30 dezembro 2013

Bibliografia do Distrito de Bragança (Série Escritores – Jornalistas – Artistas),por Hirondino Fernandes


I VOLUME EM PDF:
http://www.youblisher.com/p/556774-Bibliografia-do-Distrito-de-Braganca-Volume-I/
II VOLUME EM PDF:
III VOLUME EM PDF:


Ernesto Rodrigues

Na hora em que são editados os volumes III e IV da BdB − Bibliografia do Distrito de Bragança (Série Escritores – Jornalistas – Artistas), cumpre celebrar este projecto de Hirondino da Paixão Fernandes empreendido já nos anos 60, no Mensageiro de Bragança, e que teve em António Jorge Nunes, presidente da Câmara Municipal, o necessário apoio, acertado e justo. Farei, antes, breve historial da dicionarística literária em Portugal, de modo a enquadrar a BdB e perceber a importância de iniciativa tão fecunda quão honrosa para a Cultura do distrito.
Vidas, linhagens e genealogias, bibliografias, catálogos e relações de livrarias ou bibliotecas, são imprescindíveis na investigação: por mais enfadonhos, trazem sempre algo de fresco e útil. Os tenteios inaugurais devida e obra vêm numa colecção manuscrita de Manuel Severim de Faria,Compendio de Varias Obras de Authores Portugueses (1613), e na vida de Camões, por Pedro de Mariz (1613), sendo Camões núcleo reflexivo desde Manuel de Lira (1591). Mas o século XVII – que também é o da Imprensa periódica, cujos dicionários interessam à literatura, e do impressionismo crítico no Hospital das Letras (1657; editado em 1721), após duplo esforço canonizador de Jacinto Cordeiro, Elogio de Poetas Lusitanos, e António de Sousa de Macedo, Flores de España..., ambos de 1631 – reserva dois monumentos singulares: a Biblioteca de João Franco Barreto = Biblioteca / Lusitana / Autores / Portuguesez / 1.ª Parte, etc., e Joanne [João] Soares de Brito, Theatrum Lusitaniae Litterarium [...], 1655. A Bibliotheca… consta de cinco volumes, e um sexto de Índices (de nomes, sobrenomes, pátrias dos autores), no total de 1180 páginas. Se a introdução data de 27 de Janeiro de 1648, a obra estende-se para lá de 1656. Cerca de mil autores é uma soma respeitável; este princípio de todos reunir, até os que versaram Direito Civil e Canónico, inspirará Diogo Barbosa Machado, Inocêncio Francisco da Silva… e Hirondino Fernandes. Outra preciosidade é o manuscrito Cathalogo dos Auctores Portugueses, de Manuel de Faria e Sousa (BN, COD. 361). Concomitantemente, urge compulsar os índices inquisitoriais quinhentistas e oIndex Auctorum Damnatae Memoriae (1624). No conspecto europeu, consulte-se a Bibliotheca Scriptorum Societatis Jesu […], de Pedro de Rivadeneyra, 1643.


27 dezembro 2013

Língua Charra – Regionalismos de Trás os Montes e Alto Douro (obra em 2 volumes) Autor: A. M. Pires Cabral


 Sinopse: Com as suas quase 23 mil entradas (muitas delas desdobrando-se em múltiplas acepções), esta é sem dúvida a mais completa recolha de vocabulário popular trasmontano e alto-duriense publicada até hoje.
Língua Charra – Regionalismos de Trás-os-Montes e Alto Douro é, por um lado, um apanhado de todas as obras congéneres a que o autor teve acesso, desde o labor pioneiro dos filólogos da Revista Lusitana, até às compilações em livro de Adamir Dias / Manuela Tender; Jorge Golias / Jorge Lage / João Rocha / Hélder Rodrigues; Jorge Lage; Rui Guimarães; e Vítor Fernando Barros, entre outros, a quem se presta aqui homenagem. Por outro lado, tem uma base sólida na memória e experiência do autor, nascido em meio rural e desde sempre apaixonado pela linguagem popular.
Neste dicionário, questiona-se a etimologia, faz-se relacionação intervocabular e adicionam-se elementos e comentários que permitem uma melhor compreensão. Para além disso, ilustram-se os vocábulos com muitas centenas de abonações, retiradas quer de obras literárias, quer do adagiário, cancioneiro, devocionário e romanceiro populares.

A. M. Pires Cabral nasceu em Chacim, Macedo de Cavaleiros, em 1941. A sua actividade literária estende-se pelas áreas da poesia, ficção, teatro, crónica, antologia e ensaio. Estreou-se em 1974 com Algures a Nordeste, poesia, e tem publicadas para cima de 50 obras.
Recebeu os seguintes prémios literários: Círculo de Leitores 1983, com Sancirilo; Prémio D. Dinis 2006, com Douro: Pizzicato e Chula eQue Comboio é este; Grande Prémio de Literatura DST 2008, com O Cónego; Prémio de Poesia Luís Miguel Nava 2009, com As têmporas da cinza; Prémio de Poesia do PEN Clube 2009, com Arado; e Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco APE / C. M. de Vila Nova de Famalicão 2010, com O porco de Erimanto.
Homem de fundas raízes rurais, de que muito se orgulha e que muito valoriza, tem procurado dar-lhes voz em numerosos momentos da sua obra, de que uma parte muito significativa tem como referente a identidade cultural trasmontana. É o caso deste Língua Charra – Regionalismos de Trás-os-Montes e Alto Douro, glossário que vinha paulatinamente preparando há cerca de três décadas.


Prefácio

Forma natural de comunicação, a linguagem espelha grupos, regiões, países, enlaçando distâncias ou inscrevendo tempos nas mais pequenas unidades de sentido. Comunidades fora do seu húmus, de África às Américas e à emigração europeia, revêem-se no leite expressivo de um vocabulário ancorado na infância; e, assim alimentadas, as almas fixam o transitório das suas vidas em dispositivos seculares abertos à inventiva, seja a variação de um romanceiro, a leveza de quadras soltas, um adagiário aqui e ali peculiar.
A História e a Geografia criaram nichos característicos na metade nordeste, que atraem etnógrafos desde finais de Oitocentos, antes de os etnólogos e seus filhos antropólogos rastrearem do Barroso a Rio de Onor. Pudéramos recuar a versos de António Ferreira, que veio casar a Lamas de Orelhão, Mirandela; a Diogo de Teive e Manuel Severim de Faria, demorando-se em Miranda do Douro; a D. Frei Bartolomeu dos Mártires, nas alturas barrosãs. Todos eles se espantaram com populações resistentes e conservadoras. Este adjectivo ganharia foros de virtude. A vaga mais coerente de um fundo interesse por este solo, seus modos de vida, suas músicas e falares, veio com o médico e poeta episódico José Leite de Vasconcelos, amigo de Trindade Coelho, o qual, além de fautor do Mirandês, acrescentou aos vários ângulos de uma investigação notável, em parte inédita, uma genuína paixão pelo nosso teatro e romances populares, bem como pelo cancioneiro, toponímia e colheita de pepitas vocabulares analisadas na sua Revista Lusitana. Assim, estudiosos maiores ‒ Orlando Ribeiro, Jorge Dias, Michel Giacometti ‒ navegaram por estes montes, acrescentados de linguistas como Paiva Boléo, Lindley Cintra e colaboradores. Emergiu escola autóctone em cada uma dessas disciplinas, de que saíram, até recentes teses na Sorbonne e demais universidades, contribuições indispensáveis de Francisco Manuel Alves e discípulos, não todos ministros de Deus, caso de Hirondino Fernandes (ministro de homens, paciência de santo). Antes da moderna onda de dicionaristas de falares locais, fora, todavia, o padre Joaquim Manuel Rebelo a pegar na tocha baçaliana de glossário regionalista. Exceptuamos, para o geral da língua, dicionário e consultório linguístico na Imprensa de Augusto Moreno ou prontuário de Edite Estrela; para o Rionorês, Daniel José Rodrigues; para o Mirandês, o dicionário Português-Mirandês, em curso, de Amadeu Ferreira / José Pedro Ferreira.
Ora, desde há décadas ‒ que são uma vida inteira para quem nunca perdeu o contacto com as raízes ‒, A. M. Pires Cabral vinha construindo estoutra catedral de palavras, óbolo de ouvinte, leitor e celebrante. Melhor, concelebrante, onde as vozes de vivos e redivivos vêm coroadas pelas abonações de João de Araújo Correia e Camilo Castelo Branco, que se fez em Vila Real. Este certificado de origem,em contexto, deveria ser obrigatório em trabalhos afins. No mínimo, já aponta para um quadro literário regional, que motivos convergentes universalizam, depois.
Essa caução serve à morfologia facetada de inúmeros termos, às inesperadas ocorrências, tal a variedade fonológica. Nem sempre, claro; como nem todas as acepções exigem custódia das autoridades pós-Moraes (aqui, Morais), percebendo-se, então, a capacidade definitória do dicionarista, que veio publicitando excertos ao longo dos anos e afinando metodologias. Olhámos a larga amostra de s. [substantivo], na dúvida se não devera constar m. [masculino] ou f. [feminino]. Intuitivamente, percebe-se o género, e mais facilmente o número, singular ou plural.
Neste terreno movediço, explicações que parecem evidentes ficam interrogadas, sugeridas, moduladas. Oscila-se entre a solução e a proposta etimológica. Ajuda o recurso inter-idiomático, sobretudo, com o muito presente Galego. Mas a sensação de fronteira é mais visível numa das principais dificuldades: fixar as sibilantes b / v. Outra é dar conta de metamorfoses inauditas, convocando terminologia da velha gramática, em que relevamos os fenómenos de queda ou acrescentos fonemáticas ou silábicos, e mais estes (prótese, epêntese, paragoge). Sem a representação fonética, que exigiria outra vida e várias equipas, resolve-se o drama palatal, a variável ditongação, o modo de dizer, cujo esforço interpretativo cabe ao leitor-adivinho, se não for íncola verdadeiro. Terceira vida pediria a datação.
Não vá sem assinalar a experiência de autor, chamada a terreiro, para compor procissão de razões. É maneira agradável dos pioneiros, que assim as acreditam, entre a Gramática da Linguagem Portuguesa (1536), de Fernão de Oliveira, e a Origem da Língua Portuguesa (1606), de Duarte Nunes de Leão. Este investimento do sujeito não deixa de beliscar um paradigma entretanto cristalizado.
Enfim (para encurtar, mas não os méritos), essa virtuosa presença dá azo a micro-histórias deliciosas, contagiantes, se pousarmos sobre, por exemplo, ABADE, a que a memória de cada um acrescenta um ponto, ou fio, ou botão, à batina desapertada; e, se atentarmos no ABAFADOR, sucede minicurso de história cultural, com que mais enriquecido sai o turista desprevenido.
A vantagem para professores e outros especialistas é inegável; para escritores, então, é mina inesgotável, além de desafio. Entendidas referências com apoio desta chave-mestra, a mensagem tornar-se-á mais expressiva de um universo regional (já não provincial) que vai para lá de si. Se se quer mostrar particular, desde o uso de arcaísmo à compleição moderna, só o consegue por arte de uma linguagem que inunda estas páginas.
Alicerce e incompletude, vademecum e lembrete, desvio e familiaridade, este balanço de mil tarefas conjugadas ‒ e também de uma vida em palavras ‒ responde às lamentáveis dicionarizações de língua e fala ‘charra’ (como se fosse água-chilra), trazendo lustre de dignidade ao que entranhadamente somos. Sério, fecundo e dadivoso, este opus magnum de A. M. Pires Cabral pede menagem e honra Editor.

Ernesto Rodrigues
Academia de Letras de Trás-os-Montes
Universidade de Lisboa                           

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12 dezembro 2013

Nelson Mandela: Modesto Preito a Madiba


                          Nelson Mandela: Modesto Preito a Madiba

                                       Maria Manuela Araújo

            Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
 

              «In my language there is a saying: ‘Ndiwelimilambo enamagama’ (‘I have crossed famous rivers’).»[1]

                                                                                                        Nelson Mandela

Revisitar a autobiografia de Nelson Mandela, Long Walk To Freedom,[2]afigura‑se, no presente momento, um pertinente tributo à vida de Madiba. A recensão crítica em curso escolheu como linha orientadora de análise o ditado xhosa acima transcrito, citado e escolhido por Mandela como tema líder, organizador, da sua narrativa de vida.    

A longa viagem discursiva do ditado xhosa, reinterpretado no texto autobiográfico de Nelson Mandela, tem como pontos de partida e chegada dois sistemas semióticos dissemelhantes, embora coexistentes, cruzando diferentes tempos e espaços. Da oralidade para a escrita, de tempos antigos para a modernidade, do campo para a cidade, a actualização moderna do ditado xhosa é um sintoma visível da «crioulização»[3]entre literaturas oral e escrita, em benéfica convivência, mas em que esta última, menos sacralizada, ganha, no entanto, um tom público de contestação. Mandela, ao escrever o enunciado falado, ao fazê-lo falar noutra instituição linguística, redireccionando, na escrita, os ritmos e vectores semânticos da fala primeira, fez uma associação simbiótica que aponta para a «reoralização da literatura»[4],na cultura contemporânea de países onde a escrita caminha, a par e passo, com a oralidade.

Nelson Mandela recupera o ditado xhosa da irreversibilidade do tempo, fixando em código grafemático o que vive na sua memória e na memória de muitos dos seus leitores, introduzindo na sua realização escrita as variações que o seu cursus vivendi lhe propôs, ou seja, à luz do ditado xhosa o eu reordena a sua existência, à medida que organiza a escrita memorial da sua vida, liderada pelo conhecido motivo verbal. O tema estruturador do ditado xhosa é extrapolado dentro do plano de significação conotativo e reinventado por analogia com o seu sentido literal, que implica o esforço humano desenvolvido na luta que é a travessia de um rio, ou seja, a força e a coragem de quem ousa opor-se ao movimento transverso do seu caudal. No contexto linguístico em causa, o elemento natural rio pode simbolizar o fluido vital, individual e colectivo; atravessá‑lo significa vencer uma etapa de vida, dar um passo em frente, não só em termos de conhecimento, mas também de libertação social e política.

O ditado xhosa que o texto de Mandela cita, descodifica e assimila, afigura‑se plenamente investido da semântica frasal acima verbalizada, recriando a componente gnoseológica que lhe é intrínseca, mas introduzindo outra, uma nova vertente política: viver é, não só percorrer etapas de conhecimento, mas também conhecer para resistir à opressão do sistema ideológico vigente, e em cuja persistência de luta se consubstancia o percurso político opositor, ou seja, o Longo Caminho para a Liberdade. Desta forma, o eu autoral se estabelece como elo contemporâneo da antiga cadeia de transmissão oral, num gesto verbal inovador, ainda que de compromisso com a tradição oral, perpetuada no texto de forma criativa, mas sem quebra de coesão semântica, uma vez que a relação dialógica em causa assume contornos explícitos de imitação voluntária declarada. Por outro lado, as duas enunciações de eu estabelecem, entre si, uma relação simétrica de identificação, quer na sua forma de locução, quer a nível do seu conteúdo semântico, confluência discursiva que prova uma relação de identidade entre os espaços humanos que aqui se entrecruzam, pela partilha cultural de que os textos em causa se constituem testemunhos, embora o texto de Mandela comprove uma enorme transformação em si operada, movido pela sede de instrução, de mundivivência e de libertação dos povos oprimidos do seu país.

            Nelson Mandela, por circunstâncias penalizadoras para o pai, chefe thembu acusado de insubordinação pelo magistrado local, é obrigado a abandonar a vila de Mvezo, terra natal localizada nas margens do rio Mbashe, e a fixar-se na vila de Qunu, ambas situadas no Transkei. Com a morte de seu pai, viu-se na contingência de deixar Qunu, levando consigo o que considerou ser a recordação dos dias mais felizes da sua vida. Assim, sofre na infância o primeiro abalo existencial, perdendo irrecuperavelmente o centro, o lar familiar: «[...]these three huts that I associated with all my happiness, with life itself, [...]» (M I, p. 21).

Em consequência, faz com a mãe a amargurada e silenciosa viagem a pé para Mqhekezweni, o Grande Lugar, capital de Thembuland, onde é confiado ao chefe thembu, Jongintaba Dalindyebo, que iria ser o seu guardião e benfeitor durante o período previsível de dez anos. À chegada, embora experimente uma sensação momentânea de deslumbramento com a riqueza e a ordem da Grande Casa do regente, quando vê Jongintaba e o seu tribunal, composto por vinte anciãos tribais à frente da casa principal, é invadido, novamente, por um sentimento de desenraizamento e impotência, perante o destino que a situação familiar lhe impunha: «In that moment of beholding Jongintaba and his court I felt like a sapling pulled root and branch from the earth and flung into the centre of a stream whose strong current I could not resist.» (M I, p. 23). Apesar de ter frequentado a escola anteriormente, é em Mqhekezweni que os grandes tradicionalistas lhe ensinam a verdadeira história africana, contada oralmente por reconhecidas figuras que vinham de longe resolver disputas e julgar processos, como o Chefe Joyi (M I, pp. 32, 33) que, apesar de muito velho, era exímio na arte da pantomima, com a qual fazia acompanhar o desenrolar das suas histórias.

Embora Mandela, em Mqhekezweni, tivesse vivido, antecipadamente, a sensação ingénua de rapaz que vem da aldeia para a grande cidade, por esta se afigurar, a seus olhos, mais sofisticada do que Qunu, o certo é que ele ainda não tinha atravessado o primeiro “rio famoso” da sua vida: «I had never crossed that river, and I knew little or nothing of the world beyond it, a world that beckoned me that day.» (M I, p. 43). Mandela refere-se ao rio Mbashe, que adquiriu um valor excepcional para si, porque fazia parte do cenário iniciático onde tinha decorrido o rito de puberdade da sua geração. O rio Mbashe é considerado o primeiro rio importante da sua vida, porque nele se purificou antes da corajosa cerimónia da circuncisão, desenrolada nas suas margens. O rio onde o neófito, segundo a tradição, acede a um tempo sagrado primordial, purificador, simboliza para si o testemunho do encantador mundo perdido da infância e da adolescência, dizendo pelas suas palavras «[...]the world of sweet and irresponsible days at Qunu and Mqhekezweni.» (M I, p. 44). A travessia do rio Mbashe equivale ao primeiro passo simbólico em direcção à modernidade. O destino que Jongintaba lhe reservava era ser conselheiro de Sabata e, para tal, era necessário receber instrução. Por essa razão, Mandela abandona o lar que o adoptou, atravessa o rio Mbashe e entra, como aluno interno, no Instituto Clarkebury, simultaneamente Escola Secundária, Escola de Formação de Professores e Técnico‑Profissional, com a particularidade de o seu reitor, o Reverendo Harris, ser considerado pelo seu regente como «[...]a white Thembu» (M I, p. 46), assim como ensinar os futuros governantes a ser cristãos, e governantes tradicionais (M I, p. 46).

Clarkebury, sentido como um espaço mais grandioso do que Mqhekezweni, foi o primeiro sítio ocidental onde Mandela viveu, o primeiro novo mundo não africano, com regras desconhecidas e onde a sua ilustre ascendência de Ngubengcuka foi inteiramente ignorada, pelo que rapidamente compreendeu que o seu caminho tinha de ser trilhado com base nas suas qualidades individuais, e não na sua linhagem. Considera-se, assim, inaugurado o longo percurso que vai culminar em Joanesburgo, o centro cosmopolita onde cresceu o projecto nacionalista sul-africano, o mundo dos ideais e debates políticos clandestinos, iniciados em Witwatersrand, a grande cidade moderna que viu nascer «a Freedom Fighter»[5],o qual foi ascendendo sem nunca abdicar das suas raízes culturais, defendidas, mas redefinidas no decurso dos vários contextos políticos que vai atravessando.

Da tradição para a modernidade, do saber ancestral para as aprendizagens, vivencial, académica e política do hostil mundo do progresso, a figura emblemática de Mandela personifica a modernidade africana, um outro modelo de civilização, contestatário da própria tradição africana, embora culturalmente inclusivo, mas não alienado pelo Ocidente, porque foi mantendo vivo o diálogo com as matrizes identitárias africanas, as quais sempre dignificou, e das quais revela orgulhar-se.

O eu autobiográfico em causa, no acto rememorativo da escrita que reconstitui o seu regresso de Joanesburgo a Mqhekezweni, por ocasião da morte do seu regente, alude às contrariedades passadas entre ambos, motivadas pela desobediência à tradição, mencionando o tempo de retrospecção e redescoberta que viveu por essa altura. O regresso ao “Grande Lugar” desperta em si uma longa reflexão existencial, em que se auto-avalia e reequaciona o sentido da sua vida, colocando em evidência o valor de um passado que considera adverso, e no qual distingue duas etapas, aludindo a um futuro igualmente indiciador de várias fases atribuladas: «I had, since 1934, crossed many important rivers in my own land: the Mbashe and the Great Kei, on my way to Healdtown; and the Orange and the Vaal, on my way to Johannesburg. But I had many rivers yet to cross.» (M I, pp. 121, 122).

Assim, o sujeito de enunciação estabelece o ano de 1934 como marco cronológico de relevo, início de mudança, afastamento do seu mundo primeiro, da infância, em que pensar e falar o cosmos na língua-mãe xhosa se constituiu como princípio edificador de si e do universo envolvente, equilíbrio inicial gerido por uma ordem sagrada, díspar da ordem racional ocidental, que escolheu conhecer.

A primeira etapa do seu percurso, iniciado em 1934, corresponde ao começo de um processo de integração do eu no mundo da modernidade ocidental, construído em contexto colonialista. A aprendizagem da literacia, principal instrumento de afirmação social, move o sujeito em direcção à escola. Nelson Mandela deixa o mundo tradicional rural onde tinha nascido e, após os rituais de circuncisão, dispõe-se a atravessar o rio Mbashe, em 1934, em direcção ao Colégio Interno de Clarkebury, localizado numa missão metodista, conhecida como a instituição de ensino mais avançada para os africanos negros de Thembuland.

Em 1937, Mandela, com dezanove anos, para chegar a Healdtown, atravessa o rio Grand Kei e entra no Colégio Wesleyan, em Fort Beaufort, onde, pelas suas palavras, lhes era criada a aspiração a serem «black Englishmen» (M I, p. 53). Contudo, a forma como relata a visita do poeta xhosa Krune Mqhavi à escola e o incidente simbólico da zagaia que bate no suporte do cortinado mostram uma consciência contrária à intenção do colégio, ao despertar no seu imaginário algo que considerou muito importante: « the clash between the culture of Africa and that of Europe. » (M I, p. 59).

Nelson Mandela continua a sua formação académica no Colégio Universitário de Fort Hare que, fundado em 1916, é considerado, até 1960, o único centro de ensino superior para negros na África do Sul. Revivendo o mérito de duas figuras proeminentes que o impressionaram, o professor Z.K.Matthews e o professor Jabavu, Mandela refere Fort Hare do seguinte modo: «Fort Hare was both home and incubator of some of the greatest African scholars the continent has ever known.» (M I, p. 64). Neste passo textual, menciona o facto de o professor Z.K. Matthews ter sido influenciado pela autobiografia de Booker T. Washington, Up from Slavery, acção que merece ser destacada, por apontar para a influência que os líderes afro‑americanos exerceram nos meios intelectuais africanos de orientação nacionalista. Do professor Jabavu, Mandela recorda os seus conhecimentos enciclopédicos, tanto na área da cultura europeia, como, especialmente, na área da cultura xhosa, tendo sido o presidente-fundador da Convenção Pan-africana, em 1936 (Cf. M I, p. 64).

Mandela, no segundo conturbado momento de vida, entra em conflito com dois sistemas convencionais que se opõem, mas que, de forma igual, sujeitam o indivíduo à sua cega obediência: em colisão com o mundo determinado pelo modelo civilizacional da modernidade ocidenal, mas também em antagonismo com o sistema tradicional regulador da sua cultura de berço, particularmente com a escolha de uma possível noiva, por parte do seu tutor, dentro da sua cultura de origem, mas à qual era totalmente alheio.

Assim, em Fort Hare, Mandela demite-se do Conselho Representativo dos Estudantes, o que correspondeu a uma diplomática expulsão do colégio. Em consequência, regressa a Mqhekezweni onde, de acordo com os princípios da sociedade tradicional xhosa, o seu regente lhe tinha escolhido uma noiva, a filha do padre thembu local. Mandela não consente, tendo este gesto de transgressão acentuado o seu drama de vida, pelo que se vê obrigado a fugir para Joanesburgo.

A caminho de Joanesburgo, atravessa então os rios Orange e Vaal, cursos hídricos que simbolicamente se constituem como obstáculos a quem se dirige, em fuga e à deriva, para o Norte. Joanesburgo corresponde a uma terceira longa etapa de vida, marcada por uma árdua luta de sobrevivência humana e ideológica. Nelson Mandela começa por trabalhar em Crown Mines, como guarda-nocturno. Em 1942, conclui a sua licenciatura, e em 1943 inscreve-se na Universidade de Witwatersrand, para fazer a parte académica necessária ao exercício do seu curso de Direito, tomando um contacto mais assíduo e profundo com a intelectualidade política, que o levou a aderir ao ANC.

O êxodo em busca da modernidade, ao abrir-lhe novos horizontes, cria-lhe, paralelamente, uma maior consciência do grau de dificuldade a ultrapassar para atingir os objectivos a que se tinha proposto, estado de amadurecimento que o leva a proferir, em Mqhekezweni, o ditado xhosa epigrafado, sobre o qual se disserta.

Deste modo, é a consciência política ganha em plena maturidade, em Joanesburgo, que explica o sentido da frase: « I had many rivers yet to cross. » (M I, p.122). Mandela mostra aperceber-se de que o percurso iniciado dentro do ANC, com as duas formas de luta planeadas, a fase da resistência passiva (de 1912 a 1952/3) e a fase da violência, a partir de 1953, iriam, de certeza, valer-lhe perseguições políticas várias, que haviam, mais tarde, de resultar em vinte e sete anos de prisão, dezoito dos quais no maior de todos os cárceres, Robben Island.

 A sua cela foi visitada pelo, então, senador Barack Obama, que quis ter a experiência de espreitar pelo postigo celular de Mandela: dois olhos já livres, que levaram o reconhecimento de Frederick Douglass, mesmo de Booker T. Washington, de W.E.B. Du Bois, mesmo de Garvey, do grande Martin Luther King e de muitos outros, africanos e afro‑americanos, os quais abriram e trilharam, nas matas, do Sul e do Norte, a bordo do underground railroad, caminhos para a liberdade, sempre sem atalhos, e por essa razão, foram e continuam a ser, difíceis e longos.    

 
Referências Bibliográficas:

Araújo, Maria Manuela. (2010). Diálogos Literários entre a África e os E.U.A. no Despertar dos Nacionalismos Africanos. Lisboa: Edições Colibri.

Mandela, Nelson. (2002). Long Walk to Freedom, vols. I e II. (1994). Great Britain: Abacus.

Silva, Vítor Manuel de Aguiar e. (2002). Teoria da Literatura. Coimbra: Livraria Almedina.

 


[1] O texto em itálico é um ditado xhosa, citado e traduzido na autobiografia de Nelson Mandela. Cf. Mandela, 2002, vol. I, p. 121.
[2] Mandela, 2002, vols. I e  II. As citações seguintes desta obra serão indicadas logo após a citação, no corpo do texto, com a sigla M, I ou II, de acordo com o volume citado, seguida do número de página, entre parênteses.
[3] O conceito reporta-se a Vítor Manuel de Aguiar e Silva. Ver Silva, 2002, p. 144.
[4] Idem.
[5] Alusivo ao título da Parte Três, «Birth of a Freedom Fighter». Cf. Mandela, 2002, vol. I, p. 133.

30 novembro 2013

«A Casa de Bragança» e «Do Movimento Operário e Outras Viagens»

No lançamento de A Casa de Bragança e Do Movimento Operário e Outras Viagens, na Livraria Ferin, em 27 de Novembro

Agradeço a presença de todos, desde jovens universitários a colegas deste ofício de trevas, que é a literatura, em que buscamos iluminar alguns caminhos; desde familiares a amigos, alguns de longa data, outros que vim fazendo na minha actividade crítica e editorial, no associativismo regional, na Academia de Letras de Trás-os-Montes, no Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Universidade de Lisboa. Permito-me salientar, por razões de idade e pelo que representa de sacrifício, os nomes de Eduardo Lourenço, Eugénio Lisboa e João Rui de Sousa.
Quis a Âncora Editora arriscar uma dupla neste dificultoso torneio do papel impresso, e logo, também, com poesia, integrando-me em colecção dirigida por Rogério Rodrigues: o provento será escasso, não a dívida com que fico para com Inês Figueiras e Sofia Ferreira de Lima. Já no romance, curou da edição Virgínia Caldeira, que conheço desde os idos de 80, quando ela trocava a Dom Quixote ‒ onde eu me estreava no romance, com A Serpente de Bronze (1989) ‒ pela Editorial Notícias, que editaria o meu segundo romance, Torre de Dona Chama (1994). Mais constante interlocutor era, todavia, António Baptista Lopes, que, já na Âncora, aceitou inesperada Antologia da Poesia Húngara (2002), uma das 20 espécies que dessa língua do diabo traduzi. Os nossos almoços, viagens, telefonemas e encontros dariam volume rico de impressões e boa disposição, na companhia de Teresa Martins Marques e Amadeu Ferreira.
Depois de, há dois anos, ter lançado o terceiro romance, O Romance do Gramático, na Livraria Bertrand, sabe-me bem descer à segunda mais antiga livraria nacional – inicialmente, Librairie Belge-Française −, fundada em 1840, e secundada pelo Cabinet de Lecture de Mlle Férin, na Rua do Carmo, família que se estendia à encadernação e à moda. Com efeito, O Mundo Elegante / Periodico Semanal, de Modas, Litteratura, Theatros, Bellas-Artes, dirigido por Camilo Castelo Branco no Porto, em 1858, propunha extratextos com toilettes de baile e passeio segundo as avisadas «Mmes Ferins». E ocorre-me ter antologiado, em Crónica Jornalística. Século XIX (2004), texto de Fialho de Almeida n’O Repórter, de Oliveira Martins, em 2-I-1888, intitulado “A Boa-Hora Cómica”, donde cito: «Subo a Rua Nova do Almada um tanto aborrecido – acabo de pagar uma enorme conta no livreiro e de ser apresentado ao orador que eu mais detesto, depois do cornetim. O dia é pardo, nuvens no alto, o vento a erguer da rua redemoinhos dum pó corrosivo à pele; e com um milhão de diabos!, não tenho hoje visto senão raparigas barbudas nos asfaltos! // Estas picuinhas todas irritam-me; e, como o Ferin não tem novidades, enfio pela espécie de saguão estreito, que a Câmara Municipal convencionou chamar o Largo da Boa-Hora.» Não é um dia fialhiano; o tribunal desertou, mas temos entre nós dignos magistrados; felizmente, a Ferin está cheia de novidades; e, se alguma barbuda existe, só se for em ministério nas proximidades. Grato, pois, aos editores e a esta velha casa.

Comecei a abandonar a crítica e o ensaísmo, a que dediquei demasiada vida. Editei oito títulos de ensaio e crítica; sou responsável por 35 volumes de autores como o Padre António Vieira, Herculano, António Pedro Lopes de Mendonça e o primeiro jornal socialista, vários Camilos, As Farpas completas de Ramalho, Júlio Dinis, Eça, os jornalistas Alves Correia e Raul Rêgo, Augusto Moreno poeta, José Marmelo e Silva, António José Saraiva. Pediram mais tempo a actualização do Dicionário de Literatura, de Jacinto do Prado Coelho, e as 1 064 páginas do clássico de um grande jurisconsulto, desembargador e procurador da Coroa, Tomé Pinheiro da Veiga e sua Fastigínia (1605), com que sonhei durante 23 anos. Se juntar capítulos em obras colectivas, actas, prefácios, revistas de circulação nacional e internacional, subo às 160 espécies, que é um terço dos artigos desde 1971. Desconto a cronística; não contabilizo o profissional do jornalismo que também fui. Ou seja: a necessidade e a Universidade desviaram-me… de mim. Silenciei sete peças de teatro; há contos novos, após A Flor e a Morte, de 1983; e, à atenção dos editores, oito romances à espera. O duplo lançamento de hoje significa viragem e reencontro comigo. Falarei, pois, destes frutos.  

Com Do Movimento Operário e Outras Viagens, sexto livro de versos, celebro 40 anos de vida literária. Estreei-me em 1973, andava no então 6.º ano do liceu, com um volume impresso nas oficinas franciscanas de Montariol, em Braga. Era chefe das máquinas frei Perdigão, que, em noite diluviana do mês de Maria, acolheu o noviço das letras, me banqueteou em mesa austera, levou aos granéis de Inconvencional (como se intitulava) e ofereceu generosa cela. Revimo-nos 33 anos depois. Eu estava na Feira do Livro e contava a Vergílio Alberto Vieira essa primeira ida a Braga, quando a Teresa impôs subida. Boleados, dirigi-me à portaria: «Frei Perdigão ainda é vivo?» Eis uma frase camiliana. Camiliano é o início do romance: «Eu tinha oito anos e nada sabia de mim.» Vejam o início de Mistérios de Lisboa: «Era eu um rapaz de catorze anos, e não sabia quem era.» Do frade eu guardava memória de ser de muitos dias. E o recepcionista, espantado: «Sim. Está além a conversar com umas pessoas.» A sala era obscura; eu estava em vésperas de um descolamento de retina. Vislumbrei um ainda poderoso frade, aos 69 anos, que, encerrada a gráfica, explorava o húmus do convento em ervas e medicinas do corpo. «Frei Perdigão?» «Sim. Quem me procura?» «Sou Ernesto Rodrigues.» «Não é de Bragança, pois não?» Ele não aceitava que aquele cinquentão substituísse retrato antigo, ousado como o menino do poema oitavo d’O Guardador de Rebanhos. «Sim, sou.» «Não me diga!» E desatou no elogio da obra e criança que, fora de horas, batera à porta do silêncio… Vivi cinco anos dentro das paredes de dois seminários, mas tive naquele frade o único abraço caloroso de um ministro do Céu. Não é pouco, se isso deram uns versos mal-educados, com palavras feias manchando os caracteres da tipografia divina.
Sou escritor desde que me conheço; já enquanto leitor, que era antes dos seis anos, quando entrei na escola primária de Torre de Dona Chama. Do lado da minha Mãe, havia a nobreza das letras, que deu historiadores, sociólogos, políticos, filósofos e jornalistas, mas também, nas artes, um arquitecto e um pintor.  
Contra a solidão de leitor, já escrevedor voraz, meti-me, aos 12 anos, a criar jornais de parede, lá onde pairava o nome de ex-colega, Afonso Praça. Em letra impressa desde os 14, fui encontrar, no semanário diocesano Mensageiro de Bragança (a par de outros, alguns de Lisboa, como a revista Eva, Diário Popular, A Capital), o reverso de mim associável à literatura ‒ daí, a tese de doutoramento conjugar literatura e jornalismo ‒, e não poucas cumplicidades. Destas, nasceram colectâneas a oito mãos, sendo mais badalada J. C. Falhou Um Penalty. O balanço lírico é, hoje, de seis títulos com a minha assinatura, dois em colaboração e 18 presenças em antologias, também desde 1973, quando Maria Alberta Meneres me integrou em O Poeta Faz-se aos Dez Anos, na Assírio & Alvim.
Fraca produção para quatro décadas. O ritmo criador é, em média, menos de um poema por mês, bem pouco em nação de poetas derramados. A síntese da primeira década, Para Ortense: Variantes, em 1981, quando iniciava funções de leitor de Português na Universidade de Budapeste, teve palavras amigas de Luís de Miranda Rocha no Diário de Lisboa ou de João Rui de Sousa na Colóquio/Letras; mas poucos conheceram, e menos entreviram, o que de inquietação psíquico-formal e novas propostas emergiam, pela singela razão de que nascera um aborto gráfico e me envergonhei de colocar esse livro no mercado. A plaquete Sobre o Danúbio, em 1985, mereceu de Luiz Fagundes Duarte, no JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias, a seguinte apreciação: «A meu ver, este livro representa muito do que poderá ser a porta de saída do nosso lirismo português...» E, se venho construindo, como aí se lia, uma «teoria lírica», certo é que só em 2016, quando reunir 45 anos de poemas, se entenderá um percurso já entretanto aberto pelo discreto Do Movimento Operário e Outras Viagens.
Na tarde gélida de 1 de Novembro de 1981, visitei, no castelo de Buda ‒ com aquela vista fabulosa sobre o Danúbio, o Parlamento, etc. ‒ , o Museu do Movimento Operário, hoje chamado Ernst Múzeum, dedicado à arte contemporânea. Subitamente, deparo com uma forja de ferreiro, igual à dos ruídos em minha casa, que me alimentou, e a lima de meus tenteios literários não abafava. Nasceu, assim, o poema de uma separação forçada de pais e filhos em país que se resolvia na emigração, como volta a ser o caso, hoje, com a diferença de que os novos meios de comunicação facilitam os contactos. Dedicando o romance à memória da Mãe, que pede o segundo poema ‒ «Minha mãe nunca atrasa o meu futuro. / Repito a escansão deste verso e nado em luz.» ‒, agradecer a Pai artista num título alusivo é o mínimo que se exige.
Destes movimentos do coração, onde assomam Filhas e amigos, passamos às viagens na História e na Geografia. O que em mim faz deflagrar a poesia está em dois versos de “Árvore”, interlocutora no parque atrás do apartamento de Budapeste, que revisitei, em idas à Hungria e ao passado. Certa manhã, ao vê-la, nasceu isto: «Todo emudeci ‒ lentamente franzido na alma / como ribeiro onde caiu a folha suspirada.» Face à referência imediata, sucede um confronto íntimo, «Um abandono de tudo, como na felicidade», e nesse transe vão meus passos e ritmos ao longo do Danúbio ou da Váci utca, à arte do barroco, ao realismo socialista, Europa fora, particularizada em cidades de passagem ou de demora ‒ entre estas, Château-Thierry, terra de La Fontaine, mostrou-me, aos 16 anos, em 1972, que a liberdade política e de pensamento não eram uma fábula…
Após uma incursão marroquina, sucedem os lugares da portugalidade, cá dentro e além-mar, do Porto Santo e Pico a Maputo, de Timor ao Brasil. Relevo as feiras dos Santos e dos Reis, na Torre de Dona Chama natal, «feiras dignas de Plutarco». Doseada a técnica do encavalgamento com uma estrofação ritmada aprendida nos latinos e no jazz, e rima vária vigiada, subo, entretanto, aos conceitos de pátria-berço, pátria-poesia, pugno por uma democracia «recta, cultivada», pela greve digna, por uma civilização que se não reduza (como na cidade de São Paulo) a três milhões de veículos diários parados nos engarrafamentos e poluindo-nos de barbárie; enfim, defendo uma «funda razão ética» na base da cultura, convicto de que ninguém se salva sozinho. E se, como digo, «Sempre o passado pergunta.», as respostas do presente são aleatórias, impreparadas, dramáticas, mesmo. A atitude nacional revia-se, ainda há pouco, no dístico: «Cá vamos, pois, seculares, / num descanso como nunca.» Ora, essa negligência só podia dar mau resultado. Peço, por isso, «Ao mar, ao mar, ser absorto!», porque devemos inventar-nos, ou naufragamos. A análise política aqui explícita toca o exaspero com o abandono de Timor-Leste pela ONU, em 1999, e retine o sarcasmo quando olho ao governo, resumindo a situação neste verso: «A maldade tornou-se nosso fado.» Se quiserem, leio as quadras iniciais: «A maldade tomou conta de nós. / Prometia baixar impostos; dar/ emprego a milhares; ser correcto; / ajudar quem precisa, e avós. // Um: enganou-nos. Dois: subiu o mar / do desespero, sem sabermos onde / trabalhar. Três: cresceu tom demagogo. / Quatro: não há futuro para netos.»
O quarto andamento mal se entrevê; mas, após tantas andanças convergindo, enfim, no díptico Pátria e Amor, torna-se cada vez mais audível uma nota de estoicismo. Lúcido, este tanto me serve na relação com os outros (venço, por exemplo, inveja ou ciúme), como quando quero apanhar um autocarro: «Tenho quanto me não desvia dessa / via doce da alma, conformada / ao hoje, bom ou mau. Não perco nada, / nem ganho amanhãs por ir depressa.»

Falemos, agora, do romance, outro regresso a casa, não do Pai, mas da Mãe.  
A Casa de Bragança é um título que serve a romance e ensaio. Bastaria, porém, o grafismo da capa ‒ onde sobressai bela fotografia do castelo, por Nuno Calvet ‒ para nos situarmos nessa cidade e sua morada primordial, sem, todavia, abandonarmos algumas propostas de ensaísmo histórico, incluindo a transcrição de documentos no tombo do Arquivo Nacional. Romance histórico? Sim ‒ mas de alcance fundamente psicológico no quadro político e social de dois períodos (entre 1344-1464 e 1964-2014) destacados do milénio da família Roĩz ou Rodrigues, seja, desde 1014. Como conciliar esses lapsos temporais?
A montagem é simples: avós nascidos em 1344 contam a neto quanto viveram até 1398, ano do seu nascimento. Ele acrescenta episódios até ao momento da escrita, em 1464, celebra Bragança o título de cidade, dado por D. Afonso V, em Ceuta, a 20 de Fevereiro. No pós-25 de Abril, parte já impressa desse texto e parte manuscrita são desviadas de certa casa por um jovem nascido em 1956, que lhes acrescenta 50 anos de vida consciente, entre 1964 e 2014, até à manhã de 20 de Fevereiro, quando reencontra a proprietária dos fólios medievais …
Diz o narrador actual, no prólogo: «Um longo parágrafo de cinco séculos vinha até 1964 – tinha eu oito anos, nada sabia de mim −, deslaçando-se em 20 de Fevereiro de 2014, cujo ponto final nem Deus conhece.» No epílogo, conta a manhã deste 20 de Fevereiro, por vir: «Inês acompanha-me à igreja de Santa Maria, ou de Nossa Senhora do Sardão, onde a cidade começou; melhor, à Domus Municipalis, onde nós começámos. […] Dona Inês de Castro aguarda, na sombra matinal do polígono. A seu lado, Clotilde tem na mão esquerda um estojo azul-escuro.» Junto daqueles monumentos, há dois começos: um, medieval, da cidade; outro, de uma paixão aos 18, em Junho de 1974. Agora, ex-jornalista de 58 anos, revê-se aos oito, 18 anos e nos últimos meses, contados na terceira parte. Dentro de instantes, o leitor vai conhecer, ao mesmo tempo que o narrador-protagonista, Inês e Clotilde, a história dos seus nascimentos; e percebemos que, intermediando esse conhecimento, está um original que ocupa as duas partes iniciais, bem como algo dentro do estojo azul-escuro. Que objecto liga a Inês de Castro de 1353 à homónima de 2014?
O miolo da história inaugura-se com o casamento de Pedro e Inês que a tradição diz ter sido na igreja de São Vicente, em cujo exterior deitando para a Rua Abílio Beça acaba de ser colocado um painel de azulejos alusivo, inscrevendo quadra castelhana tirada deste romance. A ideia do então presidente Jorge Nunes nasceu no acto do lançamento da 1.ª edição deste livro, após considerações minhas sobre a vantagem de Bragança triangular com Coimbra e Alcobaça um roteiro inesiano. Aos oito anos, o décimo Rodrigues  ‒ avô do narrador ‒ assiste à cerimónia, como, em 1964, aos oito anos, outro Rodrigues assiste à inauguração da estátua de D. Fernando, segundo duque, à entrada do castelo, enquanto observa menina da mesma idade, que segura a salva de prata onde se tem a tesoura corta-fitas.
Em casa contígua, também nascida em 1344 ‒ logo, com oito anos ‒, frente à Domus Municipalis e à branca igreja de Santa Maria, vive Inês, cuja mãe é ama de um menino aí nado em 1352. É o nosso herói, e revelação para a cidade, que ignorava tão ilustre filho. Segundo parto de Inês e Pedro, chama-se D. João de Portugal e Castro, e devera ter sido rei de Portugal. O meio-irmão mais novo, Mestre de Avis, dizia-se «regente e defensor do reino», antes de ser imposto por Nuno Álvares Pereira como D. João I; sabem poucos do respeito que este nutria pelo mais velho D. João de Portugal e Castro, figura romanesca a cuja morte sucede o nascimento do narrador Afonso Rodrigues…
Vemos, no entretempo, como a família Roĩz emparelha com os bragançãos e primeiros reis; como um nono avô, poeta, acompanha D. Dinis no recebimento de Isabel de Aragão; como um derradeiro braganção, D. Nuno Martins de Chacim ‒ de má índole e fama, sepultado no Mosteiro de Castro de Avelãs ‒, foi bisavô de Inês de Castro.
Todavia, em primeiro plano, temos a degolação desta, vida e feitos do filho João, até ao alegado assassínio da suposta mulher D. Maria Teles, que o torna foragido, com efeitos na sucessão dinástica. Os seus amigos de infância, avós do narrador ‒ por cuja casa passam D. João I e o filho ilegítimo D. Afonso (futuro primeiro duque), Nuno Álvares Pereira e Fernão Lopes ‒, são figuras grandiosas, como será, na revelação da última página, uma Inês de Castro do nosso tempo, que tudo coordena, à distância.
Na maturidade do narrador quatrocentista, passeamos pela Europa central com o infante D. Pedro, o das Sete Partidas, sofremos com o mártir de Fez, D. Fernando, assistimos ao erguer da imponente torre de menagem brigantina. É este espaço a casa? ou tão-só a Domus Municipalis, representativa do poder democrático, senão a igreja? ou um modesto rés-do-chão que as confronta, qual insígnia da linhagem dos Rodrigues?
A leitura é um entrever de sentidos, hipóteses, neblinas. Não há obras impossíveis de ler, desde que, pacientes, dominemos certos códigos ou nos esforcemos por abri-los ‒ dentro da liberdade de não as lermos. Não há castelos inexpugnáveis: um dia, entraremos neles como turistas distraídos. É essa a fortuna dos textos bem fundados, com a maquinaria oleada, em que só a por vezes custosa conquista gratifica corajosos, únicos a poderem libar a doce peçonha que é a literatura.
Ana Diogo confessou a Teresa Martins Marques, online: «Devo dizer-lhe que foi um desafio fascinante pelas vastas e profundas referências históricas que fui tentando interpretar ou decifrar – e não foi fácil, não, confesso. Mas foi uma satisfação galopante à medida que avançava nas narrativas, tão magistralmente enredadas; pasmei perante riqueza lexical e semântica de tal modo opulenta e desafiante; deliciei-me com o recurso a excertos (penso eu) de Fernão Lopes e de outros que me recordaram a beleza do Português arcaico; mantive durante muito tempo a dúvida sobre a real existência de algumas figuras, como a de D. João de Portugal e Castro. Um aprazível tormento… Em suma, a leitura foi longa e trabalhosa, sim, mas foi uma labuta deleitosa, um repto constante que me deixou presa, suspensa e enlevada até ao surpreendente final. Gostei tanto, tanto, que não tenho palavras para lhe agradecer a sugestão que em boa hora me fez.»
Deixo excerto da resposta que dei: «A sua apreciação é de uma leitora-modelo, que qualquer autor gostaria de ter: intui a dificuldade, mas, vencendo-se a si mesma, conquista, a pouco e pouco, o Evereste de veredas e sentidos.  // O meu conceito de literatura assenta num trabalho filigranado da linguagem, cujo registo se adequa aos tempos e personagens, e, nos fios do narrador medieval, é tão irónico e distanciado como, no narrador de hoje, melancólico e desencantado. // […] Cada personagem é, como o narrador-autor de si mesmo diz, o tal «castelo de enigmas, […] disposto a ser conquistado». Donde, é um luxo, ainda que em «aprazível tormento» de generosos leitores, sofrer tão desejada invasão.»
Este projecto era uma velha dívida que eu tinha para com a cidade onde, há 40 anos, estreei fato novo de poeta. No cenário de um locus amœnus assim engrandecido pela ensaiada arquitectura do verbo e pela investigação histórica, este livro sonda, em resumo, linhagens que ergueram Portugal; revê o mito de Inês e exalça um filho a conhecer melhor, na sua fácil entrega ao povo miúdo, a exemplo do pai, D. Pedro; espelha desencontros no seio da ínclita geração, que deixa morrer irmão por razões de Estado; mas, acima de tudo, no percurso do transcritor medieval e de quem, hoje, o revê, importa a demanda de uma filiação, sem a qual ruiria a casa do coração, única onde a vida se harmoniza.
Obrigado a todos.

Ernesto Rodrigues


18 agosto 2013

Assembleia Geral de 23 de Março de 2013: acta n.º 3





ASSEMBLEIA GERAL
REALIZADA NO DIA 23 DE MARÇO DE 2013, EM BRAGANÇA

ACTA

       Aos vinte e três dias do mês de Março de dois mil e treze, realizou-se, no Centro Cultural Municipal de Bragança, a Assembleia Geral da Academia de Letras de Trás-os-Montes, sob a direcção do seu Presidente, António Manuel Pires Cabral, com a seguinte Ordem de Trabalhos:
1.        Leitura da acta da reunião anterior;
2.        Aprovação do Relatório e Contas de 2012;
3.        Aprovação do Plano de Actividades e do Orçamento para 2013;
4.        Outros assuntos.
Por falta de quórum e em conformidade com o estabelecido nos Estatutos da Academia, a sessão iniciou-se trinta minutos depois da hora marcada.
Na ausência do Secretário da Mesa da Assembleia, o Presidente convidou o associado António Tiza para desempenhar estas funções, o qual aceitou, tendo os associados presentes confirmado a sua nomeação “ad hoc”.
No primeiro ponto da Ordem de Trabalhos, foi lida e aprovada, por unanimidade, a acta da Assembleia Geral anterior.
No segundo ponto da Ordem de Trabalhos, o Presidente da Direção da Academia, Ernesto José Rodrigues, apresentou o Relatório de Contas do exercício de 2012. Salientou a viagem que ele próprio realizou a Belém do Pará, a convite da Academia Paraense de Letras, e a Bragança do Pará; os valores apresentados e pagos pela Academia referem-se às despesas que a Câmara Municipal de Bragança não pôde incluir no orçamento da viagem.
De imediato, o Presidente da Direcção expôs, em síntese, o Relatório de Actividades do ano de 2012; o documento dá-se por transcrito, por se encontrar publicado no blogue da Academia. Referiu, mesmo assim e em especial, a edição da obra completa do Padre António Vieira, uma publicação do Círculo de Leitores, em trinta volumes, na qual a nossa Academia colabora. Ambos os documentos, Relatório da Actividades e Contas, foram aprovados por unanimidade.
No terceiro ponto da Ordem de Trabalhos, o Presidente da Direcção apresentou o Plano de Actividades e Orçamento para o ano de 2013 (Março-Setembro). O documento encontra-se disponível no sítio da internet da Academia e foi enviado a todos os associados, via correio electrónico. Em todo o caso, destacou algumas actividades, a participação da Academia na edição da obra completa do Padre António Vieira, com o contributo de quinhentos euros, e, como contrapartida, a inserção do logótipo. Destacou também a organização, em conjunto com a Câmara Municipal de Bragança, do evento “Artes e Livros”, onde vão ser apresentados vários livros dos associados e o segundo volume de A Terra de Duas Línguas – Antologia de Autores Transmontanos. O Plano foi aprovado por unanimidade.
No quarto e último ponto, “Outros Assuntos”, o associado António Tiza sugeriu que, face às dificuldades de comparência às reuniões, em virtude do cargo que ocupa, fosse substituído o Tesoureiro Manuel Cardoso nas suas funções. Amadeu Ferreira opinou que não se justifica a sua substituição, considerando que dentro do prazo de seis meses se vai realizar o acto eleitoral para os novos corpos sociais da Academia.
O associado António Sá Gué apresentou duas propostas: a primeira visa a criação de um prémio literário com o nome da Academia, mesmo sem atribuição financeira; a segunda proposta relaciona-se com a edição do segundo volume da Antologia de Autores Transmontanos. Partindo do princípio de que existe serviço público nesta obra, poder-se-iam ultrapassar as dificuldades financeiras estabelecendo uma parceria entre a editora Lema d’Origem e a Academia; a editora assumiria o trabalho da paginação e outros relacionados com a edição e a Academia adquiriria um certo número de exemplares para os sócios; solicitar-se-iam apoios institucionais para as despesas de impressão e tipografia. O Presidente da Mesa sugeriu que a Direcção devia, no momento de decidir, levar em consideração a proposta apresentada. O Presidente da Direcção informou que esta vai tratar do assunto com a editora, a contento de ambas as partes, e que vai solicitar apoios no âmbito da lei do mecenato. Quanto ao prémio a que se referia a primeira proposta de Sá Gué, ficou decidido que, tratando-se de um assunto que merece aprofundada reflexão, a Direcção vai estudar o assunto e apresentar uma solução na próxima Assembleia Geral.
O Presidente da Mesa propôs que a Assembleia se pronunciasse e tomasse uma decisão, rejeitando o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Amadeu Ferreira referiu tratar-se de um tema fracturante e que, por isso, a Assembleia Geral não devia discuti-lo; manifestou reservas sobre a competência da Assembleia em se pronunciar sobre a matéria. A associada honorária Teresa Martins Marques sugeriu que se deixasse a decisão do uso ou não da nova ortografia ao critério de cada associado. Entretanto, face ao debate que se criou, com a apresentação de outras opiniões, a proposta foi retirada, a fim de evitar fracturas no seio da Academia.
A acta foi lida e aprovada, em minuta, por unanimidade.

E nada mais havendo a tratar se deu por encerrada a sessão, da qual se lavrou a presente acta que, vai ser assinada por mim, na qualidade de Secretário, e pelo Presidente da Mesa da Assembleia Geral.

Assembleia Geral

Convocatória


Nos termos legais, convocam-se os sócios da Academia de Letras de Trás-os-Montes para uma reunião da Assembleia Geral da mesma, a realizar em 14 de Setembro de 2013, pelas 10.30 horas, no Auditório do Centro Cultural Municipal Adriano Moreira, em Bragança, com a seguinte ordem de trabalhos:

1.  Leitura da acta da reunião anterior.
2.  Aprovação do relatório e contas do exercício de 2013 (Março-Setembro).
3.  Saudação ao novo sócio honorário António Jorge Nunes.
4.  Proposta de listas à Assembleia Geral, Direcção e Conselho Fiscal da ALTM.
Debate.
5. Eleição dos novos órgãos.
6. Tomada de posse.
7. Outros assuntos. 

Se à hora marcada não houver quorum, a reunião realizar-se-á 30 minutos depois com qualquer número de sócios presentes.


Bragança, 14 de Agosto de 2013

O Presidente da Assembleia Geral


A.M. Pires Cabral