Regional da Cultura do Norte merece, com certeza, um lugar especial em qualquer lista de prioridades de leitura.» Sugestão de leitura do professor Albertino Sousa, blogue O rato da biblioteca

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08 janeiro 2014

BOM ANO

Escaparate é a montra dos autores transmontanos, publicados e a publicar, bem como de outros autores, não transmontanos, mas cuja temática  releve Trás-os-Montes, incluindo o Alto Douro. Trata-se de registar e divulgar o nosso património imaterial e reafirmar a nossa identidade, alicerçada em duas línguas: o portugês o o mirandês.

Scaparate ye la muostra d’outores strasmuntanos, ya publicados e que bamos a publicar, i tamien outros outores, que nun seian strasmuntanos, mas que alhebantan Trás-ls-Montes i tamien Alto Douro. La ideia ye registrar i amostrar l nuosso património eimatrial i scabar fondo la nuossa eidentidade, afinconada an dues lhenguas: l portués i l mirandés.