04 julho 2011

Luísa Dacosta, escritora de origem transmontana

Luísa Dacosta



LUISA DACOSTA, ESCRITORA DE ORIGEM TRANSMONTANA*


    Luísa Dacosta é o nome literário adoptado por Maria Luísa Saraiva Pinto dos Santos, nascida em Vila Real no dia 16 de Fevereiro de 1927.  
    Nesta cidade fez os estudos primários e secundários, estes últimos no Liceu Camilo Castelo Branco. Daqui seguiu para Lisboa onde se licenciou em Histórico-Filosóficas, na Faculdade de Letras. Impulsionada por uma apetência pela literatura, aproveitou para assistir a aulas de grandes mestres da área como Vitorino Nemésio, Lindley Cintra e Andrée Crabbé Rocha.
    Se o curso lhe deu uma formação académica necessária ao exercício de funções docentes (foi professora de português do segundo ciclo nas escolas Ramalho Ortigão e Francisco Torrinha) foi a vida a sua grande fonte de aprendizagem e a grande inspiradora da sua obra. Quer enquanto cidadã interveniente na defesa de causas, com destaque para a da condição feminina, quer como professora criativa, sempre em busca de metodologias motivadoras conducentes ao despertar do gosto pela leitura e pelo correcto uso da língua, indiferente a imposições pedagógicas estéreis.
    A abrangência da obra de Luísa Dacosta até hoje publicada e que ultrapassa três dezenas de títulos desmistifica a ideia corrente de que a sua actividade literária se reduz à autoria de livros para a infância e a adolescência. De facto, a sua escrita abrange os campos da poesia, do ensaio, da crónica, do teatro, da diarística, da pedagogia, da filologia, da tradução, do conto para adultos. Tem colaboração em jornais nacionais de cariz informativo e cultural. É responsável por uma antologia em quatro volumes (que a editora Asa reduziu a dois – I e II, III e IV – e a que subtraiu gravuras primitivas) destinada a um público infanto-juvenil cujos principais atractivos são a heterogeneidade dos textos seleccionados e a presença da pedagoga patente em introduções esclarecedoras e marcadas por uma literariedade poética que funciona, para os seus leitores, como cartão de visita.
    Quando, em Fevereiro do ano em curso, a Universidade de Évora atribuiu a Luísa Dacosta o Prémio Vergílio Ferreira com o qual foram anteriormente galardoados escritores, ensaístas e poetas como Mia Couto, Agustina Bessa-Luís, Eduardo Lourenço, Vasco Graça Moura e Mário Claúdio, entre outros, o júri premiou, por unanimidade, a vasta dimensão da sua obra. Entendeu, com esta escolha, chamar a atenção da crítica literária para as suas vertentes menos conhecidas como as crónicas e a autobiografia. José Alberto Machado, presidente, escreveu: “De alguma maneira, este prémio corrige uma relativa injustiça e chama a atenção para outras valiosas dimensões da obra da grande escritora”.
    Se essas dimensões mergulham, para o público em geral, numa penumbra recatada, prende-se essa realidade com o perfil psicológico da escritora que, segundo Isabel Ferreira no Preâmbulo a Luísa Dacosta no Sonho, a Liberdade, se recusa a “enveredar pela vulgaridade e pelo mediático, conceitos tão entranhados na sociedade actual, cúmplices de uma gritante cegueira cultural, que, infelizmente, tanto valoriza e cultua a mediocridade”.

    Registe-se não ter sido esta a primeira vez que a autora de Um Olhar Naufragado assistiu ao reconhecimento público do seu mérito de escritora. Em 1992 recebeu o Prémio Máxima de Literatura pelo seu livro Na Água do Tempo (diário), em 1993 o Prémio Gulbenkian do Melhor Texto para Crianças no biénio 1992-1993, em 1997 a Câmara Municipal do Porto condecorou-a com a medalha de prata de Mérito da Cidade e, em 2002, a Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto, juntamente com a Delegação da Cultura do Norte entregaram-lhe o prémio Uma vida, uma Obra, designação a sugerir tratar-se, também, do reconhecimento da abrangência estético-literária conseguida por uma mulher dotada de notáveis qualidades sincréticas. Em 2004, por ocasião do 30º aniversário do 25 de Abril de 1974 e do 150º ano da morte de Almeida Garrett, a Corporativa Árvore distinguiu -a com o Prémio para a área do ensino. Em Junho do mesmo ano recebeu a Medalha de Cidadã Poveira (grau prata).
    Sobre o primeiro dos prémios recebidos escreve Luísa Dacosta em entrada do seu diário escrita em Matosinhos em princípios de Abril:

    “Hoje, inesperadamente, telefonou a Maria Antónia Palla a anunciar-me que eu tinha ganho o prémio Máxima, – Como?! – Sim, sim – insistia ela –, ganhou por unanimidade do júri: Paula Morão, Alçada Baptista, Pedro Támen, o seu diário Na Água do Tempo. Parece-me mais surpreendida do que contente… – insistia.
    Claro havia a surpresa, porque não sabia que a editora tinha concorrido e talvez tivesse deixado transparecer o remorso, que é sempre um prémio, pelos que o teriam merecido e nunca ganharam.
    - Sim, sim, tinha ficado contente, até porque o prémio me dá a possibilidade de realizar um sonho antigo: ir a Praga.”   
    A título pessoal têm sido vários os intelectuais que se têm pronunciado sobre a escrita dacostiana, tomada esta ora na sua particularidade, ora na sua globalidade. Assim, vejamos o que o ensaísta Eduardo Prado Coelho escreveu sobre a escritora que conheceu em Paris, em 1992, por ocasião da Expolangue:
   
    “Acontecimento para mim importante nesta Expolangue: o encontro com alguém cuja força, energia, alegria da palavra, me seduziram de imediato. Falo da Luísa Dacosta, de quem pouco tinha lido, confesso, e nada com um mínimo de atenção. Ela chegou a Paris num momento difícil, por motivos de saúde, o que não ajudava em nada. Contudo, mal começou a falar percebi que era uma pessoa que precisava de conhecer.
    E senti-me extremamente incomodado com a ideia de que durante todos estes anos passei ao lado dos seus livros. Gostaria que tivéssemos conversado, mas o lugar era inóspito, e as circunstâncias muito pouco favoráveis. Espero que fique para a próxima, e que a próxima ocasião chegue cedo. Porque o que mais me tocou na Luísa Dacosta foi um certo uso da linguagem capaz de impor a autoridade das palavras sobre o mundo, e uma espantosa capacidade de pensar entre as palavras, e uma sabedoria que lhe permite conhecer o mar não apenas como realidade concreta e quotidiana mas como pensamento” (in A Maresia e o Sargaço dos Dias – poesia).

    Contrariando, em parte, uma afirmação da autora – “A minha escrita centra-se mais na palavra do que na efabulação” – David Mourão Ferreira escreve em “Luísa Dacosta: o real e o inventado”:

    “Desde há muito admiro, em Luísa Dacosta, minha companheira de geração (…) a extrema limpidez de uma escrita tanto mais exigente quanto mais fluida. (…) Luísa Dacosta amiúde nos dá a sensação, mas tão-só a sensação, de privilegiar o verdadeiro sobre o inventado, o vivido sobre o ficcional. É todavia evidente que esta sensação resulta da mestria com que nos são apresentados os seus enunciados narrativos. (…)” (in Natal com Aleluia – contos)

    Se há abordagem crítica da multímoda obra de Luísa Dacosta que recolha consenso, tem ela a ver com a sua escrita, com a importância que ela atribui à palavra (talvez para ela, como para Eugénio de Andrade, as palavras sejam como um cristal), com o rigor e a depuração linguística conseguidas, independentemente do seu público-alvo.
    Tendo publicado apenas um livro de versos, a poesia marca presença na sua narrativa, mesmo quando regista episódios prosaicos de um quotidiano a que presta uma atenção interventiva e, por vezes, apaixonada.
    Para documentar este traço estilístico, apoiemo-nos nas suas próprias palavras e nas de alguns dos seus admiradores. Em Luísa Dacosta Entre Sílabas e Luz (Pequena fotobiografia) são registadas afirmações suas, como estas:

    “A minha escrita centra-se mais na palavra do que na efabulação”;

    “A língua é um instrumento polifónico e criativo, um corpo vivo, não dicionarizado e de museu. Está sempre a nascer, cheia de surpresas e de rebentos seivosos. Experimentam-se vogais e consoantes como quem experimenta uma gaitinha de beiços, como quem trinca um limão ácido”;

    “As palavras são como lâminas rasgando os muros brancos, calcinados”;

    “Gosto de desfolhar a palavra, pétala a pétala”;

    “Escrever é cerzir, tecer, diálogo entre o cérebro e a mão”;

    “(…) Na minha infância, como não havia televisão, fui criada com histórias da tradição portuguesa. E empenhei-me em passar esse amor da palavra aos alunos, tentar deslumbrar os alunos pela palavra”.

    No livro referido, coordenado por Laura Castro, responsável pela selecção de textos, encontram-se depoimentos sobre as suas obras e, especificamente, sobre o seu estilo. Violante Florêncio pronuncia-se, em 1997, sobre a antologia De mãos dadas, estrada foradirigidas ao seu público de eleição: as crianças e os jovens, privilegiando o comentário à maneira de escrever de Luísa Dacosta:

    “A arte de Luísa Dacosta não cede a facilidades formais ou conceptuais. Para os mais pequenos, uma boa pedagogia da literatura não passa por aí. Passa por outros factores, peritextuais, sobre os quais esta autora sabe exercer uma vigilância atenta. (…)
    Contra modas (…) antes se tem mantido fiel, ao longo de uma vida de escrita, ao exortar de valores universais e intemporais, que tocam no nosso íntimo, como sejam os da amizade ou da rejeição, da beleza ou do sofrimento, da alegria ou da solidão, da imaginação, do sonho, da liberdade. Tudo isto é dado numa linguagem de uma beleza estética incontornável, onde, como vimos, proliferam inúmeros recursos expressivos, que provocam uma recepção afectiva e estética a quem os lê ou os escuta”.

    Em 1999, Ramiro Teixeira invoca o prazer do texto de que trata, em obra homónima, Rolland Barthes. Parece-nos legítimo defender a ideia de que a escritora em causa subscreveria as seguintes palavras do estruturalista:

    “ Se leio com prazer esta frase, esta história ou esta palavra, é porque todas foram escritas no prazer (este prazer não entra em contradição com os lamentos do escritor). Mas o contrário? O escrever no prazer garantir-me-á – a mim, escritor, – o prazer do meu leitor? De modo nenhum. Esse leitor, é necessário que eu o procure, (que eu o ‘engate’), sem saber onde ele está. Cria-se então um espaço de fruição. Não é a ‘pessoa’ do outro que me é necessária, é o espaço: a possibilidade de uma dialéctica do desejo, de uma imprevisão do fruir: que os dados não estejam lançados, que exista um jogo”.

    Voltemos a Ramiro Teixeira:

    “(…) Não foi, pois, somente ao estilo, à plasticidade e elegância da forma que me rendi, mas, essencialmente, ao que em tal existe de função mental e de sensibilidade superiores. Há, pois, uma força oculta no textual, cujo significado está para além daquilo que nos dicionários se regista. (…) Em Luísa Dacosta, a palavra, a escrita, não se concretiza primordialmente na construção deliberada do fim em que se pretende objectivar, antes evolui em transformação, explorando revelações, virtualidades insuspeitáveis, tornando-se, em súmula, um veículo de incomensuráveis possibilidades, as quais tanto nos remetem para sintonias intertextuais quanto para efeitos epifânicos de interacção de sentimentos”.

    Do que fica registado se conclui não ser fácil eleger este ou aquele texto como comprovativo da justeza das apreciações transcritas. Não passarão elas de abstracções teóricas inconsistentes se não ilustradas com as palavras da autora. Mesmo que a sua escolha seja forçosamente aleatória por pessoal, cumpre o seu objectivo e não defrauda expectativas, dada a riqueza, o rigor, a harmonia frásica, a imagética, a plasticidade, o visualismo descritivo, a depuração de uma escrita resultante de um labor aturado (“ só sou capaz de trabalhar sem horas à minha frente”.)

    A nossa escolha recaiu sobre o texto introdutório do segundo volume da citada antologia:

    “E onde, juntos, um dia voltaremos…
    Lembram-se? Lembram-se ainda?
    Voltei, companheiros meus. Diante de nós desdobra-se, infinda, a estrada a percorrer de mãos dadas. De novo nos esperam os frutos do sonho, as hastes altas, delicadas e frágeis da ternura, as pétalas da alegria que um vento de liberdade solta e margina. De novo, com poetas e prosadores, voltaremos ao reino, encantado, das palavras que o tempo não desgasta, sobre as quais não tem poder, já que, voantes, atravessam as idades e os séculos e poisam sobre nós, luminosas, puras e lavadas como os corais do fundo do mar. Toquem-nas, recolham-nas como búzios guardadores de ecos sidos! Respirem-nas, acesas de saudade, cariciosas, sumarentas de desejos, de quereres recônditos, sementes de coração a oferecerem-se tímidas! Ouçam-nas cantar! Iguais e diferentes, luas de muitas faces e rostos vários, mágicas flores inconsistentes de arco-íris, vejam-nas transformarem-se sob os velhos olhos! Agora já não aves, nem sonhosos ninhos onde apetece regressar, mas gumes exactos que trespassam a realidade e a recolhem, agora acusadoras como rodas de punhais a peitos de traidores e à mordaça preparada para abafá-los, agora espelhos deformantes de falsas glórias. Habitem-nas com os vossos corações, aprendam a amá-las: as palavras – pátria nunca ocupada e sempre materna, a única onde alguns puderam experimentar, quando lhos negaram, os espaços dilatados da liberdade e da vida.”

    Sendo objectivo desta comunicação contribuir para um melhor conhecimento de uma escritora que, mau grado os louvores da crítica, não atingiu a notoriedade que lhe é devida no panorama cultural dos séculos XX e XXI, não poderemos dela excluir o que a sua obra tem de dicotómico em termos geográficos e temporais. Parece-nos ser óbvio o binómio montes – mar associado a um outro – infância/juventude – idade adulta, com o que ambos encerram de notações memoralistas, culturais e sociais, elementos base de uma narrativa em que a realidade espreita por detrás da ficção.
    Luísa Dacosta fala de Trás-os-Montes em narrativas retrospectivas quando a infância lhe apetece, quando os lugares, os tempos e as gentes de um ontem invadem os espaços, os tempos e as gentes de um hoje, não para desalojá-los, ciumentamente, do perímetro afectivo da mulher de emoções, antes para salpicar os seus momentos de desânimo de uma água benta pacificadora.
   De acordo com o segundo volume do seu Diário, Um Olhar Naufragado, a escritora nascida em Vila Real esteve pela última vez nesta cidade em Abril de 2005. Ignoramos se aqui voltou posteriormente, mas tivemos o privilégio de vê-la e ouvi-la, no pequeno auditório do nosso Teatro, aquando da apresentação de Houve um Tempo Longe Vila Real de Trás-os-Montes na obra de Luísa Dacosta das edições Asa. Deslumbrámo-nos com a sua vivacidade alegre, com o desassombro das suas críticas, com a fluidez desafectada e espontânea do seu discurso, com o toque de coquetterie de uma senhora-menina com um brilhozinho nos olhos e nas palavras, protegida com as jóias da vovó Ana, como escreve, a propósito no referido Diário.
     Constitui o livro um repositório de memórias cronologicamente balizadas entre 1949 e 2004, documento aliciante para os vila-realenses em geral e para estudiosos da vida local, em particular, ao longo de várias décadas do anterior século. Se, como escreveu Shakespeare, “A memória é a sentinela do espírito”, a de Luísa Dacosta revela uma clarividência consistente e lúcida, um rigor de pormenores facilmente comprovado por quantos palmilharam os mesmos espaços, sentiram os mesmos cheiros, provaram os mesmos sabores, conheceram as mesmas gentes, os mesmos costumes e tradições. Só que a maior parte desses não saberiam exprimir tudo isso com o colorido e o visualismo, com a segurança e mestria estilística que são apanágio de uma escritora a quem a emoção das evocações não retira veracidade.
    Numa página do seu diário, com o título ONDE NASCI, pode ler-se:

    “Como lembrava a cidade, tantos anos passados?
    Maneirinha, como a sépia da fotografia que tinha na sala, datada de 1927, ano do seu nascimento, e onde se via, meio escondida pelas árvores, a casa da R. Cândido Reis, que a tinha visto crescer, frente às torres da igreja de S. Pedro. Fora lá baptizada. Lá se queimava, no adro, o Judas de palha, naquele tempo em que a igreja, enganada nas contas, ressuscitava Cristo um dia antes, no Sábado que amanhecia, festivo, com repique de sinos e foguetes de aleluias. A cidade era para mim uma rede de referências afectivas, que as minhas pernas, novas e andadeiras, percorriam com facilidade. Movia-me entre o colégio e a praça (então ainda no Campo), onde ia comprar, com os dois tostões ganhos a limpar os talheres, pinhas, castanhas, ou tremoços, conforme o tempo. Nos dias de mercado, os arredores enxameavam a cidade com molhadas de hortaliça, palha, vides para as braseiras, calondros, ovos, galinhas e garnizés. Vinham de Lamas d’Ôlo, com burricos carregados de carvão, como a senhora Maria Dornelas, que me deixavam montar o animal, Parada de Cunhos, Folhadela e Abaças, onde os habitantes tinham privilégio divino: “Matar só Deus e os de Abaças”.

    Acompanhando os registos memoralistas da autora, percorremos ruas, avenidas e jardins, entramos no mercado e nas lojas comerciais, rendemo-nos à magia dos robertos, ouvimos a música do Jardim da Carreira, espaço eleito de namoros à moda antiga, vamos ao S. Brás comprar uma gancha, escutamos os pregões da Rita Peixeira, vamos comprar um panelo de Bisalhães à feira de S. Pedro.          
    Mas Vila Real não se limita, nas evocações da narradora, aos espaços urbanos, como pode ver-se no texto por nós escolhido para ilustrar o seu enraizamento    às origens. Em Agosto de 1949 escreve sobre a Campeã, aldeia do Marão à época com uma identidade conferida pelas coberturas em lousa dos telhados das casas:

    “O vale está coberto por um mar de nevoeiro pouco espesso, feito de luar derramado. Os verdes têm ondulações extáticas de alga. Enormes peixes (as escamas prateadas brilham com fosforescências submarinas) repousam no fundo. Há na paisagem qualquer coisa de adormecido, de sonho, que a serra vigia atenta como velho dragão desconfiado. As patas estiram-se-lhe pelo vale, num espreguiçar possante, e o dorso farpeado de bandarilhas (ou serão pinheiros?), cheio de cicatrizes, que as ovelhas sugam como moscas importunas, eriça-se-lhe o céu.
    Agora (por causa do sol? Da badalada solitária do sino?) a realidade começa a insinuar-se. Não uma realidade viva. Mas a de um pisa-papéis que alguém agitou subitamente. A névoa, já teia a esboroar-se, solta-se. E os seus dedos esguios correm o harpeado dos pinheiros, que franjam o vale, esborratando os verdes à medida que sobem.
    O quotidiano afirma-se cada vez mais. Onde estão as algas, o dragão, os peixes de escamas prateadas? Apenas árvores, a serra, casas (a pretura húmida dos telhados é perfeitamente visível). Casas de homens, que começam a chamar-se, de longe, misturando as vozes ao canto dos galos”.

    “Não se deve regressar aos lugares onde a infância se mitifica”, escreve Luísa Dacosta. Porque a auréola poética com que a memória a emoldura se desfaz perante marcas de um presente prosaico e esteriotipado.
    Os seus regressos são marcados pela desilusão e pela saudade como comprovam palavras suas escritas em/sobre Vila Real em Maio de 2001 e em 27 de Abril de 2005, insertas em Um Olhar Naufragado (Diário II) e de que transcrevemos as seguintes:

    17 de Maio, Vila Real

    “Acordei cedo e ao chegar à janela mergulhei na infância. Uma infância envolvida por uma névoa de sonho, com rasgões de azul que escondia e revelava as margens penhascosas do Corgo. Abruptas, ainda selvagens, com quedas de água, brancas e espumosas, contidas entre fragas aguçadas a que o musgo, os líquenes e a floração dos salgueiros adoçavam as arestas. Felizmente, a descaracterizada cidade, com as ruas por onde tinha andado e vivido, ficava atrás dos onze andares do hotel. E assim podia seguir o asselvajado das margens, onde não consegui já distinguir o jardim de buxo, com rosas e peónias do Sr. Padre Filipe, mas distinguia a cascata da Peneda.”

    27 de Abril, Matosinhos
     
    “(…) Voltara, afinal, para quê? Tudo tinha mudado. A cidadezinha também já não era a mesma. As casas já não tinham as portas, sempre abertas, para se responder a quem chamasse ou batesse as palmas, nas escadas: ‘Entre quem é’. Tinha crescido desordenadamente, em novos bairros, falsamente moderna, com templos de consumismo, arranha-céus, novos hotéis, o seu centro histórico desfigurado! Perdida a casa e o quintal. Perdido o mastro da japoneira. (…)
    O que restava?
    Ainda e sempre, talvez, aquela rua de Margarida Chaves, que no seu tempo era a única com nome de mulher, por onde ia espreitar a montra do Bazar dos Três Vinténs, depois de ter palrado com o papagaio das Rainhas latoeiras. Mas já não choviam sobre ela aquelas bênçãos de outrora: - Nosso Senhor lhe dê muito que dar e não que pedir, abençoada!”.

     O mar é, contudo, o seu espaço vital, como que uma necessidade orgânica indispensável à sua sobrevivência mental, ao seu equilíbrio psíquico. Como o foi para Sophia que, antes de partir, deixou uma promessa: “Quando eu morrer voltarei para buscar / Os instantes que não vivi junto do mar”.
    Actualmente a residir em Matosinhos, Aver-o-Mar onde, num moinho reconstruído viveu e escreveu algumas das suas principais obras, continua a exercer sobre ela uma força de atracção irresistível, a fazer-lhe apelos irrecusáveis. Aí volta, qual romeiro pagador de promessas. Aí vai recordar as lições de vida que lhe deram as mulheres humildes, a sua verdadeira Universidade, elas que “murcham aos trinta anos”, elas, as suas heroínas anónimas da vida real, que conheceu “ainda analfabetas na resignação do trabalho duro sem remuneração e sob o jugo, pesado, da brutalidade dos homens”.
    Em Setembro de 1993 escreve no seu diário:

    “Em breve terei de deixar a praia, a casa, a janela do mar, onde a nortada chora. O que vai custar-me abandonar o telhado, onde ninho sempre, frente às estrelas ou ao esplendor da lua, carne de magnólia, antes de me deitar. Custa-me abandonar o telhado, onde o vento me desfralda e quase despe, quando me ergo das dunas de cimento, frente a este mar de azul tão ultramarino, que parece reflectir mil céus”.

    Sobre a importância da praia na vida e na obra da escritora escreve, em 1980, António José Saraiva:

    “ Com Luísa Dacosta vivemos o universo da praia, não da praia turística da sociedade mercantil, mas da praia solitária ainda adormecida na sua vida tradicional e fecunda, com a orla branca, que há milhares de anos, dia após dia, onda após onda, se abre à flor do mar e arrasta o sargaço. E com a sua gente ao mesmo tempo prática e sonhadora, de uma clarividência inocente e cortante, própria de quem conhece as próprias coisas e não apenas os seus símbolos abstractos, de quem sabe os segredos das sementes, os esconderijos dos peixes ou o caminho do mar para o Brasil. Desde Raul Brandão ninguém captou tão finamente este encontro da terra e do mar”.

    O mar é o tema central do seu único livro de poesia (A Maresia e o Sargaço dos Dias) e de A Ver-o-Mar (Crónicas). Sobre esta colectânea escreveu Clara Rocha:

    “No volume A Ver-o-Mar, em trechos de evidente recorte brandoniano, a autora evoca flagrantes e figuras pitorescas da povoação nortenha, as fainas da pesca e do amanho da terra, a dureza do trabalho e o sofrimento, os diálogos pontuados de saborosas expressões populares e regionais, e sobretudo a presença impositiva do mar, mar que a imaginação criadora espiritualiza e transfigura. É a ânsia de ‘guardar em amálgama fundente, estes rostos gretados de riso e lágrimas, o choro das crianças, estes penedos, a marca dos remos, o mosquiteiro das redes, o peso das âncoras, as serpentes inofensivas do cordame, os lençóis escuros das algas que emurchecem, as línguas de espuma, estes céus, o escrameado das nuvens, quando as há, a liberdade, ilusória, dos papagaios de papel, o risco dum voo, a mancha brusca e alada das pombas, o negro silêncio esburacado das estrelas – tudo o que é lastro em mim e me corre no sangue’.”

    Nas crónicas coligidas nesta colectânea confirma-se a paixão de Luísa Dacosta pela paisagem física e humana da beira-mar a remeter-nos para palavras do poeta alemão Hölderlin. No poema “O Único”, escreve que ama mais “as velhas venturosas praias” do que a Pátria.
    Vejamos um excerto de um desses textos:

   “ De que cor é este mar, nunca igual e sempre diferente, de ritmos vários, cadenciado como o bater certo dos remos, inquieto como a ansiedade dos que trazem os afectos sobre as ondas, fervente como um cachão raivoso, quieto, quieto, marginado pele linha, rubra, do crepúsculo? De que cor é este mar, onde se miram nuvens e gaivotas, onde se esfriam e se apagam as estrelas da madrugada?
    Azul. Azul, como o manto das imagens milagrosas. Azul, como o olhar perdido dos náufragos. Azul da cor da noite. Verde fel. Verde da cor dos limos. Verde da cor dos barcos. Loiro cor de areia, das tranças e do cordame. Ferrugem, cor das âncoras e das redes. Castanho cor do sargaço. Palhetado de sol e luz. Irisado, como as escamas dos peixes. Rosa, como certas algas e corais, como a garridice das blusas em dias festivos. Rosa como as flores de papel do altar do padroeiro. Vermelho da cor das guelras. Sanguíneo. Violáceo, cor de tinta. Roxo, como uma Quaresma líquida. Cinzento. Brumoso de névoa e mistério. (…) Branco de sal e espuma. Branco da cor das velas. Negro, como as faixas das mulheres e o luto das viúvas. Sem cor, como a angústia das que não têm sequer um cadáver para velar.”

    No segundo volume do diário de Luísa Dacosta encontram-se entradas relativas a estadias suas em Quarteira nos verões de 2003 e de 2004. Nelas marcam presença espontâneas comparações com a sua praia – “Este mar azul e este céu azul não são nem o meu mar nem o meu céu. A 3 de Junho de 2004 escreve:

    “(…) O que me falta? O que me dói nesta beleza?
    Faltam-me as dunas de um telhado antigo, mirante meu para a noite, a lua e as estrelas. Dói-me uma praia, longe, na geografia e perdida no tempo.”

    Esse mar seu a inspira, a transfigura em poeta. Em prosa e em verso.

                                                          
                                                                       MAR NOSSO MAR

                                                           Fímbrias de água, reentrantes,
                                                           arfar de ondas e de dunas,
                                                           trespassadas de luz
                                                           - espuma e ânsia, nossa dos dias.
                                                           Mar, espelho de nuvens
                                                           e dos luzeiros do céu,
                                                           placenta, morrente e crepuscular.
                                                           Ligação e hífen
                                                           de tudo o que ansiamos
                                                           com lágrimas reprimidas
                                                           e raivas inconfessadas.
                                                           Noite e abismo dos sonhos
                                                           - indiciados por vagos navios a perderem-se ao longe
                                                           e uma teimosia, vertical, de passos
                                                           impressos na beirada.

    Em homenagem prestada à escritora em Junho de 2009 na Feira do Livro do Porto, afirmou ela: “Vir trabalhar para o Porto mudou a minha escrita. A ligação a Aver-o-Mar deu-me outra inspiração”; “Eu gosto de um mar violento: que chora, que canta e que uiva.”

    Do que fica dito se poderá concluir que, se Luísa Dacosta é uma mulher da cultura transmontana por aí ter as suas raízes, nunca renegadas, mas a perderem força com o correr dos anos, ela é, pelas vivências de uma vida já longa, uma escritora da orla marítima. E, pelos valores que defende, pela preservação de identidades, pelas causas por que luta, pelas preocupações sócio-culturais e pedagógicas, pela qualidade da sua escrita, um vulto de destaque no panorama literário da nossa contemporaneidade.
   

Bibliografia activa

A-VER-O-MAR crónicas, Figuerinhas, Novembro 1980;
HOUVE UM TEMPO LONGE Vila Real de Trás-os-Montes na obra de Luísa Dacosta, Edições ASA, Porto, 2005;
UM OLHAR NAUFRAGADO (Diário II), Edições Asa, Porto, 2008;
DE MÃOS DADAS, ESTRADA FORA…. Edições ASA, Porto, Junho de 2002.

Bibliografia passiva

 “Ficção dos anos 80” in História da Literatura Portuguesa As Correntes Contemporâneas, Direcção de Óscar Lopes e Maria de Fátima Marinho, Publicações alfa, Lisboa, 2002.
FERREIRA, Isabel A., Luísa Dacosta “no sonho, a liberdade…” edição de autor, Fevereiro de 2006.
FERREIRA, David-Mourão, in NATAL COM ALELUIA, Edições ASA, 2ª edição, Porto, Junho de 2002.
COELHO, Eduardo Prado, in A MARESIA E O MAR DE SARGAÇOS, Edições ASA, Junho de 2002.
LUISA DACOSTA ENTRE SÍLABAS E LUZ (Pequena Fotobiografia), Coordenação e recolha de textos de Laura Castro, Edições ASA, Porto, Junho de 2002.


  • Comunicação apresentada no Seminário organizado pela UTAD sobre “A MULHER NA CULTURA TRANSMONTANA” em 3 de Março de 2010.

                                                                                                                    M. Hercília Agarez

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