07 julho 2011

Tenreiro, Hughes e Mandela: Uma Conversa sobre Rios

                        Tenreiro, Hughes e Mandela: Uma Conversa sobre Rios

                                            
Maria Manuela Araújo

                           Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa


Resumo: As poéticas de Francisco José Tenreiro e de Langston Hughes são escritas do eu que fala da margem e questiona as hegemonias forjadas pelo ideário colonial moderno. As vozes dos dois poetas assinalam uma junção dialogante da diáspora contestatária moderna, à qual pertence outra voz maior da modernidade tardia, contemporânea, a de Nelson Mandela, de que a obra Long Way Walk To Freedom se constitui memória autobiográfica. Tenreiro fala sobre os mesmos rios de que fala Hughes em «The Negro Speaks of Rivers», um poema que é necessário mostrar e interpretar. Mandela atravessou rios famosos: «‘Ndiwelimilambo enamagama’». As três vozes em menção são actos ilocutórios do eu protestatário, gerador de relações transtextuais, a partir do mesmo motivo líder rio.
  
Palavras‑chave: modernidade, diáspora, autobiografia, intertextualidade, memória.



The Negro Speaks of Rivers[1]

                                                                    To W. E. B. Du Bois
I’ve Known rivers:
I’ve known rivers ancient as the World and older than the flow
of
         human blood
         in human veins.

My soul has grown deep like the rivers.
I bathed in the Euphrates when dawns were young.
I built my hut near the Congo and it lulled me to sleep.
I looked upon the Nile and raised the pyramids above it.
I heard the singing of the Mississipi when Abe Lincoln went
          down to New Orleans, and I’ve seen its muddy bosom
          turn all golden in the sunset.

I’ve known rivers:
Ancient, dusky rivers.

My soul has grown deep like the rivers.

Langston Hughes, 1926



O Negro Fala de Rios[2]
Para W. E. B. Du Bois
Conheci rios:
Conheci rios antigos como a Terra e anteriores ao correr de
sangue humano
em veias humanas.

A minha alma aprofundou-se como os rios.
Banhei-me no Eufrates ainda as manhãs eram jovens.
Fiz a minha cabana junto ao Congo que me adormeceu com o
seu sussuro.
Percorri o Nilo com o olhar e edifiquei as pirâmides por cima
dele.
Ouvi o cantar do Mississipi quando Abe Lincoln foi a Nova
Orleães,
e vi o fundo lodoso ficar como ouro ao sol‑pôr.

Conheci rios:
Rios antigos, nebulosos.

A minha alma aprofundou‑se como rios.

Langston Hughes, 1926



            As poéticas de Francisco José Tenreiro (n.1921 – f.1963) e de Langston Hughes (n.1902 – f.1967) dimanam do mesmo lugar tópico e partilham a estética negritudinista. São escritas de colocação subversiva, do eu que fala da margem, não da marginalidade, interrogando as hegemonias forjadas pelo ideário colonial moderno. A afinidade entre os dois poetas é clara nas menções explícitas que Tenreiro faz a Langston Hughes. A escrita do poeta afro‑americano inspirou as diásporas negro‑africanas modernas, particularmente a designada, por Mário Pinto de Andrade, de Geração de Cabral, tendo assim cumprido o objectivo primordial que incutiu no seu ensaio «The Negro Artist and the Racial Mountain»[3], de 1926. Aqui, Hughes defende a ligação do escritor negro a África, insistindo numa escrita racial não aculturada, a montanha que considerou íngreme de subir e o incompatibilizou com County Cullen.
            As vozes da Geração de Cabral falaram a mesma língua dos criadores que fundaram e alimentaram o sonho do New Negro, da Harlem Renaissance e da Jazz Age, bem como dos activistas políticos que, de Frederick Douglass a Martin Luther King, lutaram pelos direitos humanos e cívicos dos negros nos E.U.A. e no mundo. Repartida pelos dois lados do Atlântico, esta diáspora discursiva, à qual pertence a escrita de Tenreiro, dialogou solidária no inconformismo do exílio, externo ou interno, clamando um outro tipo de estado‑nação.
            A poesia de Tenreiro é um acto ilocutório de eu “de coração em África”, mas também de coração na África levada para as Américas. A poesia de Hughes desvela esta afinidade recíproca, porque o eu autoral em menção também viveu “de coração em África”. A África e as Américas, particularmente os E.U.A., são geografias comuns às duas poéticas. Os poemas «Negro de Todo o Mundo»[4], do poeta são‑tomense, e «The Negro Speaks of Rivers», do poeta afro‑americano, configuram‑se elementos de diagnose social e cultural de um intervencionismo recíproco entre a África e os E.U.A.
            Em Tenreiro, temos o discurso poético neo-realista da diáspora negro‑africana, escrita do exílio, em que o eu poético se enuncia num lugar fora de África. O título «Negro de Todo o Mundo» subentende uma relação dialógica identitária, fundada num topos de enunciação, que inscreve a errância humana numa escrita que concentra vários espaços culturais que se interferem: a Europa, a África e as Américas. Observando Tenreiro nos papéis de poeta, ensaísta, professor e político, como figura medianeira entre mundos, perante os quais adoptou uma posição a um tempo contestatária e conciliatória, importa citar Russell Hamilton:

E embora influenciada pela negritude de Senghor, Césaire e David Diop, a poesia de Tenreiro também tem sinais do negrismo cubano e do estilo da Harlem Renaissance. Ao entoar as suas invocações, exortações reivindicativas e protestatárias e a sua saudade africana, o sujeito poético viaja por África e pela «diáspora», ora fragmentando ora reintegrando o espaço geográfico e o tempo histórico.
                                                                                                            (Hamilton, 1984: 251)

            Entre outros africanistas e ensaístas, Alfredo Margarido[5] e Salvato Trigo[6] focalizam na poesia do poeta são‑tomense a influência afro‑americana da Renascença de Harlem, sem a qual qualquer estudo sobre Tenreiro estaria sempre incompleto. Também Fernando J. B. Martinho, quer no prefácio do livro Coração em África, 1982, quer na comunicação apresentada no colóquio de Paris[7], 1985, deixa bem claro o entrosamento literário dos dois poetas. De igual modo, Pires Laranjeira se refere à aceitação que Langston Hughes teve nos círculos intelectuais neo-realistas e negritudinistas portugueses, assim como no Brasil e em África, oferecendo um levantamento de situações textuais onde Hughes é publicado, traduzido e homenageado, referindo «A voga da poesia de Langston Hughes entre os neo‑realistas e negritudinistas que viveram os ambientes intelectuais de Lisboa, Porto e Coimbra, nos anos 40‑50 (e mais tarde), ou entre os brasileiros, mas também na África […]». (Laranjeira, 1995: 28, 29).
            O presente texto tem como objectivo ajudar a iluminar a relação de influência literária e ideológica entre a África e os E.U.A., bem nítida na poesia de Francisco José Tenreiro, oferecendo como contributo primacial a análise literária do poema «The Negro Speaks of Rivers», de Langston Hughes, um dos mais intertextualizados por Tenreiro, bem como por outros escritores africanos, configurando-se, assim, pertinente, trazê-lo para a clareira do bosque literário.
O poema «The Negro Speaks of Rivers» foi, sem dúvida, o mais glosado pelos poetas africanos da referida geração. O poeta que de forma mais evidente intertextualizou as palavras de Hughes, em especial do poema acima relevado, foi Francisco José Tenreiro. Ambos são poetas que, enquanto fora de África, sempre tiveram o “coração em África”, tal como dito no título metafórico do poeta são‑tomense, que sintetiza o fulcro identitário da reivindicada diáspora negro-africana, e em cujo poema é feita menção explícita aos mesmos rios antigos de que fala Hughes: «[…]de coração em África nos rios antigos que o Negro conheceu» (Ferreira (org.), 1982: 125). É manifestamente no segundo livro de Tenreiro, Coração em África, de publicação póstuma em 1964, que estão presentes composições poéticas que tematicamente o fazem de forma mais clara, invocando os mesmos rios já exaltados por Hughes, ou outros elementos simbólicos da vivência afro‑americana, ou ainda, a mesma África com que sonha o escritor afro‑americano.
Assim, cruzando e incorporando as palavras de Tenreiro, no poema «Amor de África»[8], «[…]a manhã outonal de nevoeiros calmos sobre o Tejo.» (v. 2) desperta no sujeito poético um sentimento de nostalgia de África, sendo este invadido por «Quatro pulsações febris de um corpo só/oh África do Nilo e do Zaire oh África do Zambeze e do Níger/quem em ti está pensando de coração em África?/ África dos rios velhos e ruínas ossificadas de Zimbabwé» (vv. 11-14).
O poema «Fragmento de Blues»[9], 1943, é dedicado a Langston Hughes e, tal como «Negro de Todo o Mundo», sofre a influência de Weary Blues[10], 1926, um conjunto poético do qual faz parte o poema «The Negro Speaks of Rivers». Em «Fragmento de Blues», a memória invade a solidão do eu poético através de um som de trompete, que traz até si «toda a melancolia das noites de Geórgia» (v. 4), sopro instrumental que, inesperadamente, se transmuta numa voz feminina acompanhada pelo piano, tocado em Harlem. O chamamento melancólico que vem das noites da Geórgia é o mesmo “blues” que chama o escritor afro‑americano Jean Toomer e o convida à visita da casa ancestral, representada na obra Cane. Cane é uma experiência experimental mística, de precisão lírica imagista, também fragmentada em momentos narrativos e dramáticos, mas em que o poema-canto «Song of the Son»[11] é a sagração máxima da escrita poética elegíaca, ao regresso deste filho pródigo à terra. Este é o “cântico do fim, ou do cisne”, que busca salvar o legado cultural do Sul dos E.U.A., prestes a desaparecer a “poente dos tempos”. A efusão lírica de Cane, ou “blues” sincopado pelo feminino, é o mesmo canto de «negrinha» (Est. II, v. 3) que acordou a tristeza de Tenreiro, desta vez vindo de Harlem. Em «Fragmento de Blues» os ritmos negros de Harlem, Count Basie, quebram o vazio do sujeito poético, tal como o fazem a escrita poética de Langston Hughes e de Countee Cullen: «E se ainda fico triste/Langston Hughes e Countee Cullen/Vêm até mim/Cantando o poema do novo dia/- ai! os negros não morrem/nem nunca morrerão!» (Est. IV).
Continuando a observar os matizes textuais isotópicos, que significam o apego do sujeito poético a uma terra e a gentes que considera suas, observe-se a composição intitulada «Nós, Mãe»[12], em que se dirige também, em forma de invocação saudosa, à terra‑mãe África: «E a ti, /Oh! Mãe de negros e mestiços e avó de brancos! » (Est. V, v.1). A África personificada num corpo negro de mulher, cansado e mirrado, a negra velha a quem o eu poético se dirige e lembra que «[…] [os seus] filhos não morreram[…] / [porque ele ouve] um rio de almas reluzentes/cantando: nós não nascemos num dia sem sol!» (Est. X), «Que um rio vem correndo e cantando/desde St. Louis e Mississipi» (Est. XI, vv. 1, 2). O rio em referência é o mesmo rio que o sujeito poético em «The Negro Speaks of Rivers» ouve igualmente cantando, quando Abraham Lincoln, a quem Tenreiro também dedica um poema, desceu a Nova Orleães com a boa nova, e o seu leito, ao pôr do sol, se transformou, adquirindo um tom áureo. Mais marcado pelo cosmopolitismo modernista temos o poema «Coração em África»[13], em que o sujeito deambula pelo quotidiano urbano, mas sempre de Coração em África - «[…]cogitando na pretidão do mundo que ultrapassa a própria cor da pele» (v. 64) -, invocando vários criadores modernistas, também Nicolás Guillén (v. 36), mas, particularmente, os rios antigos a que já se fez menção.
As vozes dos dois poetas assinalam uma junção dialogante da diáspora africana moderna, à qual também pertence outra voz maior, a de Nelson Mandela, de que a obra Long Way Walk To Freedom se constitui memória autobiográfica. O “longo caminho para a liberdade”, de que nos fala Mandela, é também interrompido por vários rios, rios que o sujeito teve de atravessar, os quais detêm um forte significado dentro da simbólica figurativa da dificuldade existencial do Homem na Terra. Da tradição para a modernidade, do saber ancestral para as aprendizagens vivencial, académica e política do hostil mundo do progresso, eis os obstáculos que levam o sujeito a proferir o ditado xhosa: «‘Ndiwelimilambo enamagama’ (‘I have crossed famous rivers’)».[14] O rio é, igualmente, no texto de Mandela, um motivo líder antigo, recontextualizado dentro do nacionalismo sul‑africano moderno, invocando o sentido de “atravessar” etapas várias e difíceis. Na autobiografia de Nelson Mandela, a metáfora “atravessar o rio” reafirma a sua carga simbólica, num contexto em que se pretende colocar em vacilação as bases da ritualizada cultura dominante, colonizadora, tornando visível a relação de conflitualidade entre colonizador e colonizado, as contrariedades várias, sofridas pelo ser que se vê dividido entre a Europa e a África. Assim se tece a discursividade dialogante de uma diáspora literária que, à distância, conversa sobre os mesmos temas, revelando uma consciência identitária transcultural de afiliações simétricas.

            Pelo já aludido merecimento que o poema «The Negro Speaks of Rivers» revela na discursividade diaspórica que tem vindo a concentrar a nossa atenção, passa-se à decifração analítica da sua semântica principal, a qual se inscreve dentro da tradição literária etiopianista. O texto poético «The Negro Speaks of Rivers»[15] veio pela primeira vez a lume em Junho de 1921, em The Crisis, jornal da associação NAACP, fruto de um gesto encorajador de Jessie Fauset. O poeta começou, alegadamente, a escrevê‑lo durante a travessia do rio Mississipi, explorando de forma muito criativa diversos traços do universo de semelhanças da metáfora rio: joga com características de ordem vectorial que o signo linguístico, no seu sentido literal, implica.
No que se refere à enunciação metafórica do lexema rio, a semântica da frase parece preservar os dois eixos isotópicos ortogonais, que um curso de água, no mundo fenomenal, permite imaginar: um eixo longitudinal e outro vertical. Corporizado no enunciado poético, os constituintes sémicos que formam o campo semântico de rio sugerem não só o movimento da corrente, da nascente para a foz - «I’ve Known rivers: […] older than the flow of human blood in human veins.»‑(vv. 2, 3), como também a dimensão tridimensional de volume, ao induzirem a direcção vertical de profundidade, através da reiteração - «My soul has grown deep like the rivers» - , em forma de refrão, ao longo da espacialização poemática. A linha imaginária vertical, sinónimo de profundidade no plano físico, contém ainda uma componente temporal, não de explicitação cronológica directa, mas de implicação causal indirecta, verificável através de índices sémicos, que sugerem um processo de erosão, determinante para o aprofundamento do leito do rio, o qual se configura como elemento de comparação com a alma do sujeito poético.
O poema, criado dentro do cânone literário modernista, coloca em evidência o seu sujeito de escrita e de enunciação, em particular circunstância de auto‑referencialidade, numa espécie de monólogo interior, ou em livre corrente de consciência, revivendo uma origem essencial, na viagem mental que remonta a um tempo anterior à Humanidade.
Assim, a instância poética confere voz e visibilidade ao indivíduo, pela recorrência a uma figuração egotista subjectiva, de índole temática, a qual aponta para a interacção identitária do eu com um território geográfico e cultural de procedência ancestral, que, em termos formais do poema, apesar da irregularidade espacial, se consuma, textualmente, na utilização anafórica de eu, localizada no lugar mais saliente de cada verso.
Ousando uma possível decifração da imagética estruturadora do poema, o eixo longitudinal poderá simbolizar a movência errática de um espaço e tempo sentidos como primordiais, da África Mesopotâmica, considerada berço da humanidade e de civilização, mas também sinónimo de esforço e de árduo trabalho edificador - «I looked upon the Nile and raised the pyramids above it.» - (v. 7), para os E.U.A., lugar de escravatura, mas igualmente de libertação, que o rio Mississipi “canta”, à chegada de Abraham Lincoln a New Orleans - «I heard the singing of the Mississippi when Abe Lincoln/ went down to New Orleans […] » - (vv. 8, 9).
O eixo imaginário vertical afigura-se indiciador de amadurecimento, saber, conhecimento profundo de si, e da sua raiz genealógica mais profunda, sugerida pela expressão «grown deep», em cuja oposição direccional está contido o crescimento físico do ser humano, que se regista numa linha evolutiva, para cima, até à idade adulta, movimento contrário, no entanto, ao crescimento do saber adquirido com os anos, tão considerado nas sociedades africanas tradicionais, e de representação vectorial oposta, no sentido de profundidade, em termos de sabedoria, tal como a ancianidade de alguns rios que, ao perderem a sua “juventude”, vão correndo em cada vez mais amplos e profundos vales, ainda que não seja o caso do rio Nilo e do rio Mississipi.
Os dois eixos, concebidos no plano extra-semântico, intersectam-se num ponto de origem que, definido no poema em análise, é encontrado em “rio”, simbolicamente testemunho original do processo de formação da terra, assim como das mais antigas civilizações de África, e objecto de dignificação do eu poético.
Ao longo do poema, o arquitexto bíblico vai-se tornando legível nas entrelinhas de uma indagação filosófica, que parece ter encontrado no Mito de Génese uma resposta, que foi construindo África de forma lendária, mítica, indo ao encontro do desejo imaginário do poeta, bem como do sonho secular de muitos afro-americanos.
O sujeito poético fala de rios genesíacos, que os seus antepassados, vozes íntimas do eu lírico, conheceram. A menção feita a rios antigos - «ancient as the world and older than the flow of human blood in human veins» - (vv. 2, 3), particularmente ao Eufrates, invoca o início edénico, representado no episódio bíblico intitulado A Formação do Jardim do Éden, presente em Génesis 2, 4-17. O intertexto bíblico que entrelaça a malha poética da composição de Hughes, em que os rios, elementos da natureza, parecem transportar uma mensagem de início da criação do mundo, configurando-se como elementos que invocam princípios de interpretação, toda esta actividade efabulatória parece pertencer ao plano integrador do mito, de que a fulguração da palavra aqui faz ressonância.
Ao aludir, por último, ao espaço simbólico construído à volta do Egipto Antigo, renascimento temático relevante, não só na imagética do poema, como também na literatura e noutros géneros artísticos emergentes durante o Modernismo, merece particular atenção a forma como é invocada a grandiosidade das pirâmides, visivelmente acima do maior rio, o Nilo, - « I looked upon the Nile and raised the pyramids above it.» - (v.7). As pirâmides egípcias, cujos mistérios se constituem objecto de estudo e decifração inspiradora de ritos iniciáticos, pertencentes ao conjunto sistemático de cerimónias e ensinamentos de grupos esotéricos, figuram no poema em análise como símbolo altaneiro, superior, erigidas por um eu obreiro, um eu que no texto poético em análise é nós, e se assume como autor de uma obra, ou seja, uma obra de construção colectiva, pertença de um grupo humano que a reclama, na presente voz de um eu diaspórico que, ao fazer germinar a palavra, se torna socialmente notado.
A atracção dos afro-americanos pelo Egipto, entre meados do século XIX e princípios do século XX, manifestada em discursos públicos, na literatura panfletária, na sermonística e noutros géneros artísticos, é justificada como apelo a um passado histórico elevado, reivindicado como meritíssima tradição, gloriosa nascente de civilização, o Egipto Antigo, como primeira civilização histórica nascida no vale do Nilo[16], no decorrer do quarto milénio a. C., tal como a invocação de outras culturas africanas antigas, particularmente, a núbia e a etíope[17], de exploração temática igualmente frequente.
Nas épocas de renascimento cultural em foco, os diálogos textuais em apreço abraçam, em comum, um projecto radical de grande abrangência, que visa insurgir-se contra a tirania do discurso colonial e, por essa razão, a influência de Langston Hughes, assim como a presença afro‑americana em geral, não se circunscreveu à poesia de Tenreiro, mas marcou igualmente presença nos textos dos «poetas-militantes»[18], que produziram a designada Literatura de Combate, especialmente a de Viriato da Cruz (1928 - 1973) e Costa Andrade (1936-?).
As determinações ideológicas dos dois poetas explicam que a poesia de ambos se tivesse vindo a constituir recusa do colonialismo, bem como recordação cultural de outros valores simbólicos de índole universal, criados sobretudo em Viriato da Cruz, à luz de um democratismo político não só nacional, mas sim multiracial e alargado ao operariado de todo o mundo, segundo as suas convicções políticas.[19] Viriato da Cruz foi poeta colaborante da revista «Mensagem» (1951-52), que em conjunto com «Cultura» [(I) 1945-51] e «Cultura» [(II) 1957-61] deram a conhecer as criações literárias da geração de 50. No poema de Viriato da Cruz, intitulado «Mamã Negra»[20], dedicado à memória de Jacques Roumain, o sujeito poético enaltece a voz personificada da mãe‑África, como voz síntese da diáspora negro‑africana, uma voz plural que, pelas suas palavras, enfaticamente integra « - Vozes de toda América! Vozes de toda África» (v. 17), especificadas no poema, superlativizando, de forma particular, a voz de Langston Hughes: «Voz de todas as vozes, na voz altiva de Langston» (v. 18). No poema de Costa Andrade, «Poema oitavo de um canto de acusação»[21], o sujeito poético é interceptado por vibrações sonorosas afro-americanas, de Blues e Jazz, que se entranham no seu corpo “até às vísceras”, e despertam no seu imaginário poético a eleição de figuras simbólicas da música e da escrita da América negra: Louis Armstrong, Langston Hughes, Countee Cullen, Nicolás Guillén.
            A voz de Tenreiro é uma voz que vem de longe e vai para longe, é a voz do negro escravo que não pôde falar, consubstanciada no poema intitulado «1619»[22], voz do corpo que tombou «ao peso de grilhetas e chicote», reanimado pelo «chape‑chape da água» que em si acordava «[…]a saudade/da última réstia de areia quente/e da última palhota que ficou para trás.» (Tenreiro, 1982: 110). Deste modo, a poética de Tenreiro é um caso de memória histórica, de que o título «Coração em África» se configura signo. Uma memória literária preservada pela Literatura de Escravos Afro‑Americana, conservada pelos escritores dos períodos New Negro Renaissance, Harlem Renaissance e seguintes. Uma memória com particular interesse para o período Realista, em que se insere o poema lírico‑narrativo «Middle Passage»[23], de Robert Hyden, o qual dialoga com o filme «Amistad», do realizador Steven Spielberg. Tenreiro intertextualiza o referido poema de Hyden (1966), considerado histórico pela crítica, porque rememora a chamada “Passagem Intermédia” negreira, um sujeito poético plural no sentir do outro seu irmão, e que de forma simbólica celebra no título da sua obra poética.
            Em suma, fecha-se o ensaio em apresentação, conferindo saliência aos semas fundadores dos textos interpretados. Os escravos viajaram de coração em África. Garvey e o seu opositor Du Bois, líderes do New Negro Movement, lutaram de coração em África. Hughes, da Renascença de Harlem, falou de rios africanos e viajou de coração em África, para África. Tenreiro enunciou-se fora de África, mas conversou com Hughes sobre os mesmos rios africanos, porque tinha o coração em África. Mandela permaneceu em África cantando rios, porque no exílio interno ofereceu a sua Vida a África. A estas vozes, continuam a juntar-se as vozes das diásporas contemporâneas, em tempo pós‑colonialista, as quais aguardam, ainda, de coração em África, fazendo sua a pergunta de Ki‑Zerbo: Para quando África?


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[1] Versão original escolhida para análise. BRAZILLER (org.), s/d: 88).
[2] ALVES (org e trad.), 1997: 18‑19.
[3] GATES Jr., MCKAY (gen. eds.), 2004: 1311-1314.
[4] TENREIRO, 1982: 76-81.
[5] MARGARIDO, 1980: 121-123.
[6] TRIGO, s/d: 7-14.
[7] MARTINHO, 1985: 523-527.
[8] FERREIRA (org.), 1982: 99-104.
[9] FERREIRA (org.), 1982: 105-106.
[10] BRAZILLER, Inc. (org.), s/d: 87- 88.
[11] TOOMER, 1967: 21.
[12] FERREIRA (org.), 1982: 112-115.
[13] FERREIRA (org.), 1982: 124-128.
[14] MANDELA, 2002, vol. I: 121.
[15] BRAZILLER (org.), s/d: 88.
[16] Como se sabe, a mais antiga população do Sara até ao período histórico era formada por negros.
[17] Culturas florescentes que beneficiaram de uma situação de riqueza agrícola e comercial, desenvolvida à volta do rio Nilo.
[18] Mário Pinto de Andrade, no quadro da poesia de combate de escrita portuguesa e crioula, produzida no fim dos anos cinquenta, refere-se à figura do «poeta-militante», especificando as circunstâncias em que ela surge: «realiza-se a coincidência entre o engajamento político, a presença física no próprio terreno da luta e a expressão militante na poesia.» ANDRADE (org.), 1979: 7.
[19] Vejam-se os cadernos políticos de Viriato da Cruz, in LABAN (coord.), 2003.
[20] ANDRADE (org.), 1977: 155-157.
[21] ANDRADE (org.), 1975: 35-36.
[22] TENREIRO, 1982: 110-111.
[23] ALVES (org. e trad.), 1997: 22.

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