28 janeiro 2013

O IMPREVISTO ACONTECE



Com a realidade jogamos ao faz de conta

De súbito, forte ventania, como surgida do nada, abateu-se nos plátanos que margeiam, pela esquerda, a via pública fez tombar no asfalto milhões de folhas que resistiam à morte inevitável e com elas encetou algo semelhante a um bailado, progredindo em círculos, e avançou até se perder de vista bem lá no extremo da rua. Em simultâneo, o céu, até então de um cinzento pacífico, escureceu antecipando a noite e prenunciando temporal. Caíram as primeiras gotas de chuva, finas e espaçadas antes, mais constantes a seguir, obrigando os transeuntes a protegerem-se com guarda-chuvas ou a correrem em busca de um abrigo.
Só então me apercebi de que não trouxera qualquer resguardo, remédio seria vencer aqueles dois hectómetros e meio com a minha neta de sete anos em corrida ao faz de conta. Duzentos e cinquenta metros para lá, outro tanto aquando do regresso. “E se, entretanto, a chuva tiver virado temporal?” questão recorrente em circunstâncias tais que também nesse momento me assalta, me tira a paz de espírito e perdura nessa hora e meia de permanência no recinto. Quem vai chegando não parece estar muito incomodado com o que acontece no exterior. Bom sinal! A preocupação decresce a um nível mais baixo. Mesmo sem sombreiro – curioso como, na aldeia, as pessoas resumiam com tal designação o objeto que podia resguardá-las tanto da chuva como do sol embora não seja adequado no primeiro caso preferindo o nome derivado ao composto talvez a pensar que, com ele cobertos, de certa maneira ficamos a uma sombra protetora – estamos à vontade, a minha neta leva um casaco que, depois de entrar no automóvel, lhe retiro sem que da sua falta advenha desconforto, basta ligar o ar condicionado.
Agora é noite fechada, conjugaram-se os humores do tempo e a precisão da meteorologia. Boa noite! Desapareceu o motivo da ansiedade que precede esses momentos de indefinição característicos do lusco-fusco. Aí pode começar o mistério que sempre vem associado ao período de treva. Em tempo não muito distante, a ausência de luz natural determinava muito mais do que a separação entre o dia e a noite, o trabalho e o repouso, a certeza e a dúvida, o movimento e a imobilidade, o balanço do dia que termina e a projeção do dia seguinte: o dia era associado à vida, a noite era o fechar dos olhos do dia, a ausência de luz natural, a morte. Receava-se a noite quase como se temia a morte, o sono era uma espécie de vida suspensa, entregue nas mãos de Deus, a morte era o descanso final, o não retorno. A convicção de que haveria esse retorno eis o que justifica o “quase” que alentava quem vivo era e confiava no Supremo Juiz que tinha o poder decisório sobre a nossa existência. O receio era fortalecido pela fraca iluminação que permitia alguma atividade no período entre o regresso a casa e a disposição dos corpos para o repouso. Candeias, candeeiros de mesa e lampiões a petróleo (querosene para os brasileiros), protegidos do vento por manga de vidro, bruxuleavam a guiar os passos naquele lapso de tempo, os primeiros dentro e o último fora de casa. Quando surgiram os “petromax”, que projetavam uma luz muito mais intensa e clara, o ambiente transformava-se, mudava a disposição das pessoas nos espaços circundantes. “Parece que é de dia!” - exclamavam. A eletrificação das casas também contribuiu para esbater a distinção entre o dia e a noite além da comodidade que trouxe, bastava “carregar no garabito” como dizia o Bebé, um pobre de espírito que fazia recados, transportava pequenas cargas e só pedia por retribuição que o deixassem pressionar o interruptor, prazer supremo, que outros não conhecia.
Bem pode dizer-se que, ao terminar a primeira metade do século XX, a vida era, ainda, a preto e branco. Na aldeia, os homens vestiam pardo ou roupa exterior de tonalidade baça, na cidade já o pardo fora abolido mas não a modesta variedade dos trajes, o luto obrigava homens e mulheres a vestir de negro durante um ano ou mais, as viúvas traziam a morte com elas para o resto dos seus dias, o que distinguia os eclesiásticos era o negro das batinas que usavam no dia a dia e nos atos religiosos, o escuro era sinónimo de castigo para as tolices das crianças: “ se continuas a fazer perrice, vais para o quarto escuro.” Por contraste, brancos eram os lençóis em camas de gente remediada ou rica; as toalhas que revestiam altares e mesas de quase todas as famílias em dias de festa, diariamente para as mais abonadas; as roupas de batismo e a toalha que limpava a cabecinha dos neófitos após o derramamento da água sacramental; as camisas dos homens nos domingos e dias de festa; meias e agasalhos para todos no tempo frio de outono e de inverno que pressupunha cultivo do linho ou posse de ovelhas porque dinheiro nem sempre havia para comprar novelos de lã.
O toque dos sinos às Ave-Marias quando clareava era um grito de alegria e agradecimento a Deus por mais um dia de vida, o mesmo toque às Trindades tão logo o sol se despedia e as primeiras sombras já adormentavam a Natureza, conquanto representasse alívio da labuta diária e chamada ao reagrupamento familiar, vinha marcado por uma indefinível emoção entre o regozijo da convivência e a pena da despedida. O simbolismo da noite em relação à morte trazia consigo o desejo de distanciamento de tudo quanto lembrasse o momento fatal: na igreja enquanto lugar onde eram celebradas as exéquias, se expunham os mortos antes da encomendação e, durante séculos, se enterraram os corpos; o cemitério, espaço onde todos os moradores tinham familiares sepultados e destino certo dos que ainda conservavam o precioso dom da vida; a igreja e o cemitério em conjunto, por isso duplamente atemorizante, a presença, materialmente silenciosa, de Deus na Sua morada e a ausência dos que nos pertenceram e se tornaram pó, a perspetiva para nós tão certa quanto aterrorizadora, a certeza da morte e o temor, que não gostamos de admitir, de, um dia, ela nos vir buscar. Cito Gonçalo M. Tavares em crónica publicada no número 1025 da revista Visão: o medo da morte e o medo dos mortos. Os relatos sobre esse temor diante do cadáver, esse não querer tocar. Talvez uma lembrança inconsciente da peste negra. Aí, o morto matava: tocar na morte era correr um risco (…) Hoje ainda, no século XXI, a lógica, a medicina e a racionalidade podem dizer-nos que não, que é absurdo, mas o inconsciente ali está…”
Na minha aldeia, o cemitério ficava ao lado da igreja, cercados pelo mesmo muro. À noite, as pessoas transitavam pelos caminhos contíguos de coração apertado tentando desviar os olhos desse lado, ainda que a morada divina devesse merecer-nos toda a confiança e do campo santo nada tivéssemos a recear porque os mortos não voltam. António Lobo Antunes, numa entrevista concedida à rádio TSF por ocasião da “Escritaria”, em Outubro passado, em sua homenagem, referia-se a alguém que nunca ia ao cemitério “porque nesses lugares não estava ninguém”. “Então onde estão os mortos?” – perguntavam-lhe. “Andam por aí. – explicava essa pessoa – falam connosco, dão-nos as suas opiniões, fazem-nos companhia, sentimo-las ao nosso lado.” E Lobo Antunes acrescentava: “Tinha razão. Eu ouço-os, distingo-lhes as vozes, compreendo o que me dizem…” Houve uma pessoa que nunca manifestou receio de dirigir-se à igreja a qualquer hora da noite como do dia. Foi zeladora do Santíssimo Sacramento durante alguns anos. Uma lâmpada, suspensa do teto e permanentemente acesa, simbolizava a eternidade de Deus e da sua presença entre os homens. O depósito de azeite alimentava uma torcida cujo pavio teria que ser substituído de quando em quando, presumo que de quatro em quatro horas. Essa era a principal tarefa da zeladora: nunca deixar que a luz se extinguisse porque simbolizava a fé das pessoas da comunidade e a sua homenagem a Jesus Sacramentado. No outono e no inverno anoitece mais cedo mas, na claridade do dia ou na escuridão da noite, lá ia ela renovar o pavio da lâmpada. Essa mulher, a pessoa mais corajosa que conheci, era a minha mãe.
                                                                                                                                             Nuno Afonso

Publicado in “A Voz de Ermesinde” a 30 de novembro de 2012

Sem comentários: