25 julho 2011

APESAR DO VENTO


[Publicamos de seguida o belo texto que a Mara e o Marcolino Cepeda nos enviaram, com o convite renovado para partcipar no blogue que acabaram de lançar
http://nordestecomcarinho.blogspot.com/]



Apesar do vento, Bragança acordou hoje cheia de sol e de calor. Tudo convidava a um passeio sem horas. Nada de pressas, apenas o embeber a alma na natureza, sempre tão pródiga em pequenos e grandes detalhes, em belas paisagens, em perfumes simples e naturais.  
Podemos apreciar o belo azul do céu, o mais belo azul do mundo inteiro. Quem me dera poder transportar nos olhos este azul para onde fosse, mesmo que a alma e o coração estejam tristes e enevoados. Mesmo que a chuva caia insistentemente qual garoa paulistana, tão aniquiladoramente frustrante, como o sonho mais íntimo que não conseguimos realizar.
Trás-os-Montes brilha em todo o seu esplendor. Começamos a receber os imigrantes que por este mundo labutam sem nunca esquecerem a terra que os viu nascer.
Pertencemos ao sítio onde pela primeira vez o oxigénio nos feriu os pulmões ou onde involuntariamente emitimos o nosso primeiro vagido. É qualquer coisa inexplicável. Pode ser que a genética explique… Faz parte de quem teve a sorte ou o azar de aqui iniciar uma vida.
O nosso desejo é que este sentimento incompreensível que nos faz regressar sempre que a vida no-lo permite, possa, de alguma forma, repercutir-se a bem da nossa região.
O que nos move, a mim e ao Marcolino, é esse sentir. Foi por esse pressentimento que eu atravessei o Oceano Atlântico, não porque não fosse feliz em S. Paulo, mas porque estava escrito que era aqui que deveria estar.
Este blogue é um pequeno grão de areia neste mar imenso de meios ao nosso alcance para divulgar ideias, pessoas, actividades que nos obriguem a falar de Trás-os-Montes.
A generalidade das pessoas tendem a atribuir maior importância ao que é “estrangeiro” (entenda-se: “Santos da terra não fazem milagres”) esquecendo-se do que de melhor existe, à distância de um olhar, de uma leitura atenta, de uma tertúlia entre amigos pela madrugada fora, onde nos falam de conterrâneos que realizaram/realizam feitos verdadeiramente excecionais.   
Então, nasce a ideia de divulgar estas pessoas e os seus feitos. Muitos contactos realizados, alguns convites declinados, alguns quilómetros calcorreados em prol de uma ou outra entrevista, surgiu o programa de rádio.
Alguma pesquisa, alguma insistência, conseguimos reunir os dados necessários para estruturar a coluna vertebral do projecto.
Fizemo-lo. Foi para o ar e em oitenta e duas semanas tivemos o prazer de conhecer pessoas absolutamente fantásticas, cada uma com as suas características e particularidades, actividades e ofícios, sonhos realizados e por realizar com as quais aprendemos muito. Estas, pouco mais de oitenta, conversas dividiram-se por um período de três anos e de acordo com a programação da RBA.
Tentámos publicar em livro todo o material daí advindo mas não conseguimos que se concretizasse, por falha nossa, talvez. Ficámos incomodados. Tínhamos material de excelência que não podia ficar na gaveta.
Há momentos de alguma iluminação e, lembrei-me de que o poderíamos divulgar com a utilização das novas tecnologias da comunicação. Se bem pensado, melhor concretizado.
Aqui estamos e o que mais desejamos é atrair muitas pessoas para a nossa causa: a defesa da nossa região; a divulgação das suas potencialidades; o surgimento de ideias em prol do desenvolvimento. Enfim, gerar um fórum de discussão onde todos possam participar e colaborar para o bem comum de Trás-os-Montes.
Este é o sonho que nos move.

Mara e Marcolino Cepeda
Bragança, 24 de Julho de 2011   




15 julho 2011

Trás-os-Montes e Alto Douro: Mosaico de Ciência e Cultura

[Aqui se deixa a intervenção de Ernesto Rodrigues na apresentação da obra Trás-os-Montes e Alto Douro: Mosaico de Ciência e Cultura, que teve lugar dia 14 de Julho de 2011, às 19 h., na Casa de Trás-os-Montes e Alto Douro em Lisboa, tal como fio anunciado neste blogue.]




Ernesto Rodrigues

Foi apresentada, em Junho, em Bragança, A Terra de Duas Línguas. Antologia de Autores Transmontanos, e já temos aqui segunda. São diferentes os critérios na escolha dos nomes que citarei – não exclusivamente nascidos na região –, com áreas de especialização que transcendem a poesia, a ficção e alguma antropologia –, mas ainda temos duas dezenas de nomes comuns. De tanta fartura nenhum outro chão se pode orgulhar, e nascendo estes frutos numa «pátria pequena», onde não vou desde 2002, quando apresentei edição de Poesias do ilustre filho Augusto Moreno, aqui evocado por A. M. Pires Cabral. Se, agora, só os vivos pesam, é um poeta maior do século XIII que nos reúne: trata-se de D. Dinis, que à terra deu foral em 26 de Abril de 1286. Vem reproduzido nas páginas 245-246, encimando o último e mais longo apartado desta obra, antes das biobibliografias dos colaboradores, lista de autarcas e iconografia – cem páginas dedicadas a Lagoaça, «terra adoptiva» de António de Almeida Santos (secundado por evocação da mulher, Maria Margarida Moreno areias de Almeida Santos), poliedricamente olhada na sua agricultura e minas, por Adília Figueira Verdelho e Hirondino Isaías; num reconhecimento militar em 1845, por Aniceto Afonso; enquanto terra de marranos, assunto versado por António Pimenta de Castro e, mais extensamente, pela dupla António Júlio Andrade / Fernanda Guimarães; na inteligência das alianças matrimoniais, por Vítor Barros. Já figuras locais de carne e osso, de sangue-azul ou típicas, do sapateiro ao coveiro, são descritas em Otília Pereira Lage e Amadeu Martins. Passam memórias na retina de Pedro Figueira Verdelho, Teixeira Leite, Maria Aliete Costa, Manuel Francisco Felgueiras Pinto, Rui Carvalho, Adelaide Neto. O presidente da Junta, Carlos Novais, traça uma fisionomia histórica, geográfica, sociocultural, paisagística e patrimonial – relevem-se pinturas rupestres e a tipologia dos moinhos – de freguesia com cerca de 500 habitantes. Enfim – primeiro que todos, ao qual é devido um aceno de gratidão –, o coordenador deste projecto, Armando Palavras, cura de aspectos religiosos de Lagoaça e Freixo de Espada à Cinta nos séculos XVII e XVIII, com anexo documental, e revela-nos a origem mítica do berço natal: Lagoaça significaria «serpente ansiosa», a crer em história de Cadmo e seu filho, bebida no ilustre transmontano Ferreira Deusdado.
Com o favor de Nossa Senhora das Graças, a cuja Comissão de Festas preside António Neto, e a rede de contactos de Armando Palavras, eis reunidos 74 autores, incluindo já as máscaras literárias de alguns e o Miguel Torga da capa e badana, no pretexto de 725 anos do gesto dinisino – e não 750, erro de contas do presidente da Câmara de Freixo de Espada à Cinta, José Santos (p. 341). É um feito, para tão breve tempo de preparação; e mais um dos convívios possíveis, à lareira da palavra, em que a região singularmente se afirma.
Se começámos pelo fim do mosaico, honrando o próprio lugar, olhemos ao demais transmontanismo. Adriano Moreira lança um alerta: “Voltar à terra e ao mar”. A política de «reserva alimentar» tem sido esquecida pelos responsáveis, de que é corolário a desertificação do interior. O mar também foi abandonado, e o país sofre. Como proceder? A conquista do húmido elemento, desde o século XV, foi um desígnio em que se envolveram milhares de comprovincianos, alguns nomeados entre os grandes navegadores. Do concelho de Freixo de Espada à Cinta saiu o número mais significativo de missionários, mas não só, como ilustra Inocêncio Pereira. Hoje, reduzidos às metrópoles nacionais e europeias, face às quebras migratórias africana e brasileira, não é fácil encontrar um novo D. Sancho I, que repovoe, e devolva a esperança do lugar. Há, felizmente, uma premissa, que também ressalta da iniciativa que nos reúne: a inquestionada paixão do terrunho, como teve um aqui fac-similado Fernando Subtil, lembrado na prosa falada de Hirondino Fernandes. Diáspora ou «tradicional comunitarismo», segundo Luís Dias de Carvalho, seriam solução. Na era da informação – sobre que o General Loureiro dos Santos discorre –, é suficiente, julgo eu, que as redes por satélite inspirem as dos transportes e as da ciência, para que se esbata o conceito de diáspora e se actualize o de comunitarismo. Serão úteis, neste ponto, os conselhos de Maria Márcia de Almeida Trigo sobre mercado de trabalho, a encerrar o primeiro terço da obra. Visando um turismo paisagístico e cultural, alfobre tão rico não se encontra, e fica a léguas do nosso romanceiro e húmus etnológico esse Alentejo dos poetas populares coligidos há uns anos por Modesto Navarro; de costumes e tradições falam Alexandre Parafita, sobre o Entrudo; António Pinelo Tiza, sobre a festa da cabra e do canhoto em Cidões, Vinhais; do bom vinho e da castanha vertida em marron glacé, José António Silva e Jorge Lage, devendo, no meu entender, entrar nesta secção o compósito de saudades gastronómicas de Virgílio Nogueiro Gomes, o melhor generalista em comes e bebes da região. Quanto ao dicionário de transmontanismos, vêm achegas de Telmo Verdelho, um pouco dispersas por outros, como Hélder Gomes, perdido entre lagoaceiros, que podia integrar o painel da narrativa. Deslocado Virgílio Gomes, as reminiscências de Donzília Martins poderiam acompanhar incidentes flavienses e macedenses do pós-Abril de 1974 de Manuel António Pires Brás. Mas sei como é difícil ordenar uma antologia…
Na movência das nossas vidas, urge, pois, olhar para o nosso chão, acordar com olhos novos para a terra que se conhece, mas nunca sabemos por inteiro. Por isso, viajam ainda nela Bento da Cruz, João de Sá, ou, Douro acima, António Barreto, Ilda Pinto Ribeiro, Carlos Abreu. Num enfoque arqueológico, por Riba Côa, sobem Alexandra Cerveira Lima e António Martinho Baptista. Já etnografia barrosã e História pátria que transcende as fronteiras naturais da região vêm na pena de António Lourenço Fontes e Barroso da Fonte.
Entreabrem-se, assim, disciplinas científicas, facilmente coligáveis com o perfil do médico e professor vinhaense Barahona Fernandes, por Abílio Gomes, e digressões universitárias de Maria dos Anjos Pires e da borboleta azul, cujos mistérios no planalto de Lamas de Olo desvenda Paula Seixas Arnaldo. Em sentido restrito, a cultura deste mosaico recobre museologia, por Nelson Campos, sobre o Museu do Ferro de Moncorvo; pintura, com Eugénio Cavalheiro comentando visitações dos séculos XV, XVI e XVII, sem espaço, nem cor, para as reproduções; música, segundo propostas de José Neves e Paulo Pinto, sendo que este, dos Galundum Galandaina, caracteriza o grupo dentro da música mirandesa e da padronização da gaita de foles. Confesso duas surpresas: a participação de Nadir Afonso, arquitecto e pintor maior, em confissão de artista, resumindo a sua busca; e, pela primeira vez, leio três páginas de Roberto Leal, que tira dos pauliteiros, da sanfona, da música, em suma, «o sentimento de pertencer a um lugar, a um povo, a uma raça» (p. 217). Mais espaço tem a literatura.       
Tenho a honra de três pinceladas líricas – foi, decerto, por só ocupar um fólio que me convidaram para o esforço inglório de apresentar estas 400 páginas –, acompanhado por Fernando de Castro Branco, Ilda Pinto Ribeiro, Rogério Rodrigues disfarçado em Pedro Castelhano (com versos do seu mais recente livro, entre os raros não-inéditos), Sílvio Teixeira. Esperaríamos outros poetas, mas a amostra é suficiente.
Passando à mais nutrida narrativa, é significativo de uma comunhão que ultrapassa ideologias, e dá gosto ver, lado a lado, António Borges Coelho e António Passos Coelho. Aquele, além de historiador e professor universitário jubilado, mostra-se o enternecido poeta que também é, com o seu Homem do Chapéu Amarelo; este cria a sugestiva figura de um filho das ervas que terá o inaudito nome de Pai do Trabalho. Seguem-se Bernardino Henriques, Fernando de Castro Branco em tom evocativo, Fernando Chiotte Tavares entre Lisboa e França, Jorge Tuela, os diálogos insólitos de Manuel Cardoso à volta dos trasgos: «– Trasgos, que é isso, trasgos? // – Ora, senhor engenheiro, são trasgos!» (p. 101). É outro achado incluir um trago de J. Rentes de Carvalho e ouvir a figura impressiva do Faísca perguntar na nossa tão particular segunda pessoa: «– Tendes lume?!» (p. 97)
Quando, um pouco acima, subíamos o Douro, parámos na Terra de Miranda. Seria, já não uma injustiça, mas erro gritante omitir a realidade que é sermos a única terra de duas línguas, parafraseando a antologia que Amadeu Ferreira e eu organizámos. Esta indisputada riqueza justifica o texto conjunto de Carlos Ferreira e Júlio Meirinhos: aquele, definindo as vertentes histórica, antropológica, geográfica e cultural da Tierra de Miranda; este, narrando o processo legislativo de aprovação, pela Lei 7/99, de 29 de Janeiro, do Mirandês como segunda língua nacional. O feito é enquadrado pelo dito janicéfalo de Amadeu Ferreira / Fracisco Niebro. No primeiro texto, o vocábulo ‘ambuça’ alegoriza a força da palavra, que se transforma em gesto criador: o mundo nasce do fiat, é uma construção do verbo divino. Universo afim, a própria língua é um devir, tem que se dizer, buscar, multiplicar, derreter e acender em novas palavras, como anaforiza o poeta Niebro, também narrador de uma «stória trágico terrestre» vivida pelo pai do autor, na sua primeira emigração francesa, em 1947. É um documento impressionante de quem, 15 meses depois, volta a casa sem dinheiro.
Pegando na motivação com que fecha essa história – escrita por dever de memória –, outro tanto direi do escopo deste mosaico, o qual há-de perdurar entre as navegações felizes da cultura portuguesa.             




13 julho 2011

O Romance do Gramático


ERNESTO RODRIGUES (Torre de Dona Chama, 1956), poeta, ficcionista, crítico, ensaísta e tradutor de húngaro, é professor na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e presidente de direcção da Academia de Letras de Trás-os-Montes. Acaba de editar O Romance do Gramático (Lisboa, Gradiva, 2011).




O Romance do Gramático


Regresso à ficção com O Romance do Gramático (na Gradiva, Julho de 2011).

Formado por dois ‘livros’, O Romance do Gramático é a transcrição, com leitura actualizada, de um manuscrito (recto e verso) que o autor conheceu em família de judeus húngaros.
No primeiro ‘livro’, mostra-se, sob roupagens conventuais, um foco de resistência à ameaça turca, em 1532, na ilha de Bled, Eslovénia. O aveirense Fernão ou Fernando de Oliveira (1507-1580? 1581?), fugido dos dominicanos de Évora, dá-nos agitado romance de cristãos patriotas, o qual será posto no Index.
No segundo ‘livro’ – Uma história mal contada –, refaz-se a vida aventurosa de pioneiro, com Gramática da Linguagem Portuguesa(1536). Texto na terceira pessoa, atribuído a censor, é retomado pelo comum amigo Duarte Nunes de Leão, e deixado em herança a um inesperado copista do verso de vasto fólio – o filho que Oliveira perseguira durante 48 anos.
Entre documento e ficção, propõe-se um novo rosto do também historiador de Portugal e teórico da construção naval na Europa. Interessa reabilitar o espírito livre e heterodoxo de quem foi frade e desfradou-se, marinheiro ao serviço de França e prisioneiro de ingleses, e sofreu, por duas vezes, as injúrias da Inquisição, que o teve preso. Nesse reino do medo e da intolerância, a rebeldia e boa disposição destas páginas são o melhor antídoto, inclusive, para os dias de hoje.




11 julho 2011

Trás – os – Montes e Alto Douro – Mosaico de Ciência e Cultura - Apresentação


Trás – os – Montes e Alto Douro – Mosaico de Ciência e Cultura

         (colectânea de autores e temas oriundos de Trás-os-Montes e Alto Douro)

                                                     Apresentação

A obra recentemente dada à estampa, caracteriza-se pela sua diversidade temática e autoral. Os autores, movidos por total liberdade de consciência e pensamento, elevaram-se em asas de águia como o vento e discorreram o que lhes ditou a alma.
Dividida em “secções temáticas”, nelas está distribuído todo um manancial do rico alfobre transmontano e alto duriense.
Adriano Moreira e Loureiro dos Santos discorrem sobre temas da actualidade sociopolítica; Hirondino Fernandes, Telmo Verdelho e Luís Dias de Carvalho, reflectem sobre conceitos éticos e sobre transmontanismos.
Dos punhos de Abílio Gomes e Inocêncio Pereira, ressurgem algumas personalidades esquecidas pelo tempo.
Modesto Navarro viaja pela biblioteca da sua terra natal – Vila Flor. E Bento da Cruz, um mestre da escrita, à boa moda dos últimos narradores pronunciados por Walter Benjamin (cuja obra se não perdeu por milagre), não renuncia ao seu pátrio Barroso e ao Nordeste Transmontano. João de Sá embebe-se-nos os sentidos na sua viagem “barroca” por “terras de Dom Dinis”.
A beleza única do Douro é transposta para estas páginas através das imagens de António Barreto, ou pelas palavras simples de Ilda Ribeiro.
A poesia brota da alma erudita de Ernesto Rodrigues, do arrebatamento de Fernando Castro Branco e Pedro Castelhano e da simplicidade de Sílvio Teixeira.
António Borges Coelho com o seu “chapéu amarelo” esvoaça para lá da medievalidade onde é especialista; A. Passos Coelho, descreve com a sabedoria de um veterano as emoções humanas da sua aldeia, análogas às de Tolstoi, esse gigante russo, em “Servo e Senhor”.
Bernardino Henriques, Fernando Chiotte Tavares e Jorge Tuela embarcam em narrativas lúcidas e incisivas. Já J. Rentes de Carvalho com o seu “faísca” e Manuel Cardoso com os seus “trasgos” nos transportam para temas com laivos da Região.
Carlos Abreu filmou-nos a sua Loisa e Márcia Trigo divaga sobre um tema caro a todos – o trabalho.
Dos costumes e tradições descritas por Alexandre Parafita e António Pinelo Tiza, segue-se viagem por terras de Riba Côa no breve trecho de Alexandra Lima e por terras de Foz Côa com a descrição de António Martinho Baptista. Alarga-se o passo para aportar em terras do Barroso descritas pelo padre António Lourenço Fontes e Barroso da Fonte. O vento de Norte traz-nos então notícias das terras de Miranda, esculpidas em cinzel de ouro por Amadeu Ferreira, acompanhado na jornada por Carlos Ferreira, Júlio Meirinhos e Fracisco Niebro.
Donzilia Martins transporta-nos para lugares da infância e Virgílio Gomes para as saudades da sua Bragança.
Da arte ocupa-se Eugénio Cavalheiro, e Nadir Afonso medita com profundidade sobre conceitos que há muito o preocupam.
Os acordes musicais surgiram das melodias de José Neves, Paulo Preto e Roberto Leal; o renascimento do ferro moncorvense surge das mãos de Nelson Campos.
Da Ciência tratam os textos de Maria dos Anjos Pires e Paula Seixas Arnaldo. Aquela discorre sobre a Medicina Veterinária e esta sobre a leveza e a graciosidade desses seres esvoaçantes, pelos quais Winston Churchill tinha um carinho especial: as borboletas.
José António Silva e Jorge Lage tratam-nos do estômago. A gastronomia surge ao de leve pelos seus punhos; a crítica social ficou a cargo de Pires Brás.
A homenageada, a freguesia de Lagoaça que comemora os 725 anos de foral outorgado pelo Rei Dom Dinis, recebeu presente especial: um capitulo próprio. Inicia com uma canção de Monsenhor Ângelo Minhava e um belo estudo de A.M. Pires Cabral sobre o professor Augusto Moreno.
Aniceto Afonso aborda acontecimento antigo. Um reconhecimento militar que por lá passou em 1850. António Pimenta de Castro, António Júlio Andrade e Fernanda Guimarães tratam um tema caro à região – a questão judaica. Aliás, abordado por mãos de mestre no recente romance de Amadeu Ferreira: Tempo de Fogo. Vítor Barros elabora uma síntese antropológica sobre alianças matrimoniais, Maria Otília Lage vai à infância buscar memórias de laços de amizade, intercalando-os com um estudo robusto sobre o concelho de Freixo de Espada à Cinta e Teixeira Leite esboçou uma aguarela sobre a igreja da freguesia. Focaram-se “Aspectos periféricos da religiosidade nos séculos XVII e XVIII” e Mandocas ficou-se pela lenda (ou mito de origem) da freguesia.
O capítulo completa-se com textos de profundo arrebatamento de alma, como os de Almeida Santos, Margarida Almeida Santos, Pedro Verdelho, Ilda Verdelho, Hirodino Isaías ou Rui Carvalho.
Aline Costa, Amadeu Martins, José Santos e Manuel Francisco, forneceram os seus testemunhos pessoais; de outras terras trata Hélder Gomes, encerrando-se com um poema a Nossa Senhora das Graças de Adelaide Neto.
O aspecto gráfico foi da chancela da Exoterra, a Edição é da Comissão de Festas de Nossa Senhora das Graças, sendo seu presidente António Neto, a que se deve a logística, e teve colaboração local de Carlos Novais, presidente da Junta de Freguesia de Lagoaça.
A nós coube-nos dar-lhe vida coordenando-a e organizando-a, com o prazer de um menino que lá longe ouviu contos dessas terras no regaço de sua avó materna.
E não só …

Armando Palavras

08 julho 2011

Lançamento do blogue "NORDESTE COM CARINHO"

Marcolino Cepeda e Mara Cepeda realizaram, há alguns anos, um conjunto de 82 entrevistas na RBA, várias de entre elas a pessoas que são agora associados da ALTM. Os entrevistados foram, na sua grande maioria, trasmontanos ou pessoas com algum tipo de ligação a Trás-os-Montes e Alto Douro. Agora passarão a estar no blogue "Nordeste com Carinho", para cujo lançamento nos pediram para divulgar aos associados da ALTM o seguinte:








NORDESTE COM CARINHO

BLOG

A Directora do Museu Abade de Baçal, Marcolino Cepeda e Mara Cepeda têm o prazer de convidar V. Ex.ª para o lançamento oficial do BLOG “Nordeste com Carinho”, que se realiza no dia 16 de Julho de 2011, pelas 17.30, no Museu Abade de Baçal em Bragança.

Segue-se um porto de honra.




07 julho 2011

Tenreiro, Hughes e Mandela: Uma Conversa sobre Rios

                        Tenreiro, Hughes e Mandela: Uma Conversa sobre Rios

                                            
Maria Manuela Araújo

                           Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa


Resumo: As poéticas de Francisco José Tenreiro e de Langston Hughes são escritas do eu que fala da margem e questiona as hegemonias forjadas pelo ideário colonial moderno. As vozes dos dois poetas assinalam uma junção dialogante da diáspora contestatária moderna, à qual pertence outra voz maior da modernidade tardia, contemporânea, a de Nelson Mandela, de que a obra Long Way Walk To Freedom se constitui memória autobiográfica. Tenreiro fala sobre os mesmos rios de que fala Hughes em «The Negro Speaks of Rivers», um poema que é necessário mostrar e interpretar. Mandela atravessou rios famosos: «‘Ndiwelimilambo enamagama’». As três vozes em menção são actos ilocutórios do eu protestatário, gerador de relações transtextuais, a partir do mesmo motivo líder rio.
  
Palavras‑chave: modernidade, diáspora, autobiografia, intertextualidade, memória.



The Negro Speaks of Rivers[1]

                                                                    To W. E. B. Du Bois
I’ve Known rivers:
I’ve known rivers ancient as the World and older than the flow
of
         human blood
         in human veins.

My soul has grown deep like the rivers.
I bathed in the Euphrates when dawns were young.
I built my hut near the Congo and it lulled me to sleep.
I looked upon the Nile and raised the pyramids above it.
I heard the singing of the Mississipi when Abe Lincoln went
          down to New Orleans, and I’ve seen its muddy bosom
          turn all golden in the sunset.

I’ve known rivers:
Ancient, dusky rivers.

My soul has grown deep like the rivers.

Langston Hughes, 1926



O Negro Fala de Rios[2]
Para W. E. B. Du Bois
Conheci rios:
Conheci rios antigos como a Terra e anteriores ao correr de
sangue humano
em veias humanas.

A minha alma aprofundou-se como os rios.
Banhei-me no Eufrates ainda as manhãs eram jovens.
Fiz a minha cabana junto ao Congo que me adormeceu com o
seu sussuro.
Percorri o Nilo com o olhar e edifiquei as pirâmides por cima
dele.
Ouvi o cantar do Mississipi quando Abe Lincoln foi a Nova
Orleães,
e vi o fundo lodoso ficar como ouro ao sol‑pôr.

Conheci rios:
Rios antigos, nebulosos.

A minha alma aprofundou‑se como rios.

Langston Hughes, 1926



            As poéticas de Francisco José Tenreiro (n.1921 – f.1963) e de Langston Hughes (n.1902 – f.1967) dimanam do mesmo lugar tópico e partilham a estética negritudinista. São escritas de colocação subversiva, do eu que fala da margem, não da marginalidade, interrogando as hegemonias forjadas pelo ideário colonial moderno. A afinidade entre os dois poetas é clara nas menções explícitas que Tenreiro faz a Langston Hughes. A escrita do poeta afro‑americano inspirou as diásporas negro‑africanas modernas, particularmente a designada, por Mário Pinto de Andrade, de Geração de Cabral, tendo assim cumprido o objectivo primordial que incutiu no seu ensaio «The Negro Artist and the Racial Mountain»[3], de 1926. Aqui, Hughes defende a ligação do escritor negro a África, insistindo numa escrita racial não aculturada, a montanha que considerou íngreme de subir e o incompatibilizou com County Cullen.
            As vozes da Geração de Cabral falaram a mesma língua dos criadores que fundaram e alimentaram o sonho do New Negro, da Harlem Renaissance e da Jazz Age, bem como dos activistas políticos que, de Frederick Douglass a Martin Luther King, lutaram pelos direitos humanos e cívicos dos negros nos E.U.A. e no mundo. Repartida pelos dois lados do Atlântico, esta diáspora discursiva, à qual pertence a escrita de Tenreiro, dialogou solidária no inconformismo do exílio, externo ou interno, clamando um outro tipo de estado‑nação.
            A poesia de Tenreiro é um acto ilocutório de eu “de coração em África”, mas também de coração na África levada para as Américas. A poesia de Hughes desvela esta afinidade recíproca, porque o eu autoral em menção também viveu “de coração em África”. A África e as Américas, particularmente os E.U.A., são geografias comuns às duas poéticas. Os poemas «Negro de Todo o Mundo»[4], do poeta são‑tomense, e «The Negro Speaks of Rivers», do poeta afro‑americano, configuram‑se elementos de diagnose social e cultural de um intervencionismo recíproco entre a África e os E.U.A.
            Em Tenreiro, temos o discurso poético neo-realista da diáspora negro‑africana, escrita do exílio, em que o eu poético se enuncia num lugar fora de África. O título «Negro de Todo o Mundo» subentende uma relação dialógica identitária, fundada num topos de enunciação, que inscreve a errância humana numa escrita que concentra vários espaços culturais que se interferem: a Europa, a África e as Américas. Observando Tenreiro nos papéis de poeta, ensaísta, professor e político, como figura medianeira entre mundos, perante os quais adoptou uma posição a um tempo contestatária e conciliatória, importa citar Russell Hamilton:

E embora influenciada pela negritude de Senghor, Césaire e David Diop, a poesia de Tenreiro também tem sinais do negrismo cubano e do estilo da Harlem Renaissance. Ao entoar as suas invocações, exortações reivindicativas e protestatárias e a sua saudade africana, o sujeito poético viaja por África e pela «diáspora», ora fragmentando ora reintegrando o espaço geográfico e o tempo histórico.
                                                                                                            (Hamilton, 1984: 251)

            Entre outros africanistas e ensaístas, Alfredo Margarido[5] e Salvato Trigo[6] focalizam na poesia do poeta são‑tomense a influência afro‑americana da Renascença de Harlem, sem a qual qualquer estudo sobre Tenreiro estaria sempre incompleto. Também Fernando J. B. Martinho, quer no prefácio do livro Coração em África, 1982, quer na comunicação apresentada no colóquio de Paris[7], 1985, deixa bem claro o entrosamento literário dos dois poetas. De igual modo, Pires Laranjeira se refere à aceitação que Langston Hughes teve nos círculos intelectuais neo-realistas e negritudinistas portugueses, assim como no Brasil e em África, oferecendo um levantamento de situações textuais onde Hughes é publicado, traduzido e homenageado, referindo «A voga da poesia de Langston Hughes entre os neo‑realistas e negritudinistas que viveram os ambientes intelectuais de Lisboa, Porto e Coimbra, nos anos 40‑50 (e mais tarde), ou entre os brasileiros, mas também na África […]». (Laranjeira, 1995: 28, 29).
            O presente texto tem como objectivo ajudar a iluminar a relação de influência literária e ideológica entre a África e os E.U.A., bem nítida na poesia de Francisco José Tenreiro, oferecendo como contributo primacial a análise literária do poema «The Negro Speaks of Rivers», de Langston Hughes, um dos mais intertextualizados por Tenreiro, bem como por outros escritores africanos, configurando-se, assim, pertinente, trazê-lo para a clareira do bosque literário.
O poema «The Negro Speaks of Rivers» foi, sem dúvida, o mais glosado pelos poetas africanos da referida geração. O poeta que de forma mais evidente intertextualizou as palavras de Hughes, em especial do poema acima relevado, foi Francisco José Tenreiro. Ambos são poetas que, enquanto fora de África, sempre tiveram o “coração em África”, tal como dito no título metafórico do poeta são‑tomense, que sintetiza o fulcro identitário da reivindicada diáspora negro-africana, e em cujo poema é feita menção explícita aos mesmos rios antigos de que fala Hughes: «[…]de coração em África nos rios antigos que o Negro conheceu» (Ferreira (org.), 1982: 125). É manifestamente no segundo livro de Tenreiro, Coração em África, de publicação póstuma em 1964, que estão presentes composições poéticas que tematicamente o fazem de forma mais clara, invocando os mesmos rios já exaltados por Hughes, ou outros elementos simbólicos da vivência afro‑americana, ou ainda, a mesma África com que sonha o escritor afro‑americano.
Assim, cruzando e incorporando as palavras de Tenreiro, no poema «Amor de África»[8], «[…]a manhã outonal de nevoeiros calmos sobre o Tejo.» (v. 2) desperta no sujeito poético um sentimento de nostalgia de África, sendo este invadido por «Quatro pulsações febris de um corpo só/oh África do Nilo e do Zaire oh África do Zambeze e do Níger/quem em ti está pensando de coração em África?/ África dos rios velhos e ruínas ossificadas de Zimbabwé» (vv. 11-14).
O poema «Fragmento de Blues»[9], 1943, é dedicado a Langston Hughes e, tal como «Negro de Todo o Mundo», sofre a influência de Weary Blues[10], 1926, um conjunto poético do qual faz parte o poema «The Negro Speaks of Rivers». Em «Fragmento de Blues», a memória invade a solidão do eu poético através de um som de trompete, que traz até si «toda a melancolia das noites de Geórgia» (v. 4), sopro instrumental que, inesperadamente, se transmuta numa voz feminina acompanhada pelo piano, tocado em Harlem. O chamamento melancólico que vem das noites da Geórgia é o mesmo “blues” que chama o escritor afro‑americano Jean Toomer e o convida à visita da casa ancestral, representada na obra Cane. Cane é uma experiência experimental mística, de precisão lírica imagista, também fragmentada em momentos narrativos e dramáticos, mas em que o poema-canto «Song of the Son»[11] é a sagração máxima da escrita poética elegíaca, ao regresso deste filho pródigo à terra. Este é o “cântico do fim, ou do cisne”, que busca salvar o legado cultural do Sul dos E.U.A., prestes a desaparecer a “poente dos tempos”. A efusão lírica de Cane, ou “blues” sincopado pelo feminino, é o mesmo canto de «negrinha» (Est. II, v. 3) que acordou a tristeza de Tenreiro, desta vez vindo de Harlem. Em «Fragmento de Blues» os ritmos negros de Harlem, Count Basie, quebram o vazio do sujeito poético, tal como o fazem a escrita poética de Langston Hughes e de Countee Cullen: «E se ainda fico triste/Langston Hughes e Countee Cullen/Vêm até mim/Cantando o poema do novo dia/- ai! os negros não morrem/nem nunca morrerão!» (Est. IV).
Continuando a observar os matizes textuais isotópicos, que significam o apego do sujeito poético a uma terra e a gentes que considera suas, observe-se a composição intitulada «Nós, Mãe»[12], em que se dirige também, em forma de invocação saudosa, à terra‑mãe África: «E a ti, /Oh! Mãe de negros e mestiços e avó de brancos! » (Est. V, v.1). A África personificada num corpo negro de mulher, cansado e mirrado, a negra velha a quem o eu poético se dirige e lembra que «[…] [os seus] filhos não morreram[…] / [porque ele ouve] um rio de almas reluzentes/cantando: nós não nascemos num dia sem sol!» (Est. X), «Que um rio vem correndo e cantando/desde St. Louis e Mississipi» (Est. XI, vv. 1, 2). O rio em referência é o mesmo rio que o sujeito poético em «The Negro Speaks of Rivers» ouve igualmente cantando, quando Abraham Lincoln, a quem Tenreiro também dedica um poema, desceu a Nova Orleães com a boa nova, e o seu leito, ao pôr do sol, se transformou, adquirindo um tom áureo. Mais marcado pelo cosmopolitismo modernista temos o poema «Coração em África»[13], em que o sujeito deambula pelo quotidiano urbano, mas sempre de Coração em África - «[…]cogitando na pretidão do mundo que ultrapassa a própria cor da pele» (v. 64) -, invocando vários criadores modernistas, também Nicolás Guillén (v. 36), mas, particularmente, os rios antigos a que já se fez menção.
As vozes dos dois poetas assinalam uma junção dialogante da diáspora africana moderna, à qual também pertence outra voz maior, a de Nelson Mandela, de que a obra Long Way Walk To Freedom se constitui memória autobiográfica. O “longo caminho para a liberdade”, de que nos fala Mandela, é também interrompido por vários rios, rios que o sujeito teve de atravessar, os quais detêm um forte significado dentro da simbólica figurativa da dificuldade existencial do Homem na Terra. Da tradição para a modernidade, do saber ancestral para as aprendizagens vivencial, académica e política do hostil mundo do progresso, eis os obstáculos que levam o sujeito a proferir o ditado xhosa: «‘Ndiwelimilambo enamagama’ (‘I have crossed famous rivers’)».[14] O rio é, igualmente, no texto de Mandela, um motivo líder antigo, recontextualizado dentro do nacionalismo sul‑africano moderno, invocando o sentido de “atravessar” etapas várias e difíceis. Na autobiografia de Nelson Mandela, a metáfora “atravessar o rio” reafirma a sua carga simbólica, num contexto em que se pretende colocar em vacilação as bases da ritualizada cultura dominante, colonizadora, tornando visível a relação de conflitualidade entre colonizador e colonizado, as contrariedades várias, sofridas pelo ser que se vê dividido entre a Europa e a África. Assim se tece a discursividade dialogante de uma diáspora literária que, à distância, conversa sobre os mesmos temas, revelando uma consciência identitária transcultural de afiliações simétricas.

            Pelo já aludido merecimento que o poema «The Negro Speaks of Rivers» revela na discursividade diaspórica que tem vindo a concentrar a nossa atenção, passa-se à decifração analítica da sua semântica principal, a qual se inscreve dentro da tradição literária etiopianista. O texto poético «The Negro Speaks of Rivers»[15] veio pela primeira vez a lume em Junho de 1921, em The Crisis, jornal da associação NAACP, fruto de um gesto encorajador de Jessie Fauset. O poeta começou, alegadamente, a escrevê‑lo durante a travessia do rio Mississipi, explorando de forma muito criativa diversos traços do universo de semelhanças da metáfora rio: joga com características de ordem vectorial que o signo linguístico, no seu sentido literal, implica.
No que se refere à enunciação metafórica do lexema rio, a semântica da frase parece preservar os dois eixos isotópicos ortogonais, que um curso de água, no mundo fenomenal, permite imaginar: um eixo longitudinal e outro vertical. Corporizado no enunciado poético, os constituintes sémicos que formam o campo semântico de rio sugerem não só o movimento da corrente, da nascente para a foz - «I’ve Known rivers: […] older than the flow of human blood in human veins.»‑(vv. 2, 3), como também a dimensão tridimensional de volume, ao induzirem a direcção vertical de profundidade, através da reiteração - «My soul has grown deep like the rivers» - , em forma de refrão, ao longo da espacialização poemática. A linha imaginária vertical, sinónimo de profundidade no plano físico, contém ainda uma componente temporal, não de explicitação cronológica directa, mas de implicação causal indirecta, verificável através de índices sémicos, que sugerem um processo de erosão, determinante para o aprofundamento do leito do rio, o qual se configura como elemento de comparação com a alma do sujeito poético.
O poema, criado dentro do cânone literário modernista, coloca em evidência o seu sujeito de escrita e de enunciação, em particular circunstância de auto‑referencialidade, numa espécie de monólogo interior, ou em livre corrente de consciência, revivendo uma origem essencial, na viagem mental que remonta a um tempo anterior à Humanidade.
Assim, a instância poética confere voz e visibilidade ao indivíduo, pela recorrência a uma figuração egotista subjectiva, de índole temática, a qual aponta para a interacção identitária do eu com um território geográfico e cultural de procedência ancestral, que, em termos formais do poema, apesar da irregularidade espacial, se consuma, textualmente, na utilização anafórica de eu, localizada no lugar mais saliente de cada verso.
Ousando uma possível decifração da imagética estruturadora do poema, o eixo longitudinal poderá simbolizar a movência errática de um espaço e tempo sentidos como primordiais, da África Mesopotâmica, considerada berço da humanidade e de civilização, mas também sinónimo de esforço e de árduo trabalho edificador - «I looked upon the Nile and raised the pyramids above it.» - (v. 7), para os E.U.A., lugar de escravatura, mas igualmente de libertação, que o rio Mississipi “canta”, à chegada de Abraham Lincoln a New Orleans - «I heard the singing of the Mississippi when Abe Lincoln/ went down to New Orleans […] » - (vv. 8, 9).
O eixo imaginário vertical afigura-se indiciador de amadurecimento, saber, conhecimento profundo de si, e da sua raiz genealógica mais profunda, sugerida pela expressão «grown deep», em cuja oposição direccional está contido o crescimento físico do ser humano, que se regista numa linha evolutiva, para cima, até à idade adulta, movimento contrário, no entanto, ao crescimento do saber adquirido com os anos, tão considerado nas sociedades africanas tradicionais, e de representação vectorial oposta, no sentido de profundidade, em termos de sabedoria, tal como a ancianidade de alguns rios que, ao perderem a sua “juventude”, vão correndo em cada vez mais amplos e profundos vales, ainda que não seja o caso do rio Nilo e do rio Mississipi.
Os dois eixos, concebidos no plano extra-semântico, intersectam-se num ponto de origem que, definido no poema em análise, é encontrado em “rio”, simbolicamente testemunho original do processo de formação da terra, assim como das mais antigas civilizações de África, e objecto de dignificação do eu poético.
Ao longo do poema, o arquitexto bíblico vai-se tornando legível nas entrelinhas de uma indagação filosófica, que parece ter encontrado no Mito de Génese uma resposta, que foi construindo África de forma lendária, mítica, indo ao encontro do desejo imaginário do poeta, bem como do sonho secular de muitos afro-americanos.
O sujeito poético fala de rios genesíacos, que os seus antepassados, vozes íntimas do eu lírico, conheceram. A menção feita a rios antigos - «ancient as the world and older than the flow of human blood in human veins» - (vv. 2, 3), particularmente ao Eufrates, invoca o início edénico, representado no episódio bíblico intitulado A Formação do Jardim do Éden, presente em Génesis 2, 4-17. O intertexto bíblico que entrelaça a malha poética da composição de Hughes, em que os rios, elementos da natureza, parecem transportar uma mensagem de início da criação do mundo, configurando-se como elementos que invocam princípios de interpretação, toda esta actividade efabulatória parece pertencer ao plano integrador do mito, de que a fulguração da palavra aqui faz ressonância.
Ao aludir, por último, ao espaço simbólico construído à volta do Egipto Antigo, renascimento temático relevante, não só na imagética do poema, como também na literatura e noutros géneros artísticos emergentes durante o Modernismo, merece particular atenção a forma como é invocada a grandiosidade das pirâmides, visivelmente acima do maior rio, o Nilo, - « I looked upon the Nile and raised the pyramids above it.» - (v.7). As pirâmides egípcias, cujos mistérios se constituem objecto de estudo e decifração inspiradora de ritos iniciáticos, pertencentes ao conjunto sistemático de cerimónias e ensinamentos de grupos esotéricos, figuram no poema em análise como símbolo altaneiro, superior, erigidas por um eu obreiro, um eu que no texto poético em análise é nós, e se assume como autor de uma obra, ou seja, uma obra de construção colectiva, pertença de um grupo humano que a reclama, na presente voz de um eu diaspórico que, ao fazer germinar a palavra, se torna socialmente notado.
A atracção dos afro-americanos pelo Egipto, entre meados do século XIX e princípios do século XX, manifestada em discursos públicos, na literatura panfletária, na sermonística e noutros géneros artísticos, é justificada como apelo a um passado histórico elevado, reivindicado como meritíssima tradição, gloriosa nascente de civilização, o Egipto Antigo, como primeira civilização histórica nascida no vale do Nilo[16], no decorrer do quarto milénio a. C., tal como a invocação de outras culturas africanas antigas, particularmente, a núbia e a etíope[17], de exploração temática igualmente frequente.
Nas épocas de renascimento cultural em foco, os diálogos textuais em apreço abraçam, em comum, um projecto radical de grande abrangência, que visa insurgir-se contra a tirania do discurso colonial e, por essa razão, a influência de Langston Hughes, assim como a presença afro‑americana em geral, não se circunscreveu à poesia de Tenreiro, mas marcou igualmente presença nos textos dos «poetas-militantes»[18], que produziram a designada Literatura de Combate, especialmente a de Viriato da Cruz (1928 - 1973) e Costa Andrade (1936-?).
As determinações ideológicas dos dois poetas explicam que a poesia de ambos se tivesse vindo a constituir recusa do colonialismo, bem como recordação cultural de outros valores simbólicos de índole universal, criados sobretudo em Viriato da Cruz, à luz de um democratismo político não só nacional, mas sim multiracial e alargado ao operariado de todo o mundo, segundo as suas convicções políticas.[19] Viriato da Cruz foi poeta colaborante da revista «Mensagem» (1951-52), que em conjunto com «Cultura» [(I) 1945-51] e «Cultura» [(II) 1957-61] deram a conhecer as criações literárias da geração de 50. No poema de Viriato da Cruz, intitulado «Mamã Negra»[20], dedicado à memória de Jacques Roumain, o sujeito poético enaltece a voz personificada da mãe‑África, como voz síntese da diáspora negro‑africana, uma voz plural que, pelas suas palavras, enfaticamente integra « - Vozes de toda América! Vozes de toda África» (v. 17), especificadas no poema, superlativizando, de forma particular, a voz de Langston Hughes: «Voz de todas as vozes, na voz altiva de Langston» (v. 18). No poema de Costa Andrade, «Poema oitavo de um canto de acusação»[21], o sujeito poético é interceptado por vibrações sonorosas afro-americanas, de Blues e Jazz, que se entranham no seu corpo “até às vísceras”, e despertam no seu imaginário poético a eleição de figuras simbólicas da música e da escrita da América negra: Louis Armstrong, Langston Hughes, Countee Cullen, Nicolás Guillén.
            A voz de Tenreiro é uma voz que vem de longe e vai para longe, é a voz do negro escravo que não pôde falar, consubstanciada no poema intitulado «1619»[22], voz do corpo que tombou «ao peso de grilhetas e chicote», reanimado pelo «chape‑chape da água» que em si acordava «[…]a saudade/da última réstia de areia quente/e da última palhota que ficou para trás.» (Tenreiro, 1982: 110). Deste modo, a poética de Tenreiro é um caso de memória histórica, de que o título «Coração em África» se configura signo. Uma memória literária preservada pela Literatura de Escravos Afro‑Americana, conservada pelos escritores dos períodos New Negro Renaissance, Harlem Renaissance e seguintes. Uma memória com particular interesse para o período Realista, em que se insere o poema lírico‑narrativo «Middle Passage»[23], de Robert Hyden, o qual dialoga com o filme «Amistad», do realizador Steven Spielberg. Tenreiro intertextualiza o referido poema de Hyden (1966), considerado histórico pela crítica, porque rememora a chamada “Passagem Intermédia” negreira, um sujeito poético plural no sentir do outro seu irmão, e que de forma simbólica celebra no título da sua obra poética.
            Em suma, fecha-se o ensaio em apresentação, conferindo saliência aos semas fundadores dos textos interpretados. Os escravos viajaram de coração em África. Garvey e o seu opositor Du Bois, líderes do New Negro Movement, lutaram de coração em África. Hughes, da Renascença de Harlem, falou de rios africanos e viajou de coração em África, para África. Tenreiro enunciou-se fora de África, mas conversou com Hughes sobre os mesmos rios africanos, porque tinha o coração em África. Mandela permaneceu em África cantando rios, porque no exílio interno ofereceu a sua Vida a África. A estas vozes, continuam a juntar-se as vozes das diásporas contemporâneas, em tempo pós‑colonialista, as quais aguardam, ainda, de coração em África, fazendo sua a pergunta de Ki‑Zerbo: Para quando África?


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[1] Versão original escolhida para análise. BRAZILLER (org.), s/d: 88).
[2] ALVES (org e trad.), 1997: 18‑19.
[3] GATES Jr., MCKAY (gen. eds.), 2004: 1311-1314.
[4] TENREIRO, 1982: 76-81.
[5] MARGARIDO, 1980: 121-123.
[6] TRIGO, s/d: 7-14.
[7] MARTINHO, 1985: 523-527.
[8] FERREIRA (org.), 1982: 99-104.
[9] FERREIRA (org.), 1982: 105-106.
[10] BRAZILLER, Inc. (org.), s/d: 87- 88.
[11] TOOMER, 1967: 21.
[12] FERREIRA (org.), 1982: 112-115.
[13] FERREIRA (org.), 1982: 124-128.
[14] MANDELA, 2002, vol. I: 121.
[15] BRAZILLER (org.), s/d: 88.
[16] Como se sabe, a mais antiga população do Sara até ao período histórico era formada por negros.
[17] Culturas florescentes que beneficiaram de uma situação de riqueza agrícola e comercial, desenvolvida à volta do rio Nilo.
[18] Mário Pinto de Andrade, no quadro da poesia de combate de escrita portuguesa e crioula, produzida no fim dos anos cinquenta, refere-se à figura do «poeta-militante», especificando as circunstâncias em que ela surge: «realiza-se a coincidência entre o engajamento político, a presença física no próprio terreno da luta e a expressão militante na poesia.» ANDRADE (org.), 1979: 7.
[19] Vejam-se os cadernos políticos de Viriato da Cruz, in LABAN (coord.), 2003.
[20] ANDRADE (org.), 1977: 155-157.
[21] ANDRADE (org.), 1975: 35-36.
[22] TENREIRO, 1982: 110-111.
[23] ALVES (org. e trad.), 1997: 22.